Para bem penetrar a poesia de Augusto dos Anjos, é necessário adotar preliminarmente uma posição estruturalista, que permita compreender o homem e a obra, integrados em uma totalidade unitária.
Para a consecução desse objetivo, faz-se mister à guisa de ordenação metódica e sistemática, indispensável a qualquer ensaio de interpretação crítica, discriminar desde logo, para ulterior explanação e desenvolvimento analítico, fatores de ordem individual e fatores mesológicos. Os primeiros se distribuem em duas categorias distintas: os predominantemente endógenos ou constitucionais, representados pela unidade biopsíquica em seu tríplice aspecto fundamental – o somático, o temperamental e o intelectual; os predominantemente exógenos, que provêm aqui de duas fontes autônomas e definidas – uma espiritual constituída dos elementos até certo ponto antagônicos de sua formação ética e humanística, a outra orgânica, de natureza patológica, representada pela terrível enfermidade pulmonar que o vitimou. Finalmente, entre os fatores mesológicos, cumpre salientar como principais, e de certo modo interdependentes: o seu ambiente cósmico-social e o drama econômico de sua vida.
Facilmente se depreende que, para a rigorosa execução do plano elaborado, é necessário lançar mão de dados biográficos, os quais, neste caso, foram colhidos a maior parte, no comovido e substancioso prefácio de Orris Soares, amigo dileto do grande e incompreendido poeta paraibano, e a quem se deve a cuidadosa recolta de suas poesias completas. Mas não menos importante é, certamente, o elemento subjetivo da própria obra, que vale por uma auto-dissecação, por um fotograma interior de sugestiva eloqüência psicológica.
A arte é, efetivamente, uma forma superior de sublimação, mediante a qual, a tensão afetiva inibida, satisfaz aquilo que em potência representa, sob o aspecto de realizações imaginárias, por mecanismos parcialmente inconscientes de derivação que visam a adaptação funcional progressiva do indivíduo às realidades contingentes. "Criar, como disse Dostoiéwski, é eliminar nossos fantasmas". Daí, o interesse que se confere, hoje em dia, ao estudo da obra de arte, como a mais segura das vias de acesso à intimidade do artista, através dos meios de expressão simbólicos de que ele se utiliza para a exteriorização de suas emoções estéticas.
Numerosas são as criações artísticas que têm constituído objeto de perquirições científicas, sobretudo por parte da escola psicanalítica, cumprindo ressaltar, entre os trabalhos mais divulgados, o do próprio Freud sobre o sorriso da "Gioconda", o de Moeder sobre a "Divina Comedia", o de Jones sobre o "Hamlet", o de Otto Rank sobre o significado da música wagneriana. Entre nós, Artur Ramos, que foi um dos elementos mais representativos daquela corrente psicológica, autor de um pequeno ensaio sobre a complexa personalidade do poeta do "Eu", publicado há muitos anos nos "Anais médico-sociais" da Bahia, sob o título – "Augusto dos Anjos à luz da psicanálise".
No estudo que agora vou empreender sobre o que poderia denominar o seu "componente psicofísico", vou me socorrer inegavelmente em muitas das minhas interpretações dos subsídios fornecidos pela psicanálise. Conquanto não me atenha aqui estritamente aos pontos de vista doutrinários da concepção freudiana, prefiro antes uma posição eclética, que me permita utilizar também a psicologia individual de Adler, a caracterologia de Kretschmer e, muito especialmente, o método fenomenológico-compreensivo de K. Jaspers, quando da necessidade de encarar o fenômeno objetivamente, tal como é experimentado, e no que ele possa ter de permanente e característico.
* * * *
Começando pelo aspecto físico, de transcendência incontestável, vamos reproduzir pequeno trecho do prefácio da obra de Orris Soares, em que ele procura retratar a singular figura do poeta: "Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada". E mais adiante: "Os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio da epiderme trigueira. A clavícula arqueada. Na omoplata, o corpo estreito quebrava-se em uma curva para diante. Os braços pendentes, movimentados pela dança dos dedos, semelhavam duas rabecas tocando a alegoria dos seus versos. O andar tergiversante, nada aprumado, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam o cérebro". E, por fim, concluindo em uma metáfora expressiva: "Feriu-me de chofre o seu tipo excêntrico de pássaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva".
