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A Morte de Deus em Nietzsche – parte I

Ao mencionarmos as raízes do Existencialismo advertimos que dentre seus iniciadores está Friedrich Nietzsche (1844-1900) com um temperamento muitíssimo diferente do de Sören Kierkegaard e, viven­do quatro décadas mais tarde, refletiu a cultura do século deze­nove em um estágio diferente.
Jamais leu a obra de Kierkegaard. Seu citado amigo Brandes chamou-lhe a atenção para o dinamarquês dois anos antes de sua morte, tarde demais para que Nietzsche tomasse conhecimento dos trabalhos de seu predecessor, tão diferente na superfície, mas tão semelhante em pon­tos essenciais.

Ambos representaram, de maneira fundamental, a aparição do enfoque existencial na vida humana. Ambos são freqüentemente citados como os pensadores que tiveram o discernimento mais profundo e predisseram com maior exati­dão o estado psicológico e espiritual do homem ocidental no século vinte. Da mesma forma que Kierkegaard, Nietzsche não era anti-racional, nem tampouco deve ser confundido com os "filósofos dos sentimentos" ou com os evangelistas que pregam a "volta à natureza". Ele não atacava a razão, mas sim, o seu uso fútil, e atacava-a na forma árida, fragmentada e raciona­lista que havia em seu tempo. Procurou levar o reflexo – coin­cidindo mais uma vez com Kierkegaard – a seus limites ex­tremos para encontrar a realidade que sustém tanto a razão quanto a irracionalidade. Pois o reflexo é, principalmente, uma introversão dele mesmo, um espelho, e o que importa para a pessoa existencial viva é o que ela reflete; de outro mo­do, o reflexo esvazia a vitalidade da pessoa. Assim como os psicólogos que o seguiram, dedicados ao estudo das regiões mais profundas da mente, Nietzsche procurou trazer à luz da existência o inconsciente, fontes irracionais do poder e da grandeza do homem, assim como sua morbidez e auto-destru­tibilidade.

Outra relação importante entre esses dois homens e a psicologia profunda é que ambos desenvolveram uma auto­consciência de forte intensidade. Ambos tinham pleno conhe­cimento de que a perda mais devastadora em suas culturas de objetivação era a da consciência individual de si mesmo – uma perda que mais tarde seria expressa por Freud como o símbolo de um ego fraco e passivo, "vivido pelo Id", tendo perdido seus próprios poderes auto-governantes. O Kierkegaard escreveu: "Quanto mais se é consciente, maior é o ego", uma afirmação que seria feita por H.S. Sullivan em um contexto diferente um século mais tarde e que está subentendida na descrição de Freud quan­do disse que o objetivo de sua técnica – era a expansão da esfera da consciência: "Onde o Id estiver, o ego também poderá estar." Kierkegaard e Nietzsche, porém, de acordo com suas situações históricas distintas, não puderam escapar às conse­qüências trágicas da própria intensidade de autoconsciência.

Tanto Kiekegaard como Nietzsche, sabiam que "o homem não pode cair de volta na imediação irrefletida sem sofrer a perda de si próprio; mas ele pode seguir dessa maneira até o fim, sem destruir o reflexo porém retornando às bases em si próprio nas quais o reflexo se encontra enraizado". Assim Karl Jaspers descreveu, em sua brilhante análise das semelhanças entre Nietzsche e Kierkegaard, a quem ele considera as duas maiores figuras do século dezenove. (Veja seu livro, Reason and Existence, The Noonday Press, 1955, cap. 1).

Os pensadores existenciais em geral consideram essa perda da cons­ciência como o trágico problema central de nossos dias, e que não deve de forma alguma ser limitado ao contexto psicológico da neurose. Jaspers, na verdade, acredita que as forças que destroem a consciência pessoal nos dias de hoje, os processos devastadores do conformismo e do coleti­vismo, podem levar a uma perda ainda mais radical da consciência individual por parte do homem moderno.

