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Dom Casmurro+Davy+Giannetti

 

FOLHA DE SÃO PAULO – CADERNO MAIS! 27 DE JANEIRO DE 2008

UM MERGULHO EM DOM CASMURRO

Eduardo Giannetti

(Comentários de Davy Bogomoletz)

 

 

 

O texto semeia, a leitura insemina. O leitor lê o livro, mas existem livros que lêem o leitor. À medida que lia, relia e me preparava para escrever este artigo -santa ousadia! – fui também me dando conta de uma imagem teimosa que volta e meia aflorava em meio ao trabalho: o olhar zombeteiro de Machado de Assis emergindo do fundo das páginas de ‘Dom Casmurro' e caçoando do meu esforço em devassar os segredos da obra.

Não era uma imagem propriamente visual. Era a sensação difusa e semiconsciente de estar sendo observado. De que Machado calculara de algum modo tudo aquilo, armara milimetricamente o jogo, e depois se postara em algum camarote da eternidade para desfrutar do seu engenho e entreter-se às minhas custas.

De repente, sentia, os papéis se invertiam: a obra se divertia comigo. Ela me interrogava; eu me explicava Se os livros tivessem olhos, os de ‘Dom Casmurro' seriam oblíquos e dissimulados – capazes de tragar em suas linhas gerações de intérpretes empenhados em decifrá-los.

Textos seduzem. ‘Dom Casmurro' se oferece ao nosso deleite, enfeitiça-nos com sua arte, bule com a nossa intimidade, mas jamais se deixa possuir inteiramente. O romance secreta ambigüidade por todos os poros. A superfície polida que o envolve é análoga à da vida que retrata: uma fina película de decoro sob a qual se agitam – sem nunca irromper – as mais ferozes, traiçoeiras e inconfessáveis correntezas.

‘Dom Casmurro' não tem prefácio. A autobiografia ficcional de Bento Santiago é uma redoma intransponível. Só temos acesso aos estados mentais e ao universo subjetivo de um narrador que resolve contar, movido pelo tédio de uma velhice amarga e reclusa, episódios cruciais de sua vida.

Farta em divagações, a narrativa carece de acontecimentos. Atrofia da vontade, hipertrofia da cogitação. A máxima que inspira a trama não é o ‘no princípio era verbo' bíblico ou o ‘no princípio era a ação' faustiano. Para o Otelo anêmico de Machado, ‘no princípio era a elucubração'.

(OU, A MEU VER, ‘NO PRINCÍPIO ERA A FRAUDE' O FALSO SELF, DE WINNICOTT, DÁ CONTA MUITO MELHOR DISSO TUDO.)

A perspectiva interna de dom Casmurro – o Bentinho cético da velhice – governa brutalmente o retrospecto de sua vida. Tudo o que sabemos dos personagens foi filtrado por sua memória. A grande incerteza – a dúvida que Machado semeia – reside no grau de confiabilidade do relato.

(NÃO! RESIDE NO DESCONHECIMENTO QUE O AUTOR DA ‘AUTO-BIOGRAFIA' TEM DE SI PRÓPRIO, E NO FATO DE DESCONHECER QUE DESCONHECE.)

Até que ponto a retrovisão do narrador corresponde ao que de fato se passou com ele? A incerteza é radical. Quanto mais se busca contê-la, pinçando aqui e ali resíduos de objetividade, mais ela se espalha. Imagine no que se transformaria aquela mesma trama, só que reconstruída a partir do ponto de vista de Capitu ou Escobar.

(MAS AÍ ESTÁ A ARTE DE MACHADO: MEIO SÉCULO ANTES DE WINNICOTT, ELE SE DEU CONTA DE QUE PESSOAS HÁ QUE NÃO SÃO ELAS MESMAS (VIDE ADIANTE), POSSUINDO UM ‘EU' DE FACHADA QUE ENCOBRE O ‘EU VERDADEIRO', MANTIDO OCULTO PARA NÃO ATRAPALHAR O ‘FALSO' DE SE FAZER ACEITAR PELO MUNDO EXTERNO.)

O desfecho é fatal. O leitor termina e a pergunta o assalta. Afinal, traiu ou não traiu? Por mais irrespondível e irrelevante que seja, a questão não cala. O leitor volta ao texto e, lupa na mão, sai à cata de pistas: interroga os personagens, esmiúça as alusões eruditas. Não há chave, não há prova

O equilíbrio das evidências é exato. A saída lógica, no caso, seria a suspensão da crença, mas a curiosidade não arreda. Quem sabe um fato novo? E se, por absurdo, um manuscrito inédito de Machado ou uma carta extraviada de Capitu revelassem toda a verdade? Estaria resolvido o mistério?

O verdadeiro enigma de ‘Dom Casmurro' não é tanto o suspense indecidível que nos propõe, mas a força do transporte ficcional que o romance proporciona, a ponto mesmo de despertar uma demanda espontânea por respostas objetivas às dúvidas que suscita. Quase sem se dar conta, o leitor é transportado ao universo suburbano de Bentinho e se descobre a cobrar a verdade dos fatos em meio a um enredo que, como bem sabe, não passa do relato semidelirante de um narrador casmurro.

(MAS NÃO É, REALMENTE, UM RELATO ‘SEMIDELIRANTE'. COMO SE VERÁ A SEGUIR, ESTA É A VERDADE DE BENTINHO, A ÚNICA QUE ELE POSSUI: A VERDADE DE PENSAR QUE ESSE ‘EU' QUE ELE CONHECE CONSCIENTEMENTE É O VERDADEIRO, SEM SABER QUE SE TRATA DE UMA MENTIRA, UM FALSO ‘EU', UM SER HUMANO QUE NÃO É ELE MESMO. AO FINAL, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESSE ESTRANHO FENÔMENO.)

O mais intrigante é que tanto essa ilusão de realidade como a demanda por uma suposta verdade objetiva que esclareça os fatos emerjam de uma narrativa que prima pela violação sistemática das regras e convenções do romance realista.

Como em ‘A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy' de Sterne ou no ‘Jacques, o Fatalista' de Denis Diderot [Perspectiva], seus tios­ avôs europeus, o romance de Machado vira do avesso o intento de se buscar embalar o leitor fazendo-o esquecer que está lendo um livro.

(SIM, PORQUE MACHADO NOS ENTREGA UM LIVRO APARENTEMENTE ESCRITO POR UMA PESSOA ‘REAL' E QUE CONTA A HISTÓRIA DE UMA VIDA ‘REAL'. MAS ESSA É A ARTE DO ESCRITOR – O AUTOR VERDADEIRO.)

‘Dom Casmurro' sapateia sobre os cânones do realismo, ainda que preservando um meticuloso andaime de referências às datas e ao sítio urbano-geográfico dos acontecimentos, às idades e feições dos personagens e, principalmente, ao modo como parasitam seu ganha-pão. O surpreendente é que essa ruptura libertária com o bom-mocismo narrativo em nada prejudique o alcance do transporte ficcional que a leitura do romance suscita. Ao contrário. Ao escancarar as entranhas do fazer literário e tudo que ele tem de postiço e arbitrário, o livro produz um efeito não de frio distanciamento, mas de hiper-realismo.

(MACHADO ESTÁ CONTANDO A HISTÓRIA DE UM SER HUMANO QUE É MAIS UMA FICÇÃO (ELE PRÓPRIO) QUE UMA REALIDADE – VEJA ADIANTE. POR ISSO, CREIO, ELE RECORRE A ESSE ARTIFÍCIO LITERÁRIO, DE INTRODUZIR A REALIDADE DO ESCRITOR NO INTERIOR DA FICÇÃO QUE IA PRODUZINDO – COMO NUMA ESPÉCIE DE DUPLO ILUSIONISMO, QUE DENUNCIA A ILUSÃO. VEJA OS DOIS PARÁGRAFOS SEGUINTES:)

O narrador-personagem Casmurro não deixa a ‘querida leitora' na mão. A troça do romance escapista também se presta ao escapismo. A negação metaboliza e ultrapassa o negado: a rejeição do realismo intensifica a ilusão de realidade.

Mas nem só de alquimia narrativa e fria perfeição de engenharia sintática é feito ‘Dom Casmurro'. Se o romance rompe com o realismo literário, ele abraça com revigorado ímpeto o realismo psicológico. O apuro formal é o veículo de uma causa cognitiva precisa.

A vida mental dos personagens é dissecada com precisão cirúrgica pelo bisturi machadiano. O cientista Fortunato, do conto ‘A Causa Secreta', não faria melhor. Do verme das pequenas vaidades que envenenam o cotidiano ao alvoroço íntimo do amor que desponta, poucas vezes o psiquismo humano foi flagrado com tamanha acuidade. Bem lido, ‘Dom Casmurro' vale por um tratado de psicologia moral.

(MAS O QUE QUER DIZER ‘PSICOLOGIA MORAL'? HAVERÁ PSICOLOGIA ‘NÃO MORAL'? SE O AUTOR ESTÁ TENTANDO DIFERENCIAR ENTRE ‘PSICOLOGIA MORAL' E ‘PSICOLOGIA' PROPRIAMENTE DITA, PERDE TEMPO. OU EXISTE ‘PSICOLOGIA', OU OUTRA COISA QUALQUER.)

Cada indivíduo é um microcosmo. A idéia de que a mente em seu estado normal abriga pulsões desconhecidas e, por vezes, capazes de assombrar quem as detecta em si, não precisou esperar pelo advento da psicanálise. Platão vai ao ponto: ‘Em cada um de nós, mesmo naqueles que parecem mais comedidos, existem desejos terríveis por seu caráter selvagem e sem leis, e que se deixam revelar pelos sonhos' (‘República'). A fera subterrânea aí está. Como lidar com ela?

(E A BÍBLIA, POR SUA VEZ, ANTECIPA PLATÃO EM ALGUNS SÉCULOS – VIDE A NARRATIVA DE CAIM E ABEL. É VERDADE: A PSICANÁLISE NÃO DESCOBRIU NENHUM NOVO CONTINENTE. ‘APENAS' O PERCORREU, DESCREVEU E MAPEOU.)

As estratégias para se chegar a um ‘modus vivendi' com os impulsos arcaicos e exigências instintivas que nos habitam em segredo configuram o campo de forças da personalidade.

(AINDA MAIS QUANDO, DE FATO, HÁ NUMA PESSOA DUAS PERSONALIDADES, QUE POR SUA VEZ CONFLITAM ENTRE SI… O QUE O AUTOR NÃO SABE É QUE ESSE ‘CAMPO' PODE SER UM ‘CAMPO DE BATALHA', NAS PESSOAS MAL INTEGRADAS – COMO NO CASO DOS QUE ESTÃO DIVIDIDOS ENTRE VERDADEIRO E FALSO SELVES, OU REALMENTE UM ‘CAMPO DE FORÇA', NAQUELAS EM QUE A INTEGRAÇÃO TEVE A CHANCE DE SE FAZER SATISFATORIAMENTE.)

O equilíbrio é tênue e sujeito a súbitas reviravoltas. O mesmo Bentinho que, recém-formado, ouvia fadas (‘tu serás feliz, Bentinho!') e recém-casado ‘inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me invejassem' (A IDEALIZAÇÃO É UM DOS ‘APANÁGIOS' DO FALSO SELF…) transformou-se no morto-vivo dom Casmurro (‘moro longe e saio pouco, tenho-me feito esquecer'); (DA ILUSÃO IDEALIZADORA, NATURAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA, O PERSONAGEM PASSA PARA A DECEPÇÃO – O SEU OPOSTO. NÃO FOSSE SUA  DIVISÃO INTERNA, TERIA HAVIDO UM PROCESSO DE DESILUSÃO E DE ACEITAÇÃO DA REALIDADE – A INTERNA E A DO MUNDO.) alguém que, ao receber a conta das despesas com o túmulo do filho, Ezequiel, limita-se a suspirar: ‘Pagaria o triplo para não tornar a vê-lo'.

(AQUI VEMOS O DRAMA DO PERSONAGEM: SE LHE FOSSE POSSÍVEL PENSAR ASSIM CLARAMENTE DESDE O INÍCIO, NADA DISSO TERIA ACONTECIDO…)

‘Aquele que deseja mas não age, fomenta a pestilência.' O provérbio de William Blake vai ao cerne do drama de Bentinho. (VAI NADA. VAI APENAS ATÉ A CONSEQÜÊNCIA DESSE DRAMA.) Filho único e super-protegido de mãe viúva, educado em casa por um padre antes de ser mandado a contragosto para o seminário, Bentinho se transforma no protótipo do bom ­moço. Vive para agradar os outros. ‘O homem mais puro do mundo', no dizer de Capitu.

