RedePsi - Psicologia

Artigos

A Morte de Deus em Nietzsche – parte II

(continuação)

Que devemos pensar das doutrinas de Nietzsche? Até que ponto são verdadeiras? São, de algum modo, úteis? Há nelas algo objetivo, ou são simples sonhos de poder de um inválido?

É inegável que Nietzsche teve grande influência, não entre filósofos técnicos, mas entre pessoas de cultura literária e ar­tística. Deve-se também reconhecer que suas profecias quanto ao futuro provaram, até agora, estar mais próximas da verdade do que as dos liberais e socialistas. Se ele é um mero sintoma de enfermidade, tal doença deve estar muito disseminada no mundo moderno. Não obstante, há nele muita coisa que tem de ser posta de lado como simplesmente megalomaníaca. Falando de Spinoza, diz: "Quanta timidez e vulnerabilidade revelam esta máscara de recluso enfermiço!" Exatamente o mesmo poderia dizer-se dele, com menos repugnância, já que não hesitou em dizê-lo de Spi­noza. É óbvio que, em seus sonhos, é um guerreiro, não um professor; todos os homens que admira são militares. Sua opi­nião das mulheres, como a de todos os homens, é uma objeti­vação de sua própria emoção com respeito a elas, que é clara­mente um sentimento de temor. "Não esqueças teu chicote", ­mas em cada dez mulheres, nove teriam arrebatado o chicote, e ele o sabia, de modo que se conservava afastado delas, curando sua vaidade ferida com observações nada amáveis.

Condena o amor cristão porque o considera um produto do temor, "receio que meu vizinho me faça mal e, por isso, lhe asse­guro que o amo; se eu fosse mais forte e mais ousado, demons­traria abertamente o desprezo que, certamente sinto". Não ocorre a Nietzsche a possibilidade de que um homem sinta realmente um amor universal, e isto, sem dúvida, porque ele sente um ódio e um temor quase universal, que procura disfarçar com altiva indiferença. Seu homem nobre – que é ele próprio em seus devaneios – é um ser totalmente destituído de simpatia, implacável, astuto, cruel, preocupado só com o seu próprio poder.

O Rei Lear, à beira da loucura, diz:
"Farei tais coisas.
Não sei ainda quais – mas elas serão,
O terror da terra".

Esta é a filosofia de Nietzsche, em poucas palavras. Jamais ocorreu a Nietzsche que a ânsia de poder, com que adorna o seu super-homem, é em si um produto do medo. Os que não temem os seus vizinhos não vêem a necessidade de tiranizá-Ios. Os homens que venceram o medo não têm a qua­lidade frenética do "artista-tirano" de Nietzsche. Nero, que pro­cura gozar a música e os massacres, enquanto o seu coração está cheio do terror da inevitável revolução no palácio. Não negamos que, em parte como resultado de seu ensinamento, o mundo real se tornou muito semelhante ao seu pesadelo, mas isto não o torna, de modo algum, menos horrível.

Deve-se admitir que há um certo tipo de moral cristã a que se pode aplicar a severa crítica de Nietzsche, Pascal e Dostoiévs­ki – seus próprios exemplos – têm algo de abjeto em sua vir­tude. Pascal sacrificou ao seu Deus o seu magnífico talento ma­temático, atribuindo-lhe, assim, uma barbaridade que era uma ampliação cósmica das mórbidas torturas mentais de Pascal. Dostoiévsky não sabia o que fazer com o orgulho; pecaria para arrepender-se e gozar da volúpia da confissão. Não discutimos a questão de saber até que ponto se pode atribuir com justiça tais aberrações ao Cristianismo, mas admitimos que concorrendo com Nietzsche ao considerar digna de desprezo a prostração de Dostoiévsky. Certo aprumo e altivez, e até certa afirmação de si mesmo, são, temos de admitir, elementos do caráter melhor; nenhuma virtude que tenha suas raízes no medo é digna de ser muito admirada.

