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Paixão – Phatos – Psicopatologia

Com esse artigo pretendemos dar continuidade ao anterior, seguindo na linha de refletir sobre a psicopatologia dentro de uma abordagem psicanalítica.

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luis de Camões

Logos nos primeiros versos o autor fala do desassossego que esse vínculo mais intenso traz para o sujeito, é fogo e ferida que não se vê, não se sente, e o mais descritível desse aspecto: “É um contentamento descontente”. O prazer e a angústia frente ao objeto da paixão.

Fala-se de uma diferenciação entre o que se chamaria amor, daquilo que chamamos paixão. Mas, sabemos por outro lado que, maioria das vezes, esse tipo de ligação começa como paixão. E o que será que transforma o sentimento “louco” da paixão em “doce amor”, que constrói uma relação de respeito e afinidades? Será possível determinar isso? E se o amor é esse desvario, porque é cantado e buscado com tanto ardor? O que há nele que salva e o que dele enlouquece? O que disso determina ou é determinado quando se pensa em psicopatologia?

“O amor – definido em dicionário como sentimento que impulsiona o indivíduo para o belo, digno ou grandioso grande afeição de uma pessoa a outra do sexo oposto* ligação espiritual, amizade desejo sexual – tem sido descrito há séculos, por estudiosos de várias áreas do conhecimento. O primeiro deles foi Platão (427 a.C. – 347 a.C.) que, em o "Banquete", definiu o "amor autêntico" como aquele que liberta o indivíduo do sofrimento e conduz sua alma ao "banquete divino" e sugeriu a distinção deste com o "amor possessivo", que persegue o outro como um objeto a devorar”. (C)

*ou também, do mesmo sexo, segundo todas as mais atualizadas concepções.

Essas não são perguntas para as quais se possa encontrar uma resposta satisfatória, talvez a “idade da razão” seja justamente onde se encontram algumas respostas na direção do controle desses impulsos. Mas por outro lado, temos como conceito da idade da razão algo que “endurece” o olhar humano acerca do mundo, que fala de lucidez mas também de certo “perder as esperanças”.

A psicanálise desde seus primórdios voltou seu olhar para esse sentimento, a paixão, primeiro como sintoma histérico, depois como base de toda formação do psiquismo, através do estado de completude e falta experimentado por todo sujeito psíquico em relação ao seu primeiro objeto de amor, sua mãe. Esse primeiro objeto marcará para sempre, com sua possibilidade de cuidar saudavelmente, ou o que Winnicott chamará de “suficientemente boa”, toda dinâmica do amor, todo matriz desse sentimento, fixado e reeditado na linha do tempo das fixações. Ela, essa matriz fundada na primeira relação, ditará inclusive o “colorido” do amor de transferência, que é onde queremos aqui nesse artigo, colocar nosso olhar.

Não precisaremos de muita investigação para logo encontrar o olhar psicanalítico atentamente debruçado sobre a paixão, suas variações, nuances, patologias etc. O mito de Eros e Psiquê e o amor que os une e que nos leva ao psiquismo humano, mistura entre o sagrado(divino) e o mortal em sua corporeidade e dor, prazer e frustração, amor e ódio, desamparo e aceitação.

“A psicopatologia, sendo um discurso a respeito do pathos psíquico, está intimamente relacionada com a psicoterapia. Essa atividade, vinda da antiguidade grega, ou mesmo sendo anterior a ela, define a medicina como a arte de se ocupar dos fenômenos da paixão, do amor”

“Em alemão se empregam os verbos erleben (presenciar) – erfahren (experimentar). "Psicopatologia" literalmente quer dizer: um discurso do sofrimento que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno. Como paixão, torna-se uma prova e, como tal, sob a condição de que seja escutada por alguém, traz em si mesma o poder de cura”.
(Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental – vol III)

Para muitos pesquisadores e teóricos em psicanálise, ou outra áreas de pesquisa em saúde mental ou emocional, como muitos preferem chamar, estudar psicopatologia ou falar em psicoterapia seria sempre falar, necessariamente, em paixão, phatos, amor.

