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'Dasein' e 'Sosein' em Kurt Schneider

Kurt Schneider (1887-1967), ao aplicar à clínica o procedimento jasperiano da compreensão, sentiu necessidade de modificá-lo.

Estabelece de início, a diferença entre a compreensão dos "conteúdos" vivenciais, da compreensão das "formas" da vivência. Deixando à parte os conteúdos psíquicos, valoriza a apresentação de qualquer forma anômala de vivência como o traço definidor por excelência do mórbido em sentido estrito, onde o processo aparece.

Esta mudança no objeto da compreensão leva a certa reforma metodológica. O procedimento válido para apreender a estrutura de uma vivência é bastante diferente do procedimento aplicado à captação de uma conexão de motivos, que é o objeto da compreensão dinâmica jasperiana. A compreensão estática de Jaspers é a semente da fenomenologia clínica e da antropologia fenomenológica. A inves­tigação acerca de se algo experimentado pelo indivíduo é psicologicamente compreensível ou não, isto é, se está conectado ou não por uma relação de motivo ou de sentido com o resto de sua vida psíquica atual, exige do investigador a penetração empática no indivíduo. Muitos autores levantaram a voz para atribuir a este procedimento um matiz eminentemente subjetivista.

Por outro lado, para estudar a forma da vivência, temos que repre­sentá-la. Mais que um compreender rigorosamente entendido trata-se aqui de um entender. Vale dizer, mais que de um modo afetivo e dinâmico de compreender, se trata de um modo racional e estático de compreender. O ins­trumento sine qua non desta tarefa já não reside mais na penetração em­pática no doente, mas na representação do fenô­meno. O trabalho toma assim um caráter mais objetivo.

Na clínica psiquiá­trica, contudo, não é fácil delimitar a fronteira entre a compreensão afe­tiva e a compreensão lógica. O próprio Schneider (1962), talvez, fun­damentando-se nisto, de um lado, e pensando na incompreensibilidade do Dasein (ser-aí) psicótico, de outro, repete com particular insistência que o fenômeno da per­cepção delirante, verdadeiro arquétipo da forma anômala de vivência, é incompreensível tanto no plano racional como no afetivo.

Acrescentemos a semelhantes investigações metodológicas, que a primei­ra formulação do problema por parte de Schneider (1932) encerra, em relação à concepção de Jaspers, uma radical mudança no objeto da com­preensão. A falta de conexão de motivo em um conteúdo psíquico, enquanto elemento definidor do processo psíquico foi substituído assim, pela forma anômala de vivência.

Posteriormente, Schneider (1953 e 1962) inaugura uma nova via na compreensão psicopatológica ao transmitir os conceitos do Dasein e do Sosein (ser-assim) do estado psíquico. Aqui aparece o processo, como em qualquer alteração psíquica mórbida, apresentando uma ruptura da continuidade do desenvolvimento da vida psíquica. Para reconhecer desta perspectiva a presença ou a ausência de ordenação de sentido no estado psíquico dado ou presente, não há que pesquisar a vida psíquica atual, buscando uma possível conexão de motivo, tarefa própria da psicopatologia compreensiva dinâmica jasperiana, mas o que se deve investigar a fundo é a relação entre o estado psíquico presente, e a totalidade do desenvolvimento histórico-vital. Em outras palavras: o psíquico psicologicamente incompreensível se mostra, segundo o primeiro critério formulado por Jaspers, por faltar uma relação de sentido com a atualidade psí­quica, e, segundo o atual critério de K. Schneider, por faltar uma continuidade de sentido na plenitude do desenvolvimento histórico-vital.

Há de se entender a totalidade como relativa no sentido de Jaspers: "O todo é sempre a idéia de um infinito, algo que não podemos esgotar nunca. O todo pensado é o esquema daquela idéia que manejamos em nossas operações. Mas não há que se tomar o esquema pela própria idéia. O conhecimento incorre em erro quando pretende fazer da totalidade um objeto firme e abarcável.

K. Schneider (1953 e 1962), ao propor assim a continuidade de sentido como a interpretação básica do desenvolvimento e a ruptura da mesma como a básica interpretação do processo, introduz uma reforma nos aspectos objetal e metodológico do dilema processo / desenvolvimento. Toda in­vestigação que na atualidade persiga elucidar se um estado psíquico pertence ao desenvolvimento ou ao processo, há de tomar como objeto central a continuidade do sentido de vida psíquica. Mas, ao mesmo tempo, não deve prescindir de estudar a forma da vivência, que, erroneamente, foi equiparada por alguns autores com o Dasein do estado psíquico. Este Dasein schneideriano do estado psíquico atual deve definir-se, pelo contrário, como a continuidade de sentido, a conexão de sentido histórico-vital ou a legitimidade de sentido, tomando-se em qualquer caso este sentido como qualidade presente ou ausente no estado psíquico atual.

Witter (1963) analisa em profundidade os conceitos schneiderianos do Dasein e do Sosein. Só são diferentes em grau. Ambos estão referidos aos temas vivenciais. Que o "Dasein" é somente uma modalidade temática, aparece claramente na expressão que K. Schneider (1953 e 1962) dedica às psicoses esquizofrênicas e ciclotímicas: "Desligam a continuidade legítima de sentido do desenvolvimento da vida". O "que" do Dasein não é outra coisa que o "que" do Sosein, mas tomando uma referência tem­poralmente muito mais ampla. A legitimidade de sentido do Sosein en­cerra o problema da dependência da vivência atual com respeito a um espaço breve do passado. A legitimidade de sentido do Dasein se refe­re a um espaço de tempo muito mais prolongado, inclusive à totalidade do desenvolvimento da vida, isto é, à continuidade de sentido da vida psí­quica.

Esta análise de Witter (1963) omite, contudo, a outra face do problema: o aspecto formal. As diferenças entre Dasein e Sosein têm aqui também um caráter temporal. Frente ao "Sosein" como forma a­tual da vivência, aparece o Dasein como continuidade estrutural da trama psíquica. Condensando agora os pontos de vista de Witter (1963) com as posteriores observações, chega-se às conclusões de que o Sosein recolhe os aspectos temáticos e formais de um corte transversal da vida psíquica atual, e de que o Dasein representa os aspectos temáticos e formais de um corte longitudinal da vida psíquica que abarca a atuali­dade psíquica e o passado biográfico completo.

Por outro lado, o motivo atual do conteúdo do estado psí­quico como ponto de referência para distinguir o processo do desenvolvimento ficou definitivamente arranjado. Uma investigação praticada com certo rigor sempre descobre relações de motivo nos temas psicóticos. Po­deria dizer-se que a vida psicótica, e, portanto, também a processual, é psi­cologicamente compreensível vista da interioridade da psicose.

Por exemplo, podemos encontrar quase sempre um motivo atual para o tema da vivência delirante primária. Além disso, a motivação, como indica Bürger-Prinz (1950), permanece inacessível em muitos comportamentos que no demais são normais. O psicologicamente incompreensível que nos permite admitir a aparição de um processo, é que o indivíduo haja se tornado delirante e a forma de experimentar o seu delírio. O fenômeno de "tornar-se delirante" leva implícita a ruptura da continuidade significativo-estrutural na biografia do ser.

A pretensão de captar os radicais comuns ou essenciais nos objetos que servem de base à distinção entre o processo e o desenvolvimento, nos leva a estabelecer as duas classificações seguintes. De uma perspectiva tem­poral, a continuidade de sentido enquanto curso histórico-vital, é a contra­posição do motivo da vivência e da forma da mesma, posto que ambos caracteres vivenciais estão encerrados na vida psíquica atual.

Quadro A

Perspectiva temporal dos objetos da compreensão psicológica
1. Desenvolvimento histórico-vital
Continuidade de sentido ou Iegitimidade de sentido (K. Schneider)
2. Atualidade psíquica
Motivo da vivência (Jaspers)
Forma da vivência (K. Schneider)

Outra classificação factível destes mesmos objetos atende a se eles im­plicam uma modificação da estrutura da vivência ou do conteúdo da vivência. Desta perspectiva analisemos os três objetos até aqui considerados.

Em primeiro lugar, a conexão de motivo entre o vivido e a vida psíquica atual restante – que é o dado por Jaspers preferentemente manejado – parte de considerar o "que" do vivido, e perma­nece alheio ao "como" do vivido. Está imersa, pois, nos conteúdos psíquicos.

Em segundo lugar, a forma da vivência é uma expressão equiparável à estrutura da vivência. Finalmente, a continuidade do sentido da vida psíquica, está em princípio referida aos conteúdos psí­quicos. Assim é que o sentido guarda sempre uma imediata relação com os temas e permanece alheio em princípio às formas e às estruturas.

Vale a pena chamar a atenção especialmente sobre este ponto, porque na literatura existe certa confusão. Por exemplo: há autores que consi­deram os temas psicóticos como um material sempre acessível à compreensão psicológica, e fundamentam sua exposição no desligamento da continuidade de sentido.

Há dois modos de tomar o conteúdo psíquico como objeto da compreensão psicológica. Por um lado, no sentido schneideriano da continuidade de sentido, onde se trata de conectar o tema vivenciado com a totalidade histórico-vital. Por outro, no sentido jasperiano da relação de motivo da causalidade psíquica, onde se trata de conectar o tema com a atualidade psíquica; quase sempre é possível achar na atualidade psicótica uma relação de sentido positiva com os próprios temas psicóticos, pelo que, este objeto da compreensão psicológica já não tem força para enfrentar o problema desenvolvimento-processo.

Recuperando o fio discursivo: a continuidade de sentido não somente guarda relação com os conteúdos, mas também com a estrutura. Está condicionado por uma ordenação estrutural ou formal da trama psíquica. Por isso, é preferível substituir a expressão "continuidade de sentido" por "ordenação estrutural e continuidade significativa".
Esta proposta tem certa analogia com as idéias de Kisker (1955): enquanto o conceito da conexão de sentido ou motivação só tem valor para a fenomenologia descritiva e estática, o da legitimidade de sentido permanece aberto para as interpretações psicodinâmicas e gené­tico-formais.

Uma vez deixado de lado o motivo da vivência por não ser um critério válido, e termos dado à continuidade de sentido uma dupla vertente conceitual, podemos tentar definir à luz desta interpretação o fato novo e psicologicamente incompreensível que define o processo psíquico. O "novum" processual se deixa caracterizar pela apresentação de um ou vários traços distribuídos em três ordens distintas: a da forma anômala da vivência, a dos temas que carecem de sentido histórico-vital e a da desintegração da ordenação estrutural. Deste modo, o espectro de traços diferenciais entre o processo e o desenvolvimento experimenta uma considerável dilatação e o método investigativo ad hoc cobra maior elasticidade e um caráter misto, objetivo-subjetivo.

Quadro B

Perspectiva temático-estrutural dos objetos da compreensão psicológica.
1. Perspectiva temática
Motivo da vivência (Jaspers)
2. Perspectiva estrutural
Forma da vivência (K. Schneider)
3. Continuidade de sentido (K. Schneider)
Continuidade significativa (P. temática)
Ordenação estrutural (P. estrutural)

Assim, talvez possa se agregar novas luzes para o problema processo / desenvolvimento. Mas não se espera considerar este problema como resolvido. "As dificuldades fáticas – diz Haefner (1963) – não podem considerar-se solucionadas enquanto a empírica comprovação da continuidade de sentido e sua interrupção não forem liberadas da grande fonte de erros que emanam da penetração individual e da compreensão de motivos". Seria bom suprimir-se a frase "a compreensão de motivos", posto que, considera-se muito escassa a utilidade deste dado para enfrentar devidamente o problema: quanto de processo e quanto de desenvolvimento existem neste doente? Este modo de propor o problema, por outro lado, se desvia radicalmente do dilema jasperiano: processo ou desenvolvimento.

Além disso, como adverte López lbor (1958), "a distinção entre os pro­cessos e as variantes psíquicas não é, contudo, tão taxativa como pretende K. Schneider". A realidade clínica oferece formas de transição em múltiplas direções.

O método da compreensão psicológica, apesar de todas as precisões e contribuições agregadas, como aponta Witter (1963), permanece rela­tivizado, já que não permite diferenciar de um modo absoluto a anormalidade qualitativa (psicose) da anormalidade quantitativa (variante psíquica anormal). O marco clínico deste labor compreensivo tem gravado uma escala bipolar, cujos extremos são a anormalidade típica e o mórbido em sentido estrito, existindo entre ambos uma ampla zona de trânsito. A anormalidade típica reúne estas condições: a de ter uma índole psicógena, a de encerrar uma anomalia psíquica puramente quantita­tiva, de grau importante e valor negativo, e a de ser acessível à com­preensão psicológica. Estão descritos psicopatologicamente como desenvolvimento e reação. A doença mental em sentido estrito reúne as condições seguintes: a de ter uma origem correlata somática, a de representar uma anormali­dade psíquica qualitativa e a de ter correlação somaticamente explicável e psicopatolo­gicamente incompreensível. Sua descrição psicopatológica se verifica como fase ou processo.

Sobre as conexões funcionais existentes entre o tema e a forma da vivência se fizeram poucas investigações. Estas conexões pare­cem experimentar uma inversão no processo psíquico. Um tanto do desenvolvimento da personalidade se priva a continuidade de sentido significativo até o ponto de modelar não somente os temas vividos, mas também, o modo de vivê-los, no processo psíquico aparecem novas formas de vivên­cia que condicionam os temas a elas imanentes ou ambos são condicionados por uma alteração, de caráter mais geral.

Pense-se, por exemplo, na per­cepção delirante, cujos conteúdos são quase sempre auto-referenciais. O espasmo da reflexão que obriga o homem a permanecer centrado em si mesmo, segundo Conrad (1958), á a raiz comum desta apofania exterior e do conteúdo auto-referencial da mesma.

K. Schneider ao referir-se à legitimidade de sentido existente ou não na conexão entre a forma e a temática, adverte que tal conexão entre forma e conteúdo, ainda que algo fundamental, não pode utilizar-se na prática por ser demasiado subjetiva e relativa. Kisker destaca que a fal­ta de uma conexão de sentido entre a temática e a forma carece de significação para o diagnóstico de processo.

Notas:

1. Não confundir com Carl Schneider, médico-nazista, misto de neurólogo e psiquiatra, que fez experiências em anima nobile nos Campos de Concentração alemães.
2. Bibliobrafia com o Autor.

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