Ambos eram solitários, inconformados ao extremo e conheciam as mais profundas agonias da ansiedade, do desespero e do isolamento. Por isso podiam falar dessas crises psicológicas terminais baseados em um conhecimento pessoal imediato. Nietzsche formulou as verdades pelas quais todos nós lu­tamos. Ele viveu e escreveu sua obra em uma época – a última metade do século dezenove – na qual o homem europeu es­tava se desintegrando psicológica e espiritualmente. Exterior­mente, o período era ainda de estabilidade e conformismo bur­guês. lnteriormente, porém, a decomposição espiritual dos seres humanos (aproveitando uma deixa das próprias palavras de Nietzsche) era visível a Nietzsche. A fé religiosa trans­formara-se em ressentimento, a vitalidade em repressão sexual, e uma hipocrisia generalizada marcou a condição do homem daquele tempo.

Em uma época como aquela, e como neste século XXI, é necessário ser um psiafim antes de pretender se tornar um bom filósofo. Para ter acesso ao homem que implorava para ser atendido ­o homem que perdera seu centro, que sofria de uma desorien­tação psicológica e espiritual. Nietzsche cobriu brilhantemente o espaço que lhe coube como médico para esse homem desorientado. Freqüentemente referia-se a si próprio como um psicólogo: "a psicologia deveria ser reconhecida uma vez mais como a rainha das ciências, para cujo serviço e preparação as outras ciências existem. Pois a psicologia é agora, novamente, o caminho para a resolução dos problemas fundamentais".

Tanto Kierkegaard como Nietzsche, dividiram a duvidosa honra de serem afastados de alguns declarados círculos científicos como casos patológicos. Creio que este assunto infrutífero não tem mais necessi­dade de ser discutido; Binswanger citou Marcel em um documento refe­rente àqueles que afastaram Nietzsche em razão de sua psicose derra­deira: "Uma pessoa é livre para nada aprender, se desejar". Uma linha de investigação de maior utilidade, se quisermos considerar as crises psicológicas de Kierkegaard e de Nietzsche, está em perguntar se algum ser humano é capaz de suportar uma intensidade de autoconsciência além de um determinado ponto, e se a criatividade (que é uma mani­festação desta autoconsciência) não é recompensada pelo soerguimento psicológico.

Nietzsche considerava-se, com razão, sucessor de Schopenhauer, ao qual, no entanto, é superior sob vários aspectos, principalmente quanto ao que diz respeito à solidez e coerência de sua doutrina. A moral oriental da re­núncia de Schopenhauer não parece concordar com a sua me­tafísica da onipotência da vontade; em Nietzsche, a vontade tem primazia tanto ética como metafísica. Nietzsche, embora professor, era um filósofo mais literário que acadêmico. Não inventou novas teorias técnicas na ontologia ou na epistemolo­gia; sua importância reside principalmente na ética e, em se­gundo lugar, como crítico histórico de visão penetrante. Assinalemos principalmente a sua ética e a sua crítica da religião, já que foi este aspecto de seus escritos que o tornou influente.

Sua vida foi simples. Seu pai era pastor protestante e sua educação foi muito piedosa. Destacou-se brilhantemente na uni­versidade como estudioso dos clássicos e aluno de filologia, de tal modo que, em 1869, antes de receber seu diploma, lhe foi oferecido um lugar de professor na Basiléia, que aceitou. Sua saúde nunca foi boa e, depois de vários períodos de licença, foi obrigado, finalmente, em 1879, a abandonar o magistério.