Assim era, efetivamente, Augusto dos Anjos. E dir-se-ia que a sua maneira de versejar, em ângulos agudos, traía-lhe, não raro, o perfil de arestas e adunco.
Mas a descrição fotográfica a que se acaba de aludir serve ainda para demonstrar, de um lado, as correlações estabelecidas pela biotipologia de Kretschmer entre a estrutura corporal astênica e a maneira de ser esquizóide, evidenciada a cada passo na obra do poeta, e do outro, para explicar certas particularidades psicológicas, sem as quais não seria possível compreender a significação de muitas de suas atitudes espirituais, que se refletem imprecisamente no conjunto, e mais nitidamente em certas passagens de sua atividade criadora.
É sabido que a morfologia corporal condiciona geneticamente o aspecto do indivíduo. O estilo dos seus gestos e movimentos, e que origina, por si só, um obscuro sentimento de superioridade ou de inferioridade física, ante as situações, capaz de influir decisivamente em suas reações, frente a um estímulo, e de fazer variar completamente o seu tipo de conduta, não só no plano da ação explícita, como na esfera da vida subjetiva consciente.
O complexo de inferioridade adleriano, arrière-fond de tantos heróis da humanidade, é o responsável teleológico pelo desenvolvimento de muitas aptidões artísticas vigorosas e de um sem número de descobertas científicas. O viver pelo instinto conforme a natureza é apanágio dos que se conceituam fortes, dos que se bastam a si mesmos, dos que nunca experimentaram essa ânsia incontida de algo mais, como compensação às suas insuficiências íntimas, reais ou imaginárias.
Em Augusto dos Anjos, o sentimento de inferioridade física se denuncia sob a forma de renúncia búdica às materialidades terrenas e de desejo manifesto, irreprimível, de afirmação da personalidade no domínio das coisas do espírito.
A demonstração vai às origens daquela sua paixão obsedante pelo estudo, que acabou por transformá-Io em um remanescente retardatário das gerações que o precederam. E estende-se até o título de sua obra poética – "Eu" – que, com o traduzir uma atitude de contemplação narcísica do seu mundo interior, representa, ao mesmo tempo, um "grito de protesto", de imposição tirânica de sua noumenalidade à vida e à natureza, em uma conscientização momentânea do sentimento existencial.
A fome e o amor constituem a polarização da vida animal, na sua expressão mais rudimentar e primitiva. A necessidade de intelectualizar a existência é produto do sentimento de incapacidade, mais do que talvez da incapacidade mesma, de enfrentar a vida, tal como é, na sua realidade rotineira e brutal.
O poema de abertura – "Monólogo de uma sombra" – grandioso pelo tema e pela forma, é, em suma, a glorificação da arte como supremo refúgio do ser humano, esmagado pelas iniqüidades terrenas, após haver reconhecido a inutilidade da ciência diante da morte e a transitoriedade do prazer material, sempre mesclado de sofrimento, conforme o princípio hegeliano da contradição. Tudo se processa aqui por um mecanismo de racionalização compensadora, peculiar às mentalidades robustas, quando expostas a conflitos vitais.
Nos versos de "Agonia de um filósofo", do "Vencido", do "Idealismo", do '''Versos de amor", de "O meu nirvana", de "A fome e o amor", do "Canto de onipotência" e em certas passagens do "Queixas noturnas", obtém-se a ampla confirmação desse pressuposto. Dentre os citados, destacamos, como dos mais típicos:
"No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero,
Encontrei, afinal, o meu Nirvana.
Nessa manumissão schopenhaureana,
Onde a Vida, de humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana.
Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato – ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias -
Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias".