Há duas espécies de santos: o santo por natureza e o santo por medo. O santo por natureza sente um amor espontâneo pela humanidade; faz o bem porque isso o torna feliz. O santo por medo, como o homem que só se abstém de roubar por receio da polícia, seria um perverso, se não se visse refreado pelo pen­samento do fogo do inferno e pela vingança do próximo. Nietzsche só pode imaginar esta espécie de santo; sente-se tão cheio de temor e de ódio que o amor espontâneo à humanidade lhe parece impossível. Jamais concebeu um homem que, com todo o destemor e o inflexível orgulho do super-homem, não inflija, apesar disso, sofrimento algum, por não ter desejo de fazê-lo. Suporá alguém que Lincoln agisse como agiu por medo do inferno? No entanto, para Nietzsche, Lincoln é abjeto, e Na­poleão magnífico.

Resta considerar o principal problema ético suscitado por Nietzsche, isto é: deveria a nossa ética ser aristocrática, ou de­veria, em certo sentido, tratar todos os homens por igual? Esta é uma questão que não tem um sentido muito claro e, como é natural, o primeiro passo é procurar tor­ná-Ia mais precisa. Devemos, em primeiro lugar, distinguir uma ética aristo­crática de uma teoria política aristocrática. Um crente no prin­cípio de Bentham dá maior felicidade para o maior número, tem uma ética democrática, mas poderá pensar que se obtém melhor a felicidade geral com uma forma de governo aristocrá­tico. Esta não é a posição de Nietzsche. Afirma ele que a felici­dade das pessoas comuns não faz parte do bem per se. Tudo o que é bom ou mau existe apenas nos poucos superiores; o que acontece com o resto não tem importância.

A segunda questão é: Como definir os poucos superiores? Na prática, têm sido, usualmente, uma raça conquistadora ou uma aristocracia hereditária – e as aristocracias têm sido, pelo menos na teoria, composta de descendentes de raças conquis­tadoras. Cremos que Nietzsche aceitaria esta definição. "Nenhuma moral é possível sem um bom nascimento", diz-nos ele. E acres­centa que a casta nobre é sempre, a princípio, bárbara, mas que toda a elevação do Homem se deve à sociedade aristocrática. Não está claro se Nietzsche considera congênita a supe­rioridade do aristocrata ou devido à educação ou ao meio. Se este último é o caso, torna-se difícil defender a exclusão de outros das vantagens para as quais, ex hypothesi, estão igualmente qualificados. Presumiremos, pois, que ele considera as aristocracias conquistadoras e seus descendentes como biologica­mente superiores a seus súditos, como os homens são superio­res aos animais domésticos, embora em grau menor.

Que é que devemos entender por "biologicamente supe­rior"? Devemos entender, quando estivermos interpretando Nietzsche, que os indivíduos da raça superior e seus descen­dentes têm mais probabilidade de ser "nobres" no sentido nietzschiano: terão mais força de vontade, mais coragem, mais ânsia de poder, menos simpatia, menos medo e menos bondade. Podemos, agora, expor a ética de Nietzsche. Cremos que o que segue é uma análise imparcial da mesma.

Os vencedores na guerra e seus descendentes são, em geral, biologicamente superiores aos vencidos. Assim sendo, é desejável que mantenham o poder e dirijam os negócios exclusivamente em seu próprio interesse. Temos ainda de considerar, aqui, a palavra "desejável". Que é "desejável" na filosofia de Nietzsche? Da visão de um estranho, o que Nietzsche chama "desejável" é o que Nietzsche deseja. Com esta interpretação, a doutrina de Nietzsche poderia ser exposta, de maneira mais simples e honesta, em uma frase: "Quem me dera ter vivido na Atenas de Péricles ou na Florença dos Médicis!" Mas isto não é uma filosofia; é um fato biográfico referente a determinado indivíduo. A palavra "desejável" não é sinônimo de "desejado por mim"; tem certo direito, embora impreciso, de jurisdição universal. Um teísta pode dizer que o desejável é aquilo que Deus deseja, mas Nietzsche não pode dizer tal coisa. Poderia dizer que sabe o que é bom por uma intuição ética, mas não diria isto porque tais palavras soam de um modo demasiado kantiano. O que pode dizer como uma expansão da palavra "desejável" é isto: "Se os homens lerem minhas palavras, certa porcentagem deles compartilhará de meus desejos quanto ao que se refere à organização da socie­dade. Esses homens, inspirados pela energia e determinação que minha filosofia lhes dará, podem preservar e restaurar a aris­tocracia, com eles próprios como aristocratas ou (como eu) como bajuladores da aristocracia. Deste modo, conseguirão uma vida mais plena do que a que poderão ter como servidores do povo".

Há um outro elemento em Nietzsche, estreitamente afim à objeção feita pelos "individualistas inflexíveis" contra os sindi­catos. Em uma luta de todos contra todos, é provável que o vence­dor possua certas qualidades que Nietzsche admira, tais como coragem, espírito de iniciativa e força de vontade. Mas se os homens que não possuem estas qualidades aristocráticas (que são a imensa maioria) se unirem, podem vencer, apesar de sua inferioridade individual. Na luta da canaille coletiva contra os aristocratas, o Cristianismo constitui a frente ideológica, como a Revolução Francesa foi a frente combatente. Devemos, então, opor-nos a qualquer espécie de união entre os indivi­dualmente fracos, por receio de que seu poder combinado su­pere o dos individualmente fortes; por outro lado, devemos pro­mover a união entre os elementos vigorosos viris da população. O primeiro passo para a criação de tal união é pregar-se a filo­sofia de Nietzsche. Ver-se-á que não é fácil manter a distinção entre a ética e a política.

Suponha-se que desejamos ­encontrar argumentos contra a moral e a política de Nietzsche. Que argumentos poderemos achar?

Há argumentos práticos de peso, que mostram que o in­tento de assegurar os fins a que ele se propunha produzem, de fato, algo inteiramente diferente. As aristocracias de nascimen­to estão, hoje em dia, desacreditadas; a única forma praticável de aristocracia é uma organização como o partido fascista ou o nazista. Tal organização suscita oposição, e é provável que seja derrotada na guerra; mas, se não for derrotada, converte-se, dentro de pouco tempo, em um Estado policial, onde os governa­dores vivem no terror de ser assassinados e os heróis se encon­tram em campos de concentração. Em tal comunidade, a fé e a honra são minadas pela delação, e a pressuposta aristocracia de super-homens se degenera em um bando de trêmulos poltrões.

Estes são, no entanto, argumentos para a nossa época, não teriam sido defendidos em épocas passadas, quando a aristocra­cia não era posta em dúvida. O governo egípcio foi conduzido, durante vários milênios, de acordo com os princípios nietzschia­nos. Os governos de quase todos os grandes Estados foram aris­tocráticos até as revoluções francesa e americana. Temos, por­tanto, de perguntar a nós mesmos se há alguma boa razão para se preferir a democracia a uma forma de governo que tem uma história tão longa e triunfante – ou, antes, já que nos ocupamos de filosofia e não de política, se há razões objetivas para se re­jeitar a ética em que Nietzsche baseia a aristocracia.

A questão ética, ao contrário da política, é de simpatia. A simpatia, no sentido de nos tornarmos infelizes com o sofrimen­to dos outros, é, até certo ponto, natural às criaturas humanas; as crianças pequenas mostram-se preocupadas quando ouvem chorar outras crianças. Mas o desenvolvimento deste sentimen­to é muito diferente em pessoas diversas. Alguns sentem prazer em infligir torturas; outros, como Buda, acham que não podem ser completamente felizes enquanto alguma coisa viva estiver sofrendo. A maioria das pessoas divide emocionalmente a hu­manidade em amigos e inimigos, sentindo simpatia pelos primei­ros, mas não pelos segundos. Uma ética como a do Cristianismo ou do Budismo tem sua base emotiva na simpatia universal; a de Nietzsche, em uma ausência completa de simpatia. (Prega, fre­qüentemente, contra a simpatia e, a este respeito, sente-se que não tem dificuldade alguma em seguir seus próprios preceitos). A questão é: se Buda e Nietzsche se defrontassem, poderia um deles apresentar algum argumento que impressionasse o ouvin­te imparcial? Não estamos pensando em argumentos políticos. Po­demos imaginá-los comparecendo diante do Todo-poderoso, como no primeiro capítulo do Livro de Jó, e a dar conselhos sobre a espécie de mundo que Ele deveria criar. Que poderia cada um deles dizer?       .