Depois disso, viveu na Suíça e na Itália; em 1888 com 44 anos, a neurossífilis o enlouqueceu, permanecendo assim até sua morte. Tinha uma admiração apai­xonada por Wagner, mas se indispôs com ele, devido, ao que alegou, ao Parsifal, que ele considerava demasiado cristão e cheio demais de renúncia. Seu critério geral continuou sendo, não obstante, muito semelhante ao de Wagner em o Anel; o super-homem de Nietzsche é muito semelhante a Siegfried, com a diferença de que sabe grego. Isto pode parecer estranho. Nietzsche não foi, conscientemente, um romântico; com efeito, critica, amiúde, os românticos. Conscientemente, sua ati­tude era helênica, mas sem o componente órfico. Admirava os pré-socráticos, com exceção de Pitágoras. Tem estreita afini­dade com Heráclito. O homem magnânimo de Aristóteles asse­melha-se muito ao que Nietzsche chama o "homem nobre", mas, em geral, considera os filósofos gregos posteriores a Sócrates inferiores aos seus predecessores. Não pôde perdoar Sócrates pela sua origem humilde; chama-o roturier e acusa-o de corrom­per a nobre juventude ateniense com a sua tendência moral democrática. Platão, principalmente, é condenado devido ao seu gosto pela edificação moral. Não obstante, Nietzsche não deseja condená-Io de todo e sugere, para escusá-Io, que talvez tenha sido insincero e que só pregava a virtude como um meio para que as classes inferiores se mantivessem em ordem. Fala dele, em certa ocasião, como "um grande Cagliostro". Gosta de Demócrito e de Epicuro, mas seu afeto pelo último parece um tanto ilógico, a menos que seja interpretado realmente como uma admiração por Lucrécio. Como era de esperar, tem péssima opinião de Kant, a quem chama "fanático moral a la Rousseau".

Apesar da crítica que Nietzsche faz aos românticos, sua atitude deve muito a eles; é a do anarquismo aristocrático, como a de Byron, e a gente não se surpreende de o ver admirando Byron. Procura combinar duas séries, de valores que não se harmonizam facilmente: de um lado, gosta da rudez, da guerra e do orgulho aristocrático; de outro; ama a filosofia, a literatura e as artes, principalmente a música. Historicamente, estes va­lores coexistiram na Renascença; o Papa Júlio II, lutando por Bolonha e empregando Michelangelo, podia ser tomado como a espécie de homem que Nietzsche desejaria ver à frente do governo dos povos. É natural comparar-se Nietzsche a Maquiavel apesar das importantes diferenças existentes entre os dois. Quanto às diferenças: Maquiavel foi um homem de negócios, cujas opiniões haviam sido formadas em estreito contato com os assuntos públicos e estavam em harmonia com a sua época; não era pedante nem sistemático e sua filosofia da política mal forma um todo coerente. Nietzsche, pelo contrário, um professor, era um homem essencialmente livresco e um filósofo em oposição consciente ao que lhe parecia ser a tendência política e ética de seu tempo. As semelhanças são, no entanto, mais profundas. A filosofia política de Nietzsche é análoga à do Príncipe (não à dos Discursos), embora seja elaborada e apli­cada a um campo mais amplo. Tanto Nietzsche como Maquia­vel, têm uma moral cuja finalidade é o poder e que é, delibera­damente, anticristã, embora Nietzsche seja mais franco a este respeito. O que César Bórgia foi para Maquiavel, Napoleão foi para Nietzsche: um grande homem derrotado por minús­culos adversários.

A crítica nietzschiana das religiões e das filosofias é dominada inteiramente por motivos éticos. Ele admira certas quali­dades que julga (talvez com razão) serem apenas possíveis para uma minoria aristocrática; a maioria, na sua opinião, devia ser somente um meio para a perfeição dos poucos, e não devia ser considerada como tendo qualquer direito independente à felicidade ou ao bem-estar. Alude habitualmente aos seres humanos como os "estropiados e remendados" e não vê nenhuma objeção aos seus sofrimentos se estes forem necessários para a produção de um grande homem. Assim, toda a importância do período que vai de 1789 a 1815, se resume em Napoleão: "A Revolução tornou Napoleão possível: essa é a sua justificação. Devíamos desejar o colapso anárquico de toda a nossa civili­zação se tal recompensa fosse o seu resultado. Napoleão tornou possível o nacionalismo: essa é a escusa deste último." Quase todas as mais altas esperanças deste século, diz ele, se devem a Napoleão.

Gosta de expressar-se por meio de paradoxos, para escan­dalizar o leitor comum. Consegue-o mediante o emprego das palavras "bem" e "mal" com seus significados ordinários, di­zendo, depois, que prefere o "mal" ao "bem". Seu livro "Além do Bem e do Mal" tem realmente por objetivo mudar a opinião do leitor quanto ao que é bom e o que é mau, mas se dedica, salvo em certos momentos, a elogiar o que é "mau" e a des­denhar o que é "bom". Diz, por exemplo, que é um erro con­siderar como um dever aspirar à vitória do bem e ao aniquila­mento do mal; este critério é inglês e típico "desse cabeça dura, John Stuart Mill", por quem sente um desdém particularmente virulento. Diz dele:

"Detesto a vulgaridade do homem quando diz: 'O que é lícito para um homem é lícito para outro.' Tais princípios estabeleceriam de bom grado todas as relações humanas sob a base de serviços mútuos, de modo que cada ação pareceria como que o pagamento de alguma coisa que nos tivessem feito. Esta hipótese é ignóbil no mais alto grau: dá por assentado que há alguma espécie de equivalência de valor entre minhas ações e as tuas".

A verdadeira virtude, como coisa oposta à convencional, não é para todos, mas deveria permanecer como a caracterís­tica de uma minoria aristocrática. Não é proveitosa nem pru­dente; isola dos outros homens o seu possuidor; é hostil à ordem e prejudica os inferiores. É necessário que os homens mais elevados façam guerra contra as massas e resistam às tendências democráticas da época, pois, em todas as direções, as pes­soas medíocres estão dando as mãos umas às outras para se tornarem senhores do mundo. "Tudo o que mima, o que abranda, o que traz o "povo" ou a "mulher" para o primeiro plano, age em favor do sufrágio universal – isto é, do domínio dos ho­mens "inferiores". O sedutor foi Rousseau, que tornou a mu­lher interessante; depois vieram, Harriet, Beecher, Stowe e os escravos; depois os socialistas, com a sua defesa dos operários e dos pobres. Todos eles devem ser combatidos.

A moral de Nietzsche não é de indulgência consigo mesmo em nenhum sentido comum; acredita na disciplina espartana e na capacidade de suportar a dor, como também infligi-Ia, para fins importantes. Admira acima de tudo a força de vontade. "Provo o poder de uma vontade – diz ele – segundo a quan­tidade de resistência que pode oferecer e de tortura que pode suportar, e pela maneira como sabe transformar isso em bene­fício próprio; não indico o mal e a dor da existência com o dedo da reprovação, mas antes alimento a esperança de que um dia a vida possa chegar a ser pior e mais cheia de sofrimento do que tem sido".

Considera a compaixão como uma fraqueza que é preciso combater. "O objetivo é alcançar essa enorme energia de gran­deza que pode modelar o homem do futuro por meio da dis­ciplina e também do aniquilamento de milhões de esfarrapados e que pode, não obstante, evitar de cair na ruína ante o sofri­mento criado por isso, de que não se viu nunca, antes, coisa semelhante". Profetizava, com certo júbilo, uma era de grandes guerras; ficamos pensando se teria sido feliz se houvesse vivido o bastante para ver a realização de sua profecia. No entanto, não é um adorador do Estado; longe disso, é um individualista apaixonado, um crente no herói. A miséria de toda uma nação, diz ele, é menos importante do que o sofri­mento de um grande indivíduo: "Os infortúnios de toda essa gente pequena não constituem, reunidos, uma soma total, salvo nos sentimentos dos homens poderosos".