(O meu nirvana)
Em Augusto dos Anjos, a ânsia de evasão da realidade é a expressão de sua inadaptabilidade à vida exterior, traduzindo o que Kretschmer descreveu sob a denominação de esquizoidia. O termo rotula um estado inicial de inadaptação pragmática, situado nas fronteiras da psicose franca, e caracterizado pela perda da sintonização afetiva com o meio. Essa ruptura do contato vital com a realidade (Minkowski) dá, em resultado, a tendência à introversão, isto é, a um estado primitivo de satisfação autoerótica, a que E. Bleuler denominou autismo.
O temperamento esquizóide oferece antinomias e contrastes que lhe emprestam caráter de estranheza. Robespièrre, Calvino, Feuerbach, Tasso, Michelangelo são exemplos sempre citados de esquizóides célebres, que realizam, por sua complexidade psicológica, o que se designa com o qualificativo de personalidades emaranhadas.
Procurando definir a vida interior de um esquizóide de "autismo rico", algumas vezes em absurdo contraste com as suas reações de superfície, Kretschmer assinala, em uma imagem, que muitos dos indivíduos desse grupo "são como certas casas e vilas romanas, que se fecharam ao sol brilhante, enquanto na meia obscuridade do interior celebram festas". . .
Augusto dos Anjos realiza bem o tipo perfeito do esquizóide, permanentemente dissociado da realidade exterior, voltado para dentro de si mesmo, a se auto-analisar, em uma perquirição sem tréguas:
"Escafandrista de insondado oceano,
Sou eu que, aliando Buda ao sibarita
Penetro a essência plásmica infinita,
Mãe promíscua do amor e do ódio insano
.
No abstrato abismo equóreo em que me inundo,
Sou eu que, revolvendo o ego profundo
E a escuridão dos cérebros medonhos,
Restituo triunfalmente à esfera calma
Todos os cosmos que circulam na alma,
Sob a forma embriológica de sonhos!"
(Revelação)
O vagar solitário em meio de noite calma é, por exemplo, um motivo que freqüentemente se repete em muitas de suas amarguradas poesias, todas de um subjetivismo extremo, a traduzir em queixumes, lamentações e revoltas, as vibrações do seu mundo interior. Assim ocorre em "Os doentes", em "As cismas do destino", "lnsônia", "Tristezas de um quarto-minguante", "Noite de um visionário" e nos quartetos dolorosos de "Viagem de um vencido".
Há igualmente outro tema de grande assiduidade na obra do poeta e de que se não pode evitar aqui a reprodução, por constituir nota representativa do quanto se procura demonstrar sobre a sua constituição temperamental. É o que nos é revelado de modo mais flagrante no "As cismas do destino", quando o poeta soluça:
"Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique, no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo".
E logo adiante:
"Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do universo,
Minha morada equilibrada e firme".
A ânsia de uma libertação absoluta e definitiva da ambiência é ainda observada em diversas passagens do "Eu", ora sob a forma de absorção, de assimilação do mundo exterior, por um mecanismo de introjeção do objeto nos recessos da consciência ("As cismas do destino"; "Os doentes"), ora ao contrário, sob a forma de integração panteísta do homem no cosmos, como ocorre, entre outros, nos sonetos "Vozes da morte",
"Árvore da serra", "A floresta", e "Debaixo do Tamarindo", ora finalmente sob a forma de regressão da personalidade às etapas mais embrionárias da evolução filogenética, conforme se verifica em "Os doentes" e no soneto "lnsânia de um simples":
"Em cismas patológicas insanas,
E'-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;
Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,
Ter o destino de uma larva fria,
Deixar, enfim, na cloaca mais sombria
Este feixe de células humanas!
Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho
No silêncio da minha pequenez!"
Em Augusto dos Anjos, o conteúdo ideológico e vivencial da interiorização "autística", é fornecido, em última análise, por elementos adventícios, circunstanciais, inespecíficos, que vão constituir a própria estrutura objetiva, formal, de sua arte poética.
Tome-se o vocábulo "inteligência", no sentido que lhe confere a psicologia atual, isto é, como noção virtual, heurística, com que se designa o conjunto de atributos intelectuais superiores ou funções cognitivas. E empregue-se a expressão "cultura", no conceito de saber estratificado, dinamizado, digerido, metabolizado.
Afigure-se agora, primeiramente, uma inteligência abstrata, por sua própria natureza constitucional, toda empolgada pelo universo metafísico. Augusto dos Anjos não se referia, via de regra, a fenômeno algum, sem aludir imediatamente à sua contextura original específica. Os exemplos se multiplicam em cada página do livro: "substância córnea da unha", "'miséria anatômica da ruga", "mucosa carnívora dos lobos", "frialdade inorgânica da terra", "triunfo emocional do regozijo", "alegria guerreira da desforra", "'odor cadaveroso dos destroços", "camisa vermelha dos incestos", e assim por diante, sempre no mesmo diapasão monocórdico.
Reconheça-se, ao lado disso, a realidade de uma cultura humanística verdadeiramente assombrosa, especialmente no domínio das ciências físicas e naturais. Com que estupenda desenvoltura ele manejava a terminologia científica, alinhando estrofes poderosas e magníficas, rimadas com expressões esdrúxulas e vocábulos de prosódia complicadíssima, que nem por isso comprometiam o efeito sugestivo do verso e a sua inexcusável musicalidade.
Augusto dos Anjos era leitor do homem de Ciência Ernst Haeckel, um sábio da biologia evolucionista de seu tempo. Acredito que sua terminologia do jargão orgânico tenha vindo desta leitura. Assinale-se, finalmente, como nota de contraste das mais curiosas de observar na psicologia do ser humano em geral, a flagrante antinomia entre a sua índole cristã, profundamente espiritualista, e os seus pendores doutrinários no âmbito das ciências biológicas. Ê o que parece ter inspirado o soneto "Vítima do dualismo", em que tão nitidamente se evidencia a sua ambivalência espiritual, a sua bivalência afetiva:
"Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!
Muito mais cedo do que os imagináveis
Eis-vos minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias.
Psique biforme, o Céu e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor de rosa,
Feita dos mais variados elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
a simultaneidade ultra-monstruosa
de todos os contrastes famulentos!"
Conquanto adstrito às correntes evolucionistas, lideradas por Spencer, Darwin, Haeckel (que acabo de citar), entre outros e mais particularmente aferrado às concepções do monismo materialista, que transparecem em muitas de suas produções, parecendo mesmo constituir a orientação filosófica precípua de toda a obra, Augusto dos Anjos deixa entrever, de quando em vez, uma sensibilidade transbordante de lirismo magoado, como se verifica nos sonetos ao pai doente e ao pai morto, e ainda naquele melancólico e delicadíssimo "Ilha de Cipango", ou então, quando arrebatado em êxtase místico, exclama nesta estrofe do seu desvairado "Poema negro":
"Não ! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo… Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
e faz da cloaca uma urna de perfume."
* * * * *
É chegado agora o momento de encenar a tragédia íntima formidável (na mais pura acepção do verbete), que lhe agitou a existência, convindo delimitar aqui, desde logo, duas ordens de elementos: os que derivam da própria consciência da enfermidade e os que se relacionam à enfermidade mesma, considerada objetivamente.
É sabido que a tuberculose pulmonar condiciona em suas vítimas um particular estado de espírito, que se revela em nuances de tal sorte características, que se vai a ponto de atribuir-lhes, não sem exagero, uma individualidade psicológica autônoma. São, em geral, manifestações de tonalidade depressiva ou de feitio hipocondríaco, geradas pelo terror do aniquilamento orgânico, e que, não raro, assumem o aspecto de preocupação obsessiva com a idéia da morte iminente.
Em quase todas as poesias de Augusto dos Anjos, observa-se essa tendência à ruminação masoