RedePsi - Psicologia

Dicionário

psicanálise [por Jung]

Haverá poucos leitores que desconheçam a trajetória do relacionamento Freud-Jung: que Jung leu A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900) em 1900 e releu em 1903; que Jung enviou a Freud um exemplar de seus Studies in Word Association em 1906 e uma correspondência se iniciou; que isso se tornou rapidamente de grande importância para os dois homens; que se encontraram em 1907 e conversaram durante treze horas; que Freud via Jung como o Prín­cipe Herdeiro do reino psicanalítico (Freud era dezenove anos mais velho); que o não-judaísmo de Jung era uma dádiva para Freud, pois ele receava que a psicanálise se tornasse uma "ciência judaica"; que eles visitaram os EUA juntos em 1909; que tensões pessoais e discussões conceituais começaram a intervir; que as relações eram difíceis por volta de 1912, quando Jung publicou Wandlungen und Symbole der Libido (que se tomou posteriormente Symbols of Transformation); que Jung antecipou uma ruptura final com essa publicação; e que a ruptura se deu em 1913. Depois disso, Jung designou sua abordagem da psicologia como "Psicologia Analítica".

Os dois homens interagiam um com o outro. Freud fornecia a Jung a experiência de uma figura paterna de forte convicção e co­ragem moral que lhe faltara (Jung, 1963). Além disso, o pensamento de Freud servia de quadro de referência estrutural dentro da qual explorar e criticar. Ademais, Jung recebeu o status de alguém que tinha sido sagrado herdeiro. Finalmente, a influência de Freud sobre Jung como comentador de seu trabalho clínico, com tudo que estava implícito, era considerável. A contribuição de Jung para a psicaná­lise, como a via Freud, foi resumida por  Papadopoulos (1984):

(1) Introdução de métodos empíricos, experimentais;

(2) O conceito do complexo;

(3) A instituição da análise de treinamento (análise didática);

(4) O uso de ampliações mitológicas e antropológicas;

(5) A aplicação da teoria psicanalítica e terapia psicanalítica       à psicose.

As avaliações da ruptura Freud-Jung variam grandemente. Alguns adeptos leais de um ou do outro lado vêem a ruptura como resultando no fato de se haver preservado a pureza de idéias (Glover, 1950; Adler, 1971). Outros consideram catastrófico o que aconte­ceu, vendo a Freud e Jung como tendo exercido uma influência de equilíbrio um sobre o outro, uma influência que, portanto, estava perdida (Fordham, 1961). De modo semelhante, houve muitas in­terpretações da razão por que o rompimento se verificou e a psico­biografia forneceu novas especulações envolvendo problemas homoe­róticos, conflitos de pai/filho, incapacidade de Jung de encarar a sexualidade, o complexo de poder de Freud, a tipologia dos dois homens. Às vezes Freud e Jung são reconhecidos como escrito­res cujas obras partiam de perspectivas de duas visões do mundo diferentes.

É possível identificar seis áreas de desacordo das quais se ori­ginou uma grande parte do subseqüente pensamento de Jung e que servem para delinear as contínuas diferenças entre a psicanálise e a psicologia analítica.

Primeiro, Jung não podia concordar com o que via como uma interpretação exclusivamente sexual da motivação humana, de Freud. Esta opinião levou-o a modificar a teoria da libido, de Freud.

O segundo dos desacordos de Jung era com a abordagem geral de Freud da psique, que, na opinião de Jung, era mecanicista e causal. Os seres humanos não vivem de acordo com leis análogas aos princípios físicos ou mecânicos.

A terceira crítica que Jung tinha contra Freud era de que existia uma distinção demasiadamente rígida feita entre a "alucina­ção" e "realidade". Por todos os seus escritos, a preocupação de Jung é com a realidade psicológica conforme experimentada pelo indivíduo. Neste contexto, o incons­ciente não deve ser julgado um inimigo, mas sim, antes, como algo potencialmente útil e criativo. Os sonhos, por exemplo, na perspectiva de Jung, deixam de ser considerados algo enganoso, exigindo decodificação. Em vez disso, alega que os sonhos revelam a situação inconsciente na psique exatamente como é; mais freqüentemente o oposto daquilo que é pertinente na consciência. Por trás dessas diferenças a respeito dos sonhos jaz uma abordagem diferente dos símbolos e da interpretação.

A quarta área de divergência dizia respeito ao equilíbrio de fatores (constitucionais) inatos com os do meio ambiente na forma­ção da personalidade. Cada um dos dois percebia diferentemente esse equilíbrio. Jung, posteriormente, viria a sofisticar mais suas afirmações sobre padrões inatos, porém é interessante especular sobre o que poderia haver acontecido caso Freud tivesse continuado desenvolvendo sua noção de que alguns elementos no inconsciente jamais foram conscientes, uma tese que teria levado a um conceito tal como o "arquétipo" (Freud, 1916-17). Em vez disso, tanto antes como depois de suas revisões teóricas fundamentais da década de 1920, Freud enfatizou o inconsciente como um repositório de material reprimido, porém outrora consciente. Embora do id se afirmasse ser, em parte, hereditário e inato, esta idéia não foi plenamente aceita até seu uso por Melanie Klein, um pouco mais tarde (Klein, 1937). De modo semelhante, as primeiras referências de Freud às "fantasias primevas" como "herança filogenética" não são enfatiza­das em exposições subseqüentes de seu pensamento.

Quinto existe uma diferença de opinião que se tornou mais aguda ao longo do tempo com relação à origem da consciência e moralidade.

A sexta área de desacordo dizia respeito ao status nodaI do complexo de Édipo no desenvolvimento da personalidade. A ênfase de Jung foi posta mais no relacionamento primal do bebê e mãe.

Em suas objeções a algumas das idéias de Freud, Jung mostra uma notável presciência, pois antecipava muitos dos desenvolvimen­tos que deviam realizar-se mais tarde na psicanálise, à medida que outras opiniões eram desenvolvidas (ver Samuels, 1985a). A natu­reza pioneira da contribuição de Jung torna questionável o "hiato de credibilidade" que o acompanhou (Hudson, 1983).

Os empréstimos que a psicologia analítica fez da psicanálise naturalmente foram imensos. O próprio Jung parece haver ficado com sua impressão da psicanálise como era quando deixou o movi­mento. Isso o leva para aquilo que agora parece uma crítica simplista e, eventualmente, sua dependência das idéias psicanalíticas como as conhecia conduz a equívocos. Psicólogos analíticos con­temporâneos confiaram mais na psicanálise no concernente à técnica analítica e em busca de esquemas coerentes do desenvolvimento pre­coce. A psicologia do seIf de Kohut também está se tornou uma influência importante.

A publicação (1983) das conferências que Jung deu para um grupo de estudos na Universidade da Basiléia (o Zofingia Club) pôs em aberto, até certo ponto, a questão da influência de Freud sobre Jung. Naquela ocasião (1896-7), Jung nunca ouvira falar de Freud. Antes de um estudo completo dessas conferências, acreditava-se que as raízes da psicologia analítica estavam exclusiva­mente na psicanálise. Muitas pesquisas posteriores de Jung encon­tram uma primeira expressão nessas conferências, e também podemos retirar delas o quadro mais nítido possível do fundamento conceitual da obra de Jung. Em 1897 Jung leu um artigo intitulado "Some Thoughts on Psychology" ("Alguns Pensamentos sobre a Psicologia"). Nele, após estabelecer um contexto com citações de Kant e Schope­nhauer, ele discute a existência de "espíritos" além do corpo e "em um outro mundo". As idéias são notavelmente semelhantes àquelas que mais tarde aparecem como a teoria do princípio psíquico autônomo; esta é a "alma" que é maior que nossa consciência. Posteriormente, no desenvolvimento de Jung, essas sementes flores­ceram na teoria da energia psíquica e no conceito do self.

Em suma, como escreve Von Franz em sua introdução às Zofin­gia Lectures (Conferências de Zofíngia), "aqui, Jung, em primeiro lugar, menciona indiretamente a idéia de uma psique inconsciente". E, o que é mais importante, afirma-se que o "inconsciente" é intencional em seu comportamento e independente da lógica de espaço-tempo. Então, Jung ordena os campos dos fenômenos espiritua­listas e telepáticos para justificar e apoiar aquilo que mais tarde chamaria de realidade psíquica. A conferência conclui-se com um argumento pela moralidade na ciência (nessa ocasião, uma condenação da vivissecção) e por uma abordagem da religião que levasse a sério seus aspectos irracionais.

Além dos filósofos já mencionados, Nietzsche exerceu influência sobre Jung. E a obra de Jung situa-se na tradição platônica. Ao considerarem-se outras influências não-freudianas sobre Jung, deveriam ser mencionados os nomes de Flournoy e Bleuler. Este último era chefe de Jung em Burghölzli, o hospital de doenças mentais de Zu­rique, onde Jung trabalhou de 1900 a 1909. Bleuler criara uma atmosfera em que as idéias de Freud eram bem-vindas e usadas ativamente. Até por volta de 1908, Bleuler era considerado por Freud como o mais im­portante adepto da causa da psicanálise. Entretanto, Jung foi capaz de convencer Freud de que Bleuler era ambivalente e não se devia confiar nele, e desse modo o vínculo foi-se desgastando gradativa­mente. Jung poucas vezes menciona Bleuler em sua autobiografia (1963) e parece ter tido sobre ele uma opinião não muito positiva. Janet, Charcot e James também deveriam ser mencionados como significativas influências sobre Jung.

Finalmente, embora não tendo total simpatia para com o ponto de vista deles, Jung fazia uso da obra de Wundt e de outros psicó­logos experimentais alemães do final do século XIX.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter