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As funções materna e paterna em psicanálise

Desde há muito se fala em psicanálise do conceito de “função”, seja ela materna ou paterna, em vez da ênfase anteriormente atribuída aos “laços consangüíneos”, os quais mantém sua importância como auxiliares, mas nada definindo em termos de avanços terapêuticos, bem como no que tange ao aprofundamento na fantasmagoria inconsciente do paciente. Importante ressaltar também que em psicanálise, não se faz diagnóstico pelos sintomas, mas sim pelas “linhas de conflito”, evidenciadas na problemática existente.
Pretendo com a abordagem dessa temática, enfatizar o papel que desempenha em psicanálise a questão da "função". Com isso objetivamos tirar o matiz dado aos laços consangüíneos e, transferi-los para aquelas pessoas, estas sim, que desempenham um papel de extrema importância na fantasmática inconsciente das crianças.

Logo de início quero citar como uma ilustração que me parece emblemática sobre esse tema, um filme muito antigo, mas que com um pouco de sorte, ainda pode ser encontrado ou encomendado nas boas locadoras. Trata-se do filme: "Os Girassóis da Rússia", tendo como um dos intérpretes principais o excelente ator Marcello Mastroianni.

O personagem interpretado por ele, depois de sofrer muitos maus tratos, acaba sendo acometido por uma amnésia severa, nada mais se lembrando sobre a sua vida pregressa, incluindo-se o fato de ser casado. É salvo por uma mulher que cuida dele e com quem vem a se casar e a ter uma filha dessa união.

Sua esposa de fato, recusa-se a acreditar que ele tenha morrido em batalhas militares e sai ao mundo em sua procura. Depois de muito pesquisar, recebe notícias de seu possível paradeiro, pssando a dirigir-se para lá imediatamente. Ao chegar à casa que teve como referência, é atendida pela atual esposa de seu marido que a faz entrar. Na sala está também uma menina com uma conduta pouco educada. A mãe, meio que sem graça, pede desculpas a ela dizendo que a menina é assim, 'porque não tem 'avó'".

Surge então a primeira pergunta: "quem nessa cultura está responsabilizada pela educação das crianças?" Note-se que a mãe aqui, aparece como uma mera "coadjuvante" na interação com a filha biológica.

Note-se que aqui, eu realmente estou tentando tirar os matizes das relações consangüíneas e transferi-las para quem efetivamente representa essas figuras de pai e mãe na fantasmática inconsciente das crianças. Quero lembrar também que, no exemplo citado, quando me refiro à figura da avó, não necessariamente estou me referindo quer à mãe da mãe ou mesmo do pai, mas sim aos seus representantes simbólicos contidos no imaginário da criança.

Todos devemos lembrar da velha história da "sementinha", que é colocada para a criança como resposta absolutamente insatisfatória às perguntas sobre às suas origens. No entanto, todo analista que já passou pela sua própria análise, acaba por entender que o motivo que não nos permite responder à pergunta da criança, é porque continuamos a fazê-la a nós mesmos, mesmo na condição de adultos. É sabido que em psicanálise temos uma teoria que, em tese, nos dispensaria de termos que refletir mais a esse respeito, que é exatamente à fantasia de "cena primária", ou mesmo "cena primitiva". Certamente, não se constitui numa tarefa difícil a qualquer analista se representar a cena primitiva de um outro, mas no entanto representá-la em relação a si próprio, em nada constitui-se numa tarefa fácil. Quando refletimos naquilo que os nossos pais fizeram, parece que "empacamos", na "coisa obscena".

Devemos notar que as dificuldades não são idênticas para homens e mulheres. Para as mulheres existe a "saída" de dizer: "eu lhe carreguei na minha barriga", uma vez que ela tem bem representada para si própria, como ela saiu do ventre materno.

No caso de um homem, temos que ter em conta que: "O que faz um homem, ou o que ele diz que faz ao fazer amor"? Talvez tratar-se-ia de uma tentativa de mitigar a angústia, ou mesmo fugir da "morte", uma vez que o amor e a morte estão ligados.