“O pesquisar e o refletir sobre a posição ocupada pelo psicoterapeuta – quer seja psicanalista, psiquiatra clínico (expressão empregada por German Berrios), psicólogo clínico, fonoaudiólogo ou enfermeiro psiquiátrico – na sociedade contemporânea leva-nos a afirmar e reafirmar a natureza psicopatológica do humano caracterizado por manifestar constantemente discurso sobre o pathos psíquico, ou seja, palavra sobre aquilo que, tendo estatuto de força, submete fazendo sofrer. Além disso, como temos dito e escrito, de pathos deriva-se "paixão" e "passividade", ou seja, tudo o que faz ou que acontece de novo, do ponto de vista daquele ao qual acontece. Nesse sentido, quando pathos ocorre, algo da ordem do excesso, da desmesura, se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorear desse acontecimento, a não ser como paciente” (B)

Nesse sentido não seria, como poderemos supor, incorreto afirmar que, enquanto psicanalistas, estaremos sempre debruçados, ao enxergar e lidar com a paixão humana, inclusive nos aspectos transferenciais nos quais ela se fará presente. O que nos leva a supor que o trabalho analítico pessoal nessa direção, deva estar bem realizado, para que o Inconsciente do analista, possa dispor-se ao exercício do ofício sem tantas amarras ou pontos cegos que não se apresentem em nós contra-transferenciais,porque esses levariam quase sempre a impossibilidade da presença da “paixão” no setting. Isso se daria quer seja pela sua “esterilização”; quer seja pelo rompimento da regra de “abstinência”, que é aquela que diz que se deve frustrar esse movimento ao invés de gratificá-lo dentro da transferência. Este rompimento poderia se caracterizar pela mobilização da paixão(phatos) do analista em uma atuação contra-transferencial, erotizando assim a relação analisando/analista, direta ou indiretamente, permissivamente ou superegoicamente(recriminadora).

Então não será de maneira alguma, dispensável, que cada analista perceba em seu trajeto pessoal-profissional a vivência e o lidar com suas paixões, seja esta centrada em sua pesquisa teórica ou em seus aspectos vivenciais de vínculos. Seria preciso não temê-la e nem sequer valorizá-la em extremo, assim como a vivência desses aspecto em sua vida.

Divagando sobre o tema, suas inúmeras e ilimitadas possibilidades de abordagem, em algum momento poderemos nos perguntar: e por que o toque, em seu sentido corporal, é algo tão mal visto em psicanálise, quase que um “Noli me tangere” de Cristo.
Didier Anzieu nos leva em sua obra “O Eu Pele”, para um entendimento muito interessante entre esse nosso “envelope” enquanto físico e enquanto psíquico e a impossibilidade de separar um aspecto do outro.
Explica ele sobre 'tangere': “Tangere em latim tem a mesma diversidade de sentidos corporais e afetivos que o verbo francês toucher(tocar), desde colocar a mão sobre até 'emocionar'(3)

Segundo esse autor o interdito do tocar preparará para o sujeito o interdito edipiano em sua construção quase bíblica: “não desposarás tua mãe, não matarás teu pai”, fornecendo-lhe seu fundamento pré-sexual. E arremata com essa bela conclusão:

“A cura psicanalítica permite compreender muito particularmente com quais dificuldades, com quais falhas, com quais contra-investimentos ou supra-investimentos esta derivação influiu em cada caso”

Em artigo publicado em anexo do Jornal do Brasil de 03/03/1990, o psicanalista Otelo Corrêa dos Santos Filho(SPRJ), diz sobre essa obra de Anzieu:

“O precioso texto de Anzieu divide-se em três momentos: Descoberta; Estrutura, funções superação; e Principais Configurações.
Em descoberta, através da justificativa epistemológica do conceito Eu-Pele, percorre-se um caminho que é uma verdadeira descoberta do universo tátil ou cutâneo. Da embriologia na qual fascinados redescobrimos o cérebro e a pele como oriundos do mesmo folheto original, o ectoderma, à fisiologia, lingüística e psicanálise, o universo tátil é abordado em sua significação científica, literária e histórica”, ou ainda:

“O Eu-Pele é interface, é intermediação imaginária, é distinção eu-outro, construída pelo círculo maternante”

Didier Anzieu fará a distinção entre interdição e interdito em relação ao toque dizendo:

“As interdições definem os perigos externos, os interditos assinalam os perigos internos. Nos dois casos a distinção do de fora e do de dentro é supostamente adquirida (o interdito não tem nenhum sentido sem isso) e esta distinção se encontra reforçada pelo interdito” (3)