(ESTA É, CABALMENTE, A DESCRIÇÃO PERFEITA DE UM ‘FALSO SELF' MÃE QUE ENVIUVOU EM TENRA IDADE DO FILHO, E CERTAMENTE DEPRIMIU POR UM TEMPO, E DEPOIS O COLOCOU PARA SER EDUCADO POR UM PADRE, O ANTÍPODA PERFEITO DA ESPONTANEIDADE NATURAL: NÃO FAZEM FALTA MAIS INGREDIENTES PARA DIAGNOSTICAR UM ‘FALSO SELF'

PENA, CÁ ENTRE NÓS, QUE O AUTOR PAROU SUA CURIOSIDADE PELA PSICANÁLISE EM FREUD – COMO FIZERAM TANTOS OUTROS INTELECTUAIS SE TIVESSE PROSSEGUIDO UM POUCO MAIS CHEGARIA A WINNICOTT, E VERIA UMA TEORIA INTEIRA CONFIRMANDO E ATESTANDO ESSA SUA INTUIÇÃO. COMO ESTÁ, SUA ASSERTIVA SÓ PODE SER CORROBORADA PELO ‘MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO'. MAS WINNICOTT FOI MUITO MAIS LONGE, DESCOBRINDO E DESCREVENDO O ‘FALSO SELF', QUE CABE MUITO MELHOR, AQUI, COMO EXPLICAÇÃO PARA O QUE SE PASSA COM BENTINHO. NO PARÁGRAFO SEGUINTE TUDO ISTO É MAIS QUE CONFIRMADO.)

Ocorre, porém, que a vida de ‘anjo do céu' não é fácil. Para nunca desapontar os que o cercam, ele maltrata a si mesmo. O efeito dessa auto-anulação sistemática é que os impulsos e apetites que não encontram vazão no mundo passam a se voltar para dentro, minando a sua relação com Deus e consigo mesmo. Preserva-se a respeitabilidade, salvam-se as aparências e o decoro, mas o preço do desejo inibido é cada vez mais alto: a pestilência se espalha.

O conflito intrapessoal e o retorno do reprimido pontuam a trama. As escaramuças e armistícios viscosos entre o anjo e a fera dão a tônica do romance. (ESSE É O FALSO SELF: O FALSO É O ANJO, O VERDADEIRO, REPRIMIDO, RESSENTIDO, REVOLTADO, É A FERA.) Em três momentos críticos a escalada do conflito aflora à superfície da consciência e permite entrever a besta atiçada em ação: o seminarista Bentinho deseja secretamente a morte da mãe enferma; o marido da adorada Capitu beira o adultério com a esposa de seu melhor amigo e o. pai outrora exemplar de Ezequiel por um triz não mata o filho inocente, servindo-lhe o café com veneno preparado para o seu malogrado suicídio.

(AO CHAMAR A FONTE DESSES SENTIMENTOS DE ‘BESTA', O AUTOR DO ARTIGO REVELA SEU ABISMAL DESCONHECIMENTO DO QUE MAIS A PSICANÁLISE FEZ DEPOIS DE FREUD. SE AO MENOS TIVESSE OUVIDO FALAR DE MELANIE KLEIN…)

O relâmpago de egoísmo e luxúria no episódio do ‘desmaio da piedade fIlial' é exemplar. Bentinho está obcecado pelo desejo de casar com Capitu. Ocorre que não pode consumar a paixão, pois foi prometido pela mãe à vida religiosa. Uma tentativa de pedir-lhe a compreensão para o caso resulta em humilhante fiasco. A covardia o emudece e o futuro seminarista aquiesce. Em vez de confessar o que sente por Capitu e, assim, magoar a mãe, ele apenas declara: ‘Eu só gosto de mamãe'. (DECLARAÇÃO MAIS TÍPICA, IMPOSSÍVEL. O QUE HOJE CHAMAMOS DE ‘FILHINHO DE MAMÃE' É, INEVITAVELMENTE, UM ‘EU' FALSO, ‘MANSINHO', GOVERNADO PELO DESEJO DA MÃE.)

Um dia, porém, a mãe adoece. Bentinho é chamado às pressas do seminário e, em meio à aflição, vislumbra um raio torto de esperança. Em vez de rezar pelo seu pronto restabelecimento, como era dever de filho, abriga a fantasia de que, com a mãe morta, o caminho ficaria livre para os braços da amada. ‘Mamãe defunta, acaba o seminário'. (ESSE É UM DOS POUCOS MOMENTOS EM QUE O EU VERDADEIRO SE MANIFESTA. PARA GIANNETTI, PORÉM, ESSA É A ‘BESTA-FERA'.)

D. Glória melhora e Bentinho se arrepende da maldade contemplada. Propõe-se a expiar a culpa com um gesto típico das transações fraudulentas por meio das quais restaurava seu armistício moral: ‘Então, levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas espirituais, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe rezaria 2.000 padre-nossos … Eram mais 2.000, onde iam os antigos? Não paguei uns nem outros, mas saindo de almas cândidas e verdadeiras tais promessas são como a moeda fiduciária – ainda que o devedor as não pague, valem a soma que dizem.' Bentinho dissimulou da mãe o que sentia. O que ele afinal não consegue, porém, é dissimular de si mesmo, sem fraquejar, o que sentia por ela. Nem sempre é fácil sentir o que em nós está sentindo.

(ESSE É O PROBLEMA: COMO NÃO HÁ, NESSE MUNDO INTERNO FALSO, NENHUMA VERDADE SOBRE A QUAL SE APOIAR, RESTA FALSIFICAR O QUE JÁ É FALSO, CORTANDO UM PEDAÇO EM ALGUM LUGAR DO COBERTOR PARA TAPAR O BURACO QUE HÁ EM OUTRO… O ‘EU' DA CONSCIÊNCIA É FALSO, MAS QUANDO O ‘EU' VERDADEIRO FICA SUPRIMIDO, TORNA-SE FALSO TAMBÉM, PORQUE SUA ‘VERDADE' É A DAQUELE PERÍODO EM QUE ELE FOI OBLITERADO, E EM NADA É ÚTIL PARA O MOMENTO ATUAL DA PESSOA. O ‘DRAMA' É PRECISAMENTE ESSE.)

Bentinho compreende que a arte da dissimulação requer não apenas duplicidade, mas duplo talento. Fingir para fora não é o mesmo que fingir para dentro: ‘Uma certidão que me desse 20 anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim'. (E VEJAM SÓ: BENTINHO TEM, QUE SURPRESA!, CONSCIÊNCIA DE QUE ESTÁ MENTINDO ATÉ PARA SI MESMO!) Ou, como ele se queixaria mais tarde, na maré montante da suspeita e da repulsa pelo filho que cada vez mais faz lembrar Escobar, ‘mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém'. (MAS ÁI: ESTARIA ELE REALMENTE PERTO DE SI MESMO? PERTO DE SUA CONSCIÊNCIA, SIM, CLARO, MAS O ‘SI MESMO' MORA ABAIXO DA CONSCIÊNCIA, E DISSO ELE NÃO SABE. SE SOUBESSE, ESTARIA TUDO RESOLVIDO E ELE NÃO SERIA QUEM (PENSA QUE) É, SERIA UM SUJEITO MUITO MENOS ENROLADO E, CERTAMENTE, NÃO ESCREVERIA UM LIVRO PORQUE ESTARIA OCUPADO FAZENDO COISAS MAIS CONCRETAS…)

Ele se acostuma de tal modo a se disfarçar dos outros que acaba se disfarçando de si. Na liga insossa do seu caráter, as fronteiras desvanecem: à falsidade externa do hipócrita social, virtuose da afabilidade, junta-se a falsidade essencial do hipócrita interior, virtuose do auto-engano.

O resultado é a perda de vitalidade, fruto da desintegração psíquica (NA VERDADE, DA NÃO-INTEGRAÇÃO PSÍQUICA), e o esfarinhamento progressivo da personalidade. (NÃO, NÃO É ‘PROGRESSIVO': O ESFARINHAMENTO ESTAVA SEMPRE LÁ. ELE É QUE SE AGARRAVA A UMA PARTE DESSA ‘FARINHA', E TENTAVA IGNORAR AS OUTRAS:) Idéias sem pernas, fantasias profusas, orgias de racionalização. Agir, só em último caso. Ameaça muito, nada executa; promete e jura de boa-fé, não cumpre. Premido pela fera do ciúme, Bentinho perde o pé de sua realidade interna e o senso de realidade (QUE ELE NUNCA TEVE). Desesperado, decide matar-se (DECISÃO MUITO COMUM EM PESSOAS COMO ELE, QUE FREQUENTEMENTE CHEGAM A UM ‘BECO SEM SAÍDA': NÃO SUPORTAM O ‘AGORA', MAS NÃO ENCONTRAM UM ‘DEPOIS').

Vai à farmácia e compra o veneno. Sai pela ruas levando a morte no bolso. Visita os parentes, janta fora e vai ao teatro – estão levando ‘Otelo'. Quando Desdêmona morre pelas mãos do marido suplicando inocência, o público irrompe em ‘aplausos frenéticos'. Do que o Mouro não foi capaz por causa de um simples lenço! A desproporção agride. A conclusão de Bentinho tem a força de um teorema: ‘O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer'. Do que a distorção egocêntrica aliada à lógica do ciúme – ‘green-eyed monster' – não é capaz? (POIS É. OCORREU-ME DIZER, HÁ ALGUM TEMPO, QUE O CIÚME, NA VERDADE, É A (MAIS OU MENOS VIOLENTA) INVEJA DA LIBERDADE DO OUTRO, PRESUMIDA PELO CIUMENTO, QUE SE SENTE REFÉM DO SEU SUPEREGO E ACHA QUE O OUTRO ESTÁ LIVRE PARA FAZER O QUE QUISER. EM LINGUAGEM TÉCNICA, ESSA LIBERDADE SERIA CHAMADA DE ‘ONIPOTÊNCIA', AQUILO QUE A CRIANÇA VAI PERDENDO GRADUALMENTE AO CRESCER, MAS QUE ALGUNS, AMALDIÇOADOS PELA BRUXA MÁ DAS INFÂNCIAS MAL-SUCEDIDAS, PERDEM DE MODO ABRUPTO – A DEPRESSÃO DA MÃE APÓS ENVIUVAR, QUE LEVA BENTINHO A SENTIR-SE ÓRFÃO, EMBORA A MÃE CONTINUE VIVA.)

Bentinho vagueia até a madrugada. Retorna, mete-se no escritório e decide que é hora de consumar o ato. Manda vir o café para misturar a droga. Uma imagem lhe vem à cabeça: de que Catão, o paradigma da virtude entre os romanos antigos, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Por que não reviver a bela cena? ‘Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé.' Assim disposto, nosso Catão de subúrbio se entrega por alguns instantes à leitura edificante e à ‘cocaína moral dos bons livros'.

Logo outra imagem lhe surge. O que imaginarão os outros quando ele for encontrado ali, estirado no divã, o volume caído ao lado? Bento imitando Catão? Resolve desistir da idéia.. Repõe o volume na estante ‘antes de beber o veneno'. (A PESSOA REGIDA PELO SELF FALSO ANTES LEVA EM CONTA ‘O QUE PENSARÃO OS OUTROS' DO QUE O QUE PENSA ELA PRÓPRIA. DE NOVO, UM TÍPICO COMPORTAMENTO DO ‘EU' FALSO.)

A inversão é sublime. Sozinho no escritório, Bentinho simula a pose de varão romano perante si mesmo – é como se imagina. Quando lhe ocorre que a pose, veiculada nos jornais, pode empanar a integridade do ato, ele dissimula a simulação – é como deseja que os outros o imaginem. Para não parecer o que ele é, um simulacro de Catão (NESTE MOMENTO), finge ser o que não é: ele mesmo Onde termina o hipócrita social, onde começa o hipócrita interior? Como dialética entre pose íntima e pose pública seria difícil pedir mais.

(MAIS UMA VEZ, UMA BELA DESCRIÇÃO DE COMPORTAMENTO TIPICAMENTE ‘FALSO SELF'. PARAFRASEANDO O AUTOR, COMO DESCRIÇÃO DE FALSO SELF, SERIA DIFÍCIL PEDIR MAIS.)

Questão da paternidade

O enigma da paternidade de Ezequiel seria passível de solução: um teste de DNA o resolveria. Mais escorregadia é a questão da paternidade autoral do livro. Machado é o genuíno pai da criança. Mas qual a natureza da relação que mantém com o pai de aluguel da obra, este híbrido de memorialista e moralista cético que é Casmurro?

A opção pela primeira pessoa narrativa permite ao escritor dizer o que pensa (ou não) sem jamais se expor. Machado deita e rola no uso do estratagema.

Em ‘Dom Casmurro', como já fizera em ‘Memórias Póstumas', sua voz se insinua de forma intermitente nas falas do narrador, sem que nunca saibamos se é ele mesmo ou o personagem que tem a palavra. O espantoso talento literário do filho de d. Glória só faz crescer a suspeita de contrabando.

Em algumas passagens o timbre machadiano é inconfundível. Penso nos epigramas lapidares, muito ao estilo dos moralistas franceses do século 17, espalhados como dádivas pelo texto. Mas a presença de Machado não se reduz a pitadas virtuosísticas. O romance traduz uma concepção geral e uma atitude frente à vida. Que visão da condição humana emerge das profundezas do livro?

Amor, religião, política, ciência, poesia, filosofia, amizade – escolha um caminho para a salvação do homem, um sentido possível para o existir: nada escapa ileso do raio-X machadiano. Ele não faz concessões: escava e goza; descasca e ri.

O contraste com Dostoiévski é gritante. Mesmo no mais tenebroso crime do escritor russo há um vislumbre de esperança. Em Machado não há crime: tudo se afrouxa e esmorece. Mas também não há esperança. Machado escarafuncha a miséria inconfessa dos personagens, mete a agulha na ferida e escancara o que há de postiço, mesquinho e absurdo em suas crenças e aspirações. (ITÁLICOS MEUS) ‘Oh! como a esperança alegra tudo', recorda Casmurro de sua mocidade. ‘Amai, rapazes!'

O pessimismo machadiano é um fato, mas como interpretá-lo? Mário de Andrade indagou: seria possível amar Machado? A comparação com outros mestres, mais esperançosos do homem, leva-o a concluir: ‘Aos artistas a que faltem esses dons de generosidade, a confiança na vida e no homem, a esperança, me parece impossível amar. A perfeição, a grandeza da arte é insuficiente para que um culto se totalize tomando todas as forças do crente. A um Machado de Assis só se pode cultuar protestantemente' (QUE BELEZA DE FORMULAÇÃO, AINDA QUE EQUIVOCADA…)

Cito a opinião de Mário de Andrade para me contrapor a ela É mais fácil admirar Machado do que amá-lo. Mas o parecer do modernista Andrade padece de uma falta de empatia e generosidade ainda maior do que aquela que atribui a Machado. O diabo em forma de pessimismo em seu legado talvez não seja tão feio como se pinta.

Machado castiga e escarnece de muita coisa: o sentimentalismo derramado dos românticos; o consolo precário e oportunista das religiões; as pretensões da ciência moderna; as aberrações da política; o ardor fugaz dos amantes; os embustes da moralidade; a vaidade do fazer literário; sonhos de glória; qualquer forma de entusiasmo ou exaltação do ânimo. O capítulo das negativas vai longe.

Seu pessimismo, contudo, não é um lamento queixoso ou a lamúria das ilusões perdidas. Nele não há traço de rancor. O que temos é um pessimismo viril, no qual o distanciamento, o apuro da forma, o humor e uma espantosa acuidade psicológica sustentam uma atitude de crítica perante nossa tragicomédia de subúrbio.

À negatividade de superfície que recobre o projeto machadiano de flagrar nossa miséria inconfessa é preciso contrapor os valores que sua obra afirma: o valor estético da perfeição formal; o valor cognitivo de sua psicologia; o valor existencial do humor como arma de defesa, reação e transcendência diante da vida tal como está.

Parafraseando Albert Camus, para quem o ‘desprezo' seria a resposta do homem diante do seu absurdo, em Machado não há destino que não se transcenda pelo humor.

Quem escreve uma obra, por mais sombria, revela algum otimismo. Se os pessimistas realmente acreditassem no que pregam, não haveria sentido em dizê-lo. Se tudo é falso e nada importa, então por que haveria de importar a falsidade e a desimportância de tudo? Se ela importa, então negamos a premissa -algo tem valor. Mas se não importa, como de resto tudo mais, então voltamos ao ponto de partida – a pregação pessimista também não importa. A vida segue o seu curso. (É EXATAMENTE POR ISSO QUE DETESTO O EXECRÁVEL CIORAN, O HORRENDO EXECRADOR DE TUDO. GIANNETTI, OBRIGADO.)

Imagine um cético da possibilidade do conhecimento, mas que defende o seu ponto de vista com argumentos robustos, evidências cuidadosas e lógica impecável. Instabilidade análoga perpassa Machado.

Por mais compacto e implacável que possa parecer à primeira vista, o fato é que o pessimismo machadiano aloja em si uma singular contradição: ele almeja compartilhar o seu desencanto. A pergunta que não cala é: por que dividir e espalhara assim a desesperança? Em nome do que imortalizar o legado de sua descrença?

(AQUI ESTÁ: O QUE MACHADO PRETENDE É MOSTRAR UM RETRATO, PARA QUE TOMEMOS CONSCIÊNCIA DE COMO SOMOS, SE FORMOS PARECIDOS COM O RETRATO. ESSA É A ‘PSICOTERAPIA' QUE ELE PRETENDE REALIZAR COM A SOCIEDADE HUMANA DE SEU TEMPO (E DE OUTROS TAMBÉM…) TALVEZ, JUNTO COM TODO O RESTO DE SUA INTUIÇÃO, ELE TENHA INTUÍDO TAMBÉM QUE O FALSO SELF SÓ SE TORNA VERDADEIRO POR UM TRABALHO DE DENTRO PARA FORA, JAMAIS POR PRESSÕES DE FORA PARA DENTRO. ELE SE LIMITA, ENTÃO, A MOSTRAR. NÃO CONDENA, NÃO DEBLATERA, NÃO PUXA ORELHAS NEM CHUTA CANELAS. APENAS MOSTRA. E NISSO ELE É, COMO SE DIZ, ‘MORTAL'.)

(MAS O AUTOR DO ARTIGO VAI ADIANTE, DE MODO BRILHANTE, A MEU VER:)

O ato desmente a fala. A busca e o sofrimento humanos não lhes são indiferentes. A vida errada é senha de outra vida, não a que é narrada. (ITÁLICOS MEUS). Do fundo do desencanto compartilhado, a voz humilde da esperança teima em se fazer ouvir, a dizer que há algo por que existe e por que vale a pena viver. (E AGORA, ITÁLICOS E SUBLINHADO MEUS: NESTA SENTENÇA, GIANNETTI SE REVELA GRANDE. A FRASE REPETE, SEM SABER, A MAIS IMPORTANTE CONTRIBUIÇÃO DE WINNICOTT AO ENTENDIMENTO DO GÊNERO HUMANO: É PRECISO QUE A VIDA DÊ A SENSAÇÃO DE VALER A PENA, DE SER REAL, E SÓ A ESPERANÇA É CAPAZ DE AJUDAR ALGUÉM A CHEGAR LÁ, SE O AMBIENTE NO QUAL CRESCEU NÃO O AJUDOU ANTES. E EM SEGUIDA, OUTRA TACADA GENIAL:)  

‘Todas as coisas boas', observa Nietzsche, ‘estimulam à vida, mesmo um bom livro escrito contra a vida'. O pessimismo machadiano, concluo, não é ponto de chegada, mas travessia É preciso passar por ele, mas justamente para assimilar sua força e ir além dele. A casca protege o fruto. (É PRECISAMENTE DESTE MODO QUE WINNICOTT DESCREVE A ‘FUNÇÃO' ORIGINAL DO FALSO SELF: PROTEGER O SELF VERDADEIRO DE UM EXCESSO DE INVASÕES DE SUA LIBERDADE, DE UM EXCESSO DE PROIBIÇÕES À SUA ESPONTANEIDADE. ELE (O FALSO SELF) SE INSTALA, NO INÍCIO, PARA DAR TEMPO AO TEMPO E ESPERAR POR UMA CHANCE DE O SELF VERDADEIRO RECOBRAR A LIBERDADE. O PROBLEMA É QUE ÀS VEZES ESSA CHANCE NÃO CHEGA, E AÍ O FALSO SELF ‘TOMA O PODER' E SE DECRETA GOVERNANTE, NÃO ‘PROTETOR' – COMO ACONTECE COM AQUELES TUTORES DE REIS-CRIANÇAS, QUE ÀS VEZES NÃO CEDEM O POSTO QUANDO ESTES CRESCEM. BENTINHO, OBVIAMENTE, É UM CASO DESTE TIPO.)

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EDUARDO GIANNETTI é economista, cientista social e professor do IBMEC-SP. É autor de ‘O Valor do Amanhã' (Companhia das Letras), entre outros livros.

DAVY BOGOMOLETZ é psicanalista, estudioso (e tradutor) de Winnicott, e autor de diversos artigos sobre a psicanálise winnicottiana e sobre temas judaicos de interesse psicanalítico, ou sobre temas psicanalíticos de interesse judaico. Muitos desses artigos estão publicados. Livros, ainda nenhum.

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