Nietzsche não é um nacionalista e não mostra excessiva admiração pela Alemanha. Deseja uma raça dirigente internacional, que reúna os senhores do mundo: "uma nova e vasta aristocracia, baseada na mais severa autodisciplina, em que a vontade dos homens de poder filosófico e dos artistas-tiranos seja estampada durante milhares de anos". Tampouco é decididamente anti-semita, embora ache que a Alemanha contém tantos judeus quanto lhe é possível assi­milar, não devendo permitir novo influxo de judeus. Não lhe agrada o Novo Testamento, mas sim o Antigo, de que fala em termos altamente elogiosos. Fazendo-se justiça a Nietzsche deve-se ressaltar que muitos progressos modernos, que têm certa relação com seu critério ético geral, são contrários a suas opi­niões claramente expressas.

Duas aplicações da sua ética merecem referência: pri­meiro, seu desprezo pelas mulheres; segundo, sua crítica ao Cristianismo. Não se cansa jamais de investir contra as mulheres. Em seu livro pseudo-profético, "Assim Falava Zarathustra", diz que as mulheres não são, ainda, capazes de amizade; são ainda gatos, ou pássaros ou, quando muito, vacas. "Os homens devem ser adestrados para a guerra e as mulheres para a recreação dos guerreiros. O resto é tolice. A recreação do guerreiro deve ser de uma forma peculiar, se é que devemos confiar em seu enfático aforismo sobre o assunto: "Vais encontrar uma mulher? Não esqueças o chicote".

Nem sempre é tão feroz, embora sempre seja igualmente desdenhoso. Em "A Vontade de Poder", diz: "Agrada-nos a mu­lher por ser talvez a mais saborosa, delicada e etérea das cria­turas humanas. Que prazer para nós encontrar criaturas que só têm na cabeça bailes, tolices e atavios. Elas têm sido sempre a delícia de toda alma varonil tensa e profunda." No entanto, mesmo estas graças só são encontradas nas mulheres que são mantidas na linha por homens varonis; logo que conseguem qualquer independência, tornam-se intoleráveis. "A mulher tem muito de que se envergonhar; na mulher, há muito pedantismo, superficialidade, suficiência, presunções ridículas, desregramen­tos, e indiscrição oculta. E coisas que foram, até agora, refrea­das e dominadas por medo do homem". Assim o diz em "Além do Bem e do Mal", onde acrescenta que devíamos considerar as mulheres como uma propriedade, como os orientais. Todo o seu juízo sobre as mulheres é apresentado como uma verdade axio­mática; não são opiniões apoiadas em provas históricas ou em sua própria experiência, que, quanto ao que se referia a mu­lheres, quase que se limitava à sua irmã.

A objeção de Nietzsche contra o Cristianismo é que este teve como resultado a aceitação do que ele chama "moral de escravo". É curioso observar o contraste entre seus argumentos e os dos philosophes franceses anteriores à Revolução. Estes afir­mavam que os dogmas cristãos não eram verdadeiros; que o Cristianismo ensina a submissão ao que julga ser a vontade de Deus, enquanto que os seres humanos que se respeitem não devem inclinar-se ante nenhum Poder mais alto – e que as Igre­jas cristãs se tornaram aliadas dos tiranos e ajudam os inimigos da democracia a negar a liberdade e a continuar a oprimir os pobres. Nietzsche não se interessa pela verdade metafísica do Cristianismo ou de qualquer outra religião; convencido de que nenhuma religião é realmente verdadeira, julga todas as religiões exclusivamente pelos seus efeitos sociais. Concorda com os filósofos quanto ao que se refere à submissão à suposta vontade de Deus, mas ele não a substituiria pela vontade dos "artistas­-tiranos" terrenos. A submissão é lícita, salvo para os super-ho­mens, mas não a submissão ao Deus cristão. Quanto ao fato de as Igrejas cristãs "serem aliadas dos tiranos e inimigas da democracia", isso, diz ele, constitui o verdadeiro reverso da verdade. A Revolução Francesa e o socialismo são, segundo ele, essencialmente idênticos, quanto ao espírito, ao Cristia­nismo; a tudo isso se opõe, e pela mesma razão: que ele não tratará todos os homens como iguais sob nenhum aspecto.