A questão do toque então, é trazido para o 'setting', quase que recoberta pela presença indelével do interdito, de alguma maneira excluído da relação analista/analisando. E sempre mostrará pelo seu desejo, da forma como se manifesta, importantes aspectos da relação de transferência. Mas fica o convite para que se pense que, em determinados momentos, esse toque apresentará aspectos disso que foi chamado de 'círculo maternante', não necessariamente sendo necessária essa interdição em seu movimento como um todo, isso se o interdito estiver claramente colocado na abstinência do psicanalista e esta estará indubitavelmente assentado em sua própria trajetória edípica e o trabalho analítico já realizado sobre ela pelo psicanalista, agora em condução da análise desse outro.

“O corpo se torna um dizer, lá onde o não-dito é imposto, ou pelo menos o dito esterilizado” (4)

Nesse não dito da proposta de inexistência do corpo que toca e é tocado, Oliveinstein dirá que está inscrito o crescimento “vertiginoso dos suicidas, das toxicomanias e da psicossomática”.

“Reduzir o corporal do analista ou do analisando é sacrificar aquilo que, na realidade, se impõe a todos e a cada um (apesar de se poder conceber o perigo conservador de fenomenologizar a experiência analítica, como sublinha Perrier)” (4)

Como olhar analiticamente para um corpo impossibilitado de se expressar dentro do “espaço” analítico? Essa é uma indagação com muitas respostas até o momento, e nenhuma certeza.

A paixão quando aparece no circuito transferencial virá com o matiz de transferência negativa, constituindo-se em importante ferramenta da resistência dentro do curso da análise. Ela é uma importante informante e, ao mesmo tempo, um importante obstáculo ao avanço em direção à redução da angústia pela tarefa da elaboração. Caberá ao analista não “atuar” superegoicamente na defensiva, dando aulas acerca da impossibilidade de sua realização, assim como não “atuar” perversamente alimentando para não realizar os impulsos do analisando nessa direção. Supõe-se então, que para o psicanalista, quanto mais essas questões estejam claras em sua própria dinâmica mais eficientemente lidará com esses aspectos.

Muitos pesquisadores das mais diversas linhas de abordagem situarão a paixão sempre na égide do phatos, do que é desmesurado, o que nos leva a supor, ou mesmo à perceber com clareza na prática clínica, que seu aparecimento no curso da transferência é condutora da força desmedida da patologia que se apresenta subjacente na estrutura do analisando, trazendo sua história, a linha de seu adoecimento para o reconhecimento vivencial do seu analista. Escutá-la, dar-lhe limites protetores a encaminhará para uma dissolução e transformação, encontrando talvez aí a própria possibilidade do vínculo que em Platão estaria posto como “amor autêntico”, construindo dessa forma um novo traçado para o caminho das pulsões.

E não será também essa busca que realizamos em nossas metas afetivas, esse momento de passagem que sai da cegueira “projetiva” da paixão e passa para elaboração de vínculos que constroem uma gratificação que inclui escolha e adiamento da gratificação em busca de catexias mais satisfatórias e completas? Não será essa a meta da eterna busca que fazem homem e mulher em direção ao que convencionamos chamar de felicidade? Por outro lado sabemos também que a não realização dessa meta, traz para qualquer sujeito psíquico seus mais graves momentos de dor e desamparo, reeditando o desamparo primeiro, lá atrás em sua linha de fixação, ao entender a saída do seu campo visual do objeto de paixão(sobrevivência).

Amamos e perdemos para mais adiante amar novamente, muitos amam o mesmo objeto com nomes e RG's diferentes, mas mesmo assim iguais, ou que seguem o mesmo tipo de escolha ou dinâmica da relação, como perseguidos por um destino demoníaco que se repete e repete indefinidamente. Entender então na transferência o phatos da repetição na busca do objeto, poderá via de regra, inaugurar a possibilidade de uma nova história de amor.

“Pobre ser amado que se exaure sem compreender que é a iminência da angústia que a torna irredutível, infinita, que se vive na angústia da angústia, naquilo que marca o não-dito, a dor deliciosa, esperada e temida, o sintoma cujo segredo verdadeiro não se pode jamais comunicar a outrém” (4)

Aquilo que se mostrou como sintoma, encontrará sua “fala” ali frente a si mesmo, no espelho da relação de transferência, colorindo e sendo acolhido por ela e dentro dela, e, entre seu emaranhado de emoções, encontrará sentido e direção, antigas e novas possibilidades, como acender a luz em um cômodo escuro e olhar para suas sombras, fantasmas, cantos e entradas.

“estar doente, ter boa saúde, são noções que transbordam de significados” (F. Laplantine – citado em (4) )

"O analista não pode dizer quem é o analisando, mas pode pontuar o que ele identifica de si através do que este lhe suscita. O analisando, por meio da narrativa, move questões no analista. Pessoa, então ensina: " O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente". O analista é o poeta fingidor que oferece o corpo, corpo marcado, corpo amado/odiado, corpo transferencial. Lugar palco das re/encenações do pretérito que insiste em prover de forma absoluta o presente. O "sido", o passado, constitui o "ser", desde que o "sido" tenha de fato acontecido. O devir é o efeito do agir. Neste sentido, o analista deve buscar em suas marcas a vertente que possa levar o sintoma à significação.” (A)

Se Freud lá atrás já nos chamava a atenção para o que chamou de “amor de transferência” terá sido para sublinhar a importância dessa vivência naquilo que a psicanálise entenderá como seu conceito de “cura”, que hoje tendemos mais a ver como o diálogo que passa a poder existir entre aquilo que é censurado, portanto inconsciente, com o polo consciente que permite a ação por escolha e decisão que resultarão em sensação(ação) de prazer e gratificação.

Olhar para o objeto, agora vestido da pele do analista, e como em uma tela perceber saídas novas, escolhas diferentes, localizar repetições. Esses serão os caminhos da paixão no campo transferencial.

“O "sido" do analista é a sua formação. O corpo do analista é um corpo insistentemente em carne viva. Este é o descomedimento da análise, do analista. Oscar Wilde lembra-nos que não podemos investigar a alma com uma máscara de vidro, e que existem venenos tão sutis que, para sabermos os seus efeitos, temos que prova-los”. (A)

É a realização enquanto barrada em seu objetivo sexual(interdito), trazendo o convite à leitura de sua história enquanto passado, presente e futuro. Esse Inconsciente do analista aberto e disponível para a magnitude do que Freud desde suas primeiras pesquisas se deu conta, já lá em Anna O, daquilo que pode ser uma barreira ou todo o chão onde se assenta o caminho da psicanálise, seja em sua trajetória de construção teórica, seja na trajetória que se delineia em cada nova análise que empreende.

Pensamos serem poucos os casos onde essa “paixão” realmente impossibilita o trabalho analítico por sua magnitude, embora saibamos da existência de casos dessa ordem.

Pensamos que na relação transferencial que, “imita” a vida, existirá um certo tipo de “apaixonamento” que poderá ser bem trabalhado e encaminhado, e assim, produzir efeitos de crescimento bastante significaticos, assim como pode ela ser na vida de qualquer pessoa, frente a sua realidade, uma impulsão em direção a grandes gestos voltados para o bem comum, mas que partem de causas absolutamente apaixonadas. Também poderá atuar positivamente nas relações de vínculos, onde muitas vezes iniciando na paixão, sobrevivendo a ela, construirá laços saudáveis de amor e crescimento.

Em tempos de padronização do conceito felicidade, pensamos que mais do que nunca, refletir sobre a paixão dentro do 'setting' seja algo necessário, tanto no que concerne ao manejo técnico dessa questão, quanto a própria relação de apaixonamento pelo que possibilita a existência do espaço analítico, que está presente e representada por toda a construção teórica que é a psicanálise.

Livros:

1 – "Amor e morte na transferência" – Pierre Fédida

2 – “Da Paixão do Ser À Loucura de Saber” – Maud Mannoni

3 – “O Eu-Pele” – Didier Anzieu

4 – “O Não-Dito Das Emoções” – Claude Olivevenstein

Links:

A – PSICANÁLISE E DIONISO – Luis Querolim
http://www.gradiva.com.br/site/scripts/dioniso.htm

B – Por uma política de saúde mental mais psicoterapêutica – Manoel Tosta Berlinck e Moisés Rodrigues da Silva Júnior
Clique aqui

C – Amor patológico: um novo transtorno psiquiátrico? – Sergio Duailibi
http://uniad.org.br/bloguniad/DEFAULT.ASP?IDPOST=722

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