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Divãs Possíveis

Pretendo com a publicação desse artigo, "retirar" os fenômenos de transferência e de contratransferência das quatro paredes dos consultórios dos psicanalistas, atribuindo-as a um fenômeno produzido pela neurose e não, como chegou a acreditar Freud, como sendo um produto da análise. Depois dessa "retirada" para nossa análise, deveremos restituí-las aos consultórios, uma vez que só lá poderão ser tratadas técnica e adequadamente.
É sabido que quando Freud começou os seus estudos, os quais tornar-se-iam os pilares de um método de investigação por ele criado, denominado psicanálise, acreditava que o fenômeno da transferência era um produto do processo de análise. Com a evolução de suas pesquisas e desenvolvimento teórico subseqüente, pôde chegar à conclusão que o fenômeno da transferência era, isso sim, um produto da neurose da qual sofria o paciente.

Dessa forma, ao longo do tratamento psicanalítico, o paciente passaria da sua neurose inicial, para a neurose de transferência, para aí sim, a cura ser objetivada.

Dessa forma, o fenômeno transferencial não se encontra restrito de forma alguma às quatro paredes do consultório dos analistas, sendo que a mesma deve ser entendida, antes de tudo como um fenômeno humano e, de caráter geral, uma vez que, da neurose em seu caráter repetitivo, ninguém está isento.

Trago aqui como uma figura emblemática para ilustrar essas considerações, a imagem do dentista, o qual pelo que sabemos e até por experiência própria, muitas vezes se torna um interlocutor adequado para que possamos externar as nossas angústias e preocupações das mais variadas ordens. Trata-se de uma figura que lá está para nos tratar, ainda que seja da boca e dos dentes, mas recupero aqui a importância do termo "tratar". Nesse sentido, a boca tratada pelo dentista, é a mesma por onde expressamos nossas dores para os nossos analistas.

Claro que aqui, vai depender muito da disponibilidade da pessoa do dentista para se prestar a essa função de interlocutor e de receptor dos movimentos transferenciais. O fato que me parece de fundamental importância podermos aqui sublinhar, é que nós registramos que diante de uma oferta de tratamento, o ser humano está sempre em estado de alerta no sentido de se mover em busca de sua aceitação.

Isso nos remete, inexoravelmente, a uma espécie de movimento de caráter regressivo, onde nos colocamos prontamente dispostos a ser tratados, revelando a existência de um desamparo atávico do ser humano. Volto a insistir que a figura pessoal do dentista deve, para que isto ocorra, reunir certos atributos como por exemplo o acolhimento, a disponibilidade para ouvir, a atenção e o interesse verdadeiro e não apenas por uma questão de educação. Deve ficar claro que quando falamos em movimento regressivo, estamos nos referindo ao bebê, que é acolhido e satisfeito em suas necessidades pela mãe ou por quem esteja em posição de exercer, para ele, a função materna.

Talvez seja importante pensarmos também que tirar a dor da boca, seja o equivalente, sob certos aspectos, de tirar a dor das palavras, estas carregadas de afetividade, as quais endereçamos aos nossos analistas, a quem atribuímos a incumbência de fazê-lo.

Numa sala de espera, mesmo aquele paciente que não está com dor nem com pressa, podemos observar o quão impaciente muitas vezes fica, quando aquele que dele vai cuidar se atrasa com outro paciente. Isso pode ser pensado como a inquietude entre irmãos que competem pela atenção da mãe, especialmente quando esta se ocupa em demasia, em seu julgamento, de um deles em especial, seja pelo motivo que for: gripe, manha, cólica,enfim, parece que nada poderá justificar esta espécie de "preferência" materna, a qual, se formos pensar, sempre existirá, mesmo que no plano da consciência não seja admitida por esta ou aquela mãe.

Na verdade, sabemos que os filhos começam a ser gerados no desejo dos pais e, que é inexorável que não existam desejos iguais. Seria necessário que os pais pudesssem admitir estas "preferências", para que não ficassem muitas vezes reféns da culpa por se sentirem mais propensos em relação a um filho, em detrimento de outros.

Dessa forma, queremos insistir que a cadeira do dentista, assim como a cadeira do barbeiro ou cabelereiro, ou mesmo uma cadeira de bar, na presença de um querido amigo, pode servir perfeitamente para que entrem em jogo, movimentos transferenciais muitas vezes intensos, sendo que a diferença é que não vão ser utilizados para o desenvolvimento de um trabalho tecnicamente orientado, como ocorreria num processo de análise bem conduzido. Às vezes, inclusive, podemos notar que por força do procedimento que o dentista está realizando, solicita ao paciente que fique de boca aberta, mas que não fale, o que muitas vezes pode provocar neste, uma certa angústia e um sentimento de solidão. A psicanálise nos ensina que a voz é o primeiro objeto de investimento da pulsão oral, e quando nos vemos impossibilitados de utilizá-la para nos comunicar com o outro, isso pode ser um deflagrador de angústias.

Gostaria muito que ficasse claro que meu objetivo com essas considerações, foi o de retirar a transferência e a contratransferência, das quatro paredes do consultório dos analistas e localizá-la dentro do espectro de um fenômeno absolutamente humano e de caráter geral. Espero ter podido conseguir este objetivo, além de poder, indiretamente, homenagear certos profissionais que, embora não-analistas, muitas vezes, sem desconfiarem nada a esse respeito, cumprem esse papel de forma "torta", porém extremamente importante, para aqueles que dele se beneficiam.

Gostaria de encerrar esta apresentação, fazendo uma citação de uma pergunta que fora feita a Freud, bem como a sua resposta. Sabemos que uma das metáforas utilizadas por Freud para definir o inconsciente, foi a de um cavalo bravio, sendo que aí lhe fora perguntado se aquele que passasse por uma psicanálise, teria esse cavalo domesticado. Freud respondeu prontamente que não, uma vez que o cavalo sempre seria bravio, mas o que, na verdade mudaria para aquele que passasse por uma análise, era exatamente a habilidade do cavaleiro para controlar esse cavalo bravio.

Dessa forma, nos parece que através dessa afirmação de Freud, poderemos refletir cada um à sua maneira, sobre a validade maior ou menor de se passar por uma análise pessoal. Quero deixar registrado que eu penso que vale muito a pena nos matricularmos nas "aulas de equitação"!!!

Através da resolução da neurose de transferência, poderemos prescindir do instrutor-analista.

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