O Budismo e o Cristianismo, diz ele, são ambos duas re­ligiões "nihlistas", no sentido de que negam qualquer diferença última de valor entre um homem e outro, mas o Budismo é a menos refutável das duas. O Cristianismo é degenerador, cheio de elementos excrementícios e decadentes; sua força propulsora é a rebelião dos esfarrapados. Esta revolta começou com os judeus e foi trazida ao Cristianismo pelos "santos epiléticos" como São Paulo, que não tinham honestidade. "O Novo Tes­tamento é o evangelho de uma classe de homem completa­mente ignóbil". O Cristianismo é a mentira mais fatal e sedu­tora que já existiu. Nenhum homem notável se pareceu jamais ao ideal cristão; considere-se, por exemplo, os heróis das Vidas de Plutarco. O Cristianismo deve ser condenado por negar o valor do "orgulho, o sentimento das distâncias, a grande responsabilidade, o entusiasmo exuberante, os instintos da guerra e da conquista, a deificação da paixão, a vingança, a cólera, a voluptuosidade, a aventura, o conhecimento. Todas estas coisas são boas, e todas elas são consideradas más pelo Cristianismo" – diz Nietzsche.

O Cristianismo, afirma ele, propõe-se a domesticar o co­ração do homem, mas isto é um erro. Um animal selvagem tem certo esplendor, que perde quando é domesticado. Os crimi­nosos de Dostoiévski eram melhores do que ele, porque tinham mais respeito por si mesmos. O arrependimento e a redenção causam asco a Nietzsche sendo por ele qualificados como "folie circulaire". É difícil livrar-nos deste modo de pensar com res­peito à conduta humana: "somos herdeiros da vivissecção da cons­ciência e da auto-crucificação de dois mil anos". Há uma passa­gem muito eloqüente, acerca de Pascal, que deve ser citada, pois nos mostra da maneira mais perfeita a objeção de Nietzsche ao Cristianismo.

"Que é que combatemos no Cristianismo? Sua aspiração a destruir os fortes, a quebrantar-Ihes o espírito, e a explorar os seus momentos de cansaço e fraqueza, a converter a sua orgu­lhosa segurança em preocupação e ansiedade; porque sabe en­venenar os instintos mais nobres e contaminá-Ios com a enfer­midade, até que seu vigor, sua vontade de poder, se voltem para dentro, contra si mesmos – até que os fortes pereçam pelo excessivo desprezo de si mesmos e sua própria imolação: essa horrenda maneira de perecer, da qual Pascal é o exemplo mais famoso" .

Em lugar do santo cristão, Nietzsche deseja ver o que ele chama o homem "nobre", não, de modo algum, como um tipo universal, mas como aristocrata governante. O homem "nobre" será capaz de crueldade e, em certas ocasiões, do que vulgar­mente se considera como crime; só reconhecerá deveres para com os seus iguais. Protegerá artistas, poetas e todos os que chegarem a ser mestres de alguma arte, mas o fará como membro de uma ordem mais alta do que a dos que só saibam fazer al­guma coisa. Do exemplo dos guerreiros, aprenderá a associar a morte aos interesses pelos quais luta; a sacrificar o número e a levar sua causa suficientemente à (ao modo) sério a ponto de não poupar homens; a praticar uma disciplina inexorável e a per­mitir a si mesmo a violência e a astúcia na guerra. Compreen­derá o papel desempenhado pela crueldade na perfeição aris­tocrática: "quase tudo que chamamos ‘alta cultura' está basea­do na espiritualização e intensificação da crueldade". O homem "nobre" é, essencialmente, a encarnação da vontade de poder.

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