Buda iniciaria sua exposição falando dos leprosos, proscri­tos e miseráveis; do pobre, labutando com os membros doloridos e mal se mantendo vivo com a alimentação escassa; os feridos nas batalhas, morrendo em lenta agonia; os órfãos, os maltrata­dos por guardiões cruéis – e mesmo dos mais afortunados, per­seguidos pelo pensamento do fracasso e da morte. Diante de toda esta carga de sofrimento, diria, era preciso que se encon­trasse uma maneira de salvação – e que a salvação só pode vir pelo amor.

Nietzsche, a quem só o Onipotente poderia impedir que interrompesse, irromperia, quando chegasse a sua vez: "Por Deus, homem, devias aprender a ter mais fibra. Por que andar choramingando porque as pessoas vulgares sofrem? Ou, mesmo, porque os grandes homens sofrem? As pessoas vulgares sofrem vulgarmente, os grandes homens sofrem grandemente, e os gran­des sofrimentos não devem ser lamentados, pois são nobres. Teu ideal é puramente negativo, a ausência de sofrimento, coisa que pode ser assegurada com a não-existência. Eu, pelo contrário, tenho ideais positivos: admiro Alcibíades, Frederico o Grande, Napoleão. Em benefício destes homens, qualquer sofrimento vale a pena. Apelo para Vós, Senhor, como o maior dos artistas criadores: não permitais que os Vossos impulsos artísticos se curvem ante o balbuciar atemorizado deste infeliz psicopata".

Buda, que, nas cortes celestiais, aprendeu toda a história posterior à sua morte, e que dominou a ciência, deleitando-se com o conhecimento e sentindo tristeza ante o uso a que os homens o destinaram, replica, com calma urbanidade: "O senhor está enganado, Prof. Nietzsche, ao pensar que o meu ideal é pu­ramente negativo. Na verdade, inclui um elemento negativo – a ausência de sofrimento; mas, além disso, contém tanto de posi­tivo quanto se possa encontrar em sua doutrina. Embora eu não sinta admiração especial por Alcibíades e Napoleão, também tenho meus heróis: o meu sucessor Jesus, por haver dito aos homens que amassem os seus inimigos; os homens que descobri­ram a maneira de se dominar as forças da natureza e assegurar alimento com menos trabalho; os clínicos que mostraram a ma­neira de se diminuir as enfermidades; os poetas, os artistas e os músicos que captaram vislumbres da Beatitude Divina. O amor, o conhecimento e o deleite da beleza não são negações; são su­ficientes para encher as vidas dos maiores homens que já existiram".

"De qualquer modo – responde Nietzsche – vosso mundo seria insípido. Teríeis de estudar Heráclito, cujas obras se con­servam completas na biblioteca celestial. Vosso amor é compai­xão, produzido pela dor; vossa verdade, se é que sois honestos, é desagradável, e só pode ser conhecida através do sofrimento; quanto à beleza, que existe de mais belo do que o tigre, que deve seu esplendor à sua ferocidade? Não, se o Senhor se deci­disse pelo vosso mundo, receio que morreríamos todos de tédio". "O senhor poderia morrer de tédio – responde Buda ­porque ama a dor e o seu amor à vida é uma impostura. Mas aqueles que realmente amam a vida, seriam felizes como ninguém pode ser feliz no mundo tal como ele é".

De nossa parte, concordamos com Buda tal como o imaginamos. Mas não sabemos de que maneira provar que ele tem razão, por meio de argumentos como os que podem ser usados em uma questão matemática ou científica. Nietzsche não nos agrada porque apre­cia a contemplação da dor, porque erige o desprezo em dever, porque os homens a quem ele mais admira são conquistadores, cuja glória se baseia na habilidade em fazer com que os homens morram. Mas cremos que o argumento final contra a sua filosofia, como contra qualquer ética desagradável, mas intimamente coerente, reside não no apelo aos fatos, mas em um apelo às emo­ções. Nietzsche despreza o amor universal; nós o consideramos a força motriz de tudo o que desejamos com respeito ao mundo. Seus adeptos tiveram sua vez no mundo, mas podemos esperar que esta chegue rapidamente ao fim.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter