Na prática psiquiátrica, a referência ao conceito de estado borderline, o fronteiriço, é freqüente. No exercício psiquiátrico, existe uma ambigüidade evidente na utilização dessa entidade, que está ligada à dupla corrente histórica que conduziu ao desenvolvimento do conceito de estado fronteiriço. Ou seja, o encaminhamento psiquiátrico e, por outro, o psicanalítico. Portanto, foi desse desenvolvimento oposto, mas convergente, que nasceu o conceito de estado fronteiriço.
Assim, vejo que as duas posições são diferentes. As evoluções diferentes levaram a uma proliferação de termos particularmente ricos e, a longo prazo, prevaleceram os mais próximos da nosografia psiquiátrica tradicional: estado pré-esquizofrênico, esquizofrenia incipiente, esquizofrenia pseudoneurótica etc. Progressivamente, houve um consenso entre duas denominações – estado fronteiriço e pré-psicose – das quais a primeira é mais utilizada na patologia do adulto e a segunda, na da criança. Seja como for, a utilização preferencial dessa terminologia traduz a vontade de se demarcar a nosografia psiquiátrica utilizando a linguagem psicanalítica.
Surge então uma pergunta: na prática da investigação clínica, pode-se utilizar conceitos elaborados no quadro da prática psicanalítica e cuja emergência exige a instauração de um processo transferencial a longo prazo? À parte o risco de um modismo mais ou menos passageiro, o perigo nos parece ser o de batizarmos de pré-psicose ou estado fronteiriço nossa própria ignorância, atribuindo esse "rótulo" a tudo que se afigurar clinicamente mais grave do que a neurose e menos grave do que a psicose.
Assim se acha colocado de maneira caricatural, em se tratando de estados fronteiriços, o problema do estatuto do sintoma em psiquiatria. Com efeito, uma das características fundamentais da "entidade estado fronteiriço" é o aspecto extraordinariamente variado, flutuante, diversificado, múltiplo e inacessível de sua semiologia clínica. Não existem muitos sintomas ou condutas não encontráveis em um paciente fronteiriço. Não apenas nenhum sintoma lhe é específico, como também o próprio agrupamento nosográfico desses sintomas é muito variável.
A articulação habitual da prática médica entre sintoma e síndrome, da qual a prática psiquiátrica continua impregnada, quer queiramos ou não, quer o deploremos ou não, faz com que o diagnóstico perca aqui qualquer valor. De fato, no caso dos estados fronteiriços, o diagnóstico é feito por referência a um tipo de funcionamento mental ou, mais precisamente, a um tipo de relação de objeto; em tal contexto conceitual, o sintoma é uma conduta e representa o testemunho ou via final comum de uma relação internalizada precisa, cuja vinculação com um tipo de organização mental situa-se em níveis variáveis. Assim, o mesmo sintoma aparente pode quase testemunhar uma relação de objeto parcial, uma relação de objeto clivado, uma relação de objeto narcísica, ou uma relação de objeto ambivalente neurótica. E através da evolução da dinâmica relacional que se irá revelar o sentido desse sintoma. Em tal perspectiva, o sintoma se articula diretamente com o funcionamento mental, que ignora as descontinuidades inerentes a qualquer nosografia.
Em vista desse fato, o psiquiatra se vê confrontado com o problema da inserção de dados psicanalíticos, e mais particularmente da metapsicologia psicanalítica, na construção nosográfica psiquiátrica. A transposição direta de uma conceituação psicanalítica para a clínica psiquiátrica não reelaborada corre o risco de confundir completamente esta última, distorcendo profundamente a primeira. Isso implica repensar o papel do sintoma na prática psiquiátrica, levantando-se a questão de sua relatividade em termos da relação, sendo esta compreendida como o testemunho atualizado de um sistema internalizado de relações entre representação do eu e representação de objeto.
Assim, acha-se profundamente recolocado em questão o trajeto que iria do sintoma à síndrome e depois ao funcionamento mental, em uma sucessão de correlação linear. Essa é uma atitude que nos parece mais freqüente do que poderíamos imaginar, e os dois quadros de referência – o quadro psiquiátrico, com a correlação sintoma-síndrome, e o quadro psicanalítico, com as articulações sintoma-funcionamento mental – devem ser claramente distinguidos. De maneira provocadora, posso dizer que a entidade "estado fronteiriço" não tem lugar na nosografia psiquiátrica. Ao contrário, ela é a ilustração clara do valor relativo do sintoma: não é pela identificação de traços incertos, confusos e móveis que a entidade estado fronteiriço se deixa apreender. Convém identificar, por trás do sintoma, o mecanismo mental subjacente e, na medida do possível, esclarecer esse mecanismo aos olhos do paciente nas entrevistas de investigação.
É nesse ponto que vemos o mérito de um autor como Kernberg, por ter sabido demonstrar como a sintomatologia do paciente pode evoluir no próprio curso da entrevista de investigação, em resposta a interpretações que incidam sobre as defesas da série psicótica. Tais interpretações, quando aplicadas ao indivíduo psicótico, acentuam sua experiência de perda da realidade, agravando por isso seus sintomas, ao passo que, no paciente fronteiriço, permitem-Ihe uma identificação de seus mecanismos defensivos psicóticos e uma melhora clínica manifesta durante a entrevista. É o caso, por exemplo, do sintoma "confusão mental", que se encontra tanto no caso de personalidade infantil pré-psicótica quanto nos doentes psicóticos comprovados. A tentativa de esclarecimento dessa confusão mental através da explicitação de seu papel de defesa na relação aqui-e-agora, sem para tanto ter que vinculá-Ia a suas origens genéticas, traz uma melhora rápida do estado cIínico do primeiro doente, enquanto agrava a confusão e o sentimento de perda dos limites do eu no segundo.
Pode-se propor como explicação para essa reatividade variável, o papel extremamente diferente que é desempenhado por mecanismos defensivos aparentemente idênticos nos casos de psicoses e de estados fronteiriços. Este é particularmente o caso da clivagem, cuja função me parece muito diferente, conforme esteja em ação em um indivíduo psicótico ou em um pré-psicótico. Em tal perspectiva de investigação do funcionamento mental, vê-se como o sintoma perde sua significação puramente descritiva e estática. Se a adequação entre sintoma-síndrome / funcionamento mental, em seu conjunto, é geralmente correta, o mesmo não se aplica quando saímos do "quadro" clássico para penetrar no vasto campo desses pacientes fronteiriços.
Parece-me que a "entidade estado fronteiriço", pela própria ambigüidade dos caminhos que levaram a seu reconhecimento, coloca o difícil problema da articulação entre a prática psiquiátrica, com seu lento desprendimento do modelo médico, sem uma elaboração teórica que lhe seja própria, e a prática psicanalítica, com a elaboração metapsicológica que a acompanha. Há duas definições de paciente fronteiriço:
(a) primeira: a definição em negativo, que consiste em declarar como fronteiriço, boderline ou pré-psicótico qualquer paciente que se situe nas margens dos quadros clássicos da neurose ou da psicose.
(b) segunda: a definição em positivo, que tenta, face a um doente em particular, fazer uma previsão sobre a evolução de uma relação que será marcada pelo uso predominante de certos mecanismos de defesa.
O risco me parece estar em se confundirem essas duas posições sob um mesmo rótulo terminológico, transformando o estado fronteiriço em um saco de guardados que perdeu o seu valor e a sua especificidade. Para responder a pergunta: É útil o conceito de borderline em psiquiatria? Sinto-me tentado a dizer, à guisa de conclusão, que o conceito de estado fronteiriço torna a pôr em questão o próprio fundamento de certa prática psiquiátrica, em que as soluções de continuidade permitiriam isolar os quadros nosográficos entre si: em tal procedimento, haveria sempre casos no limite do quadro, quer sejam chamados de pré-esquizofrenia, formas clínicas atípicas ou outra denominação qualquer. Assim, o estado fronteiriço passaria a ser nada mais do que um artifício resultante do modo de demarcação utilizado. Por outro lado, recolocado em uma dinâmica da relação, o conceito reencontra aí todo o seu valor. É isso que lhe confere seu caráter indispensável.