"O que diz um homem da sua 'função', ao dizer que faz amor com uma mulher, ou mesmo que faz amor com outro homem?". O que nos parece interessante ressaltar, é a presença de uma representação quase que da ordem do "ingênuo", mas que encontra-se sempre presente. O homem muitas vezes toma-se por Deus e, assim sendo, fez alguém à sua imagem e semelhança: "É a cara do pai"! Mesmo quando nasce uma menina, o pai acaba por dizer: "Ah, era justamente uma menina que eu queria", mas a idéia de imagem e semelhança acaba por insistir.

Uma situação que nos parece extremamente interessante, até com uma grande valia clínica, é a que enfrentamos quando invertemos a questão.

Perguntamos ao pai: "Que representação você tem de seu pai". "Se você foi feito à sua imagem e semelhança, isso lhe agrada?" Então, se o homem diz: "Vou fazer um filho à minha imagem e semelhança, que irá sobreviver a mim, garantir a minha imortalidade, imaginamos que esse mesmo homem pode perguntar-se que imagem se faz do seu próprio pai e, principalmente: "Qual a imagem que tem de seu pai, quando este o estava fazendo?" Me parece que é exatamente aqui que estamos diante do "obsceno e irrepresentável".

Como poderíamos contornar essa situação?

Verificamos que o mais "cômodo" é a imagem do "pai morto".

Podemos ter suas fotos, sua imagem, sua história, falamos dele, mas aquilo que é da ordem do irrepresentável permanece oculto.

Sèrge Leclaire, indubitavelmente uma das maiores expressões da psicanálise na França, nos diz: "Há um caso em que sempre encontrei o que poderia ser a imagem de um pai: a criança concebida pelo pai em licença, durante a guerra. Mas, no fundo, creio que não há imagem do pai na função de pai, isto é no momento em que faz um filho. Ou então, só existe pai depois que ele não está mais ali. É quando não existe pai que ele pode existir".

De qualquer forma, cada vez que algo da representação do pai ou que incida sobre a virilidade paterna desaparece, podemos notar que surge a angústia. "Precisamos não apenas do bezerro de ouro que está no santuário, mas também do ídolo que se encontra no interior do homem"(Leclaire). Fazemos notar que esse ídolo é um ídolo com falo, ou mesmo um "ídolo-falo".

===== Como um homem se defende da angústia de não ter um modelo de homem?

Ele busca o modelo da mulher, já que veio de uma delas. Então, estaríamos autorizados a dizer que o que todo homem faz e que sempre fez é tentar fabricar a "mulher-mãe, mãe e não mulher. Sabemos como também o sabem os sociólogos, que o que organiza a sociedade e também o aparelho psíquico é a estrutura edipiana, fundamentada na proibição do incesto. Dessa forma, gostaria de retomar as palavras sábias de Sèrge Leclaire: " O que poderia ser a função do pai?" "O que o homem pode fazer, além de ser um reprodutor que glorifica a mãe?" "Será preciso modificar as imagens dessa função que talvez não se chamará mais de "pai" e ter a coragem de afirmar que um homem existe sem modelo, que ele é vivo, que ele está sempre nascendo. Ele não é apenas uma repetição—isso é a morte—mas, ele é vivo. Isso equivale a dizer que para viver, ele não precisa fabricar a mãe continuamente. O que ele pode fazer é dar testemunho", deixando de repetir (morrer) constantemente, para poder se mover com uma certa independência.

Gostaria de encerrar essas minhas reflexões, enfatizando que podemos notar em certas concepções psicoterápicas existentes, que sempre se procura, essencialmente quando se trata da psicoterapia de crianças, convocar os pais e os irmãos da criança, para que participem das entrevistas preliminares ao início do atendimento propriamente dito. Trata-se de uma conduta absolutamente natural. Mas, o que eu quero, à luz dessas minhas reflexões anteriores chamar a atenção, é sobre a importância de que se esteja muito atento para aqueles que, efetivamente, ocupem as posições maternas e paternas no imaginário dessas crianças, caso contrário estaremos anacrônicamente retornando à importância antes atribuída aos "laços consangüíneos", que embora sejam importantes, não nos garantem absolutamente nada em termos de avanço terapêutico, além de nenhuma possibilidade de acesso à fantasmagoria inconsciente da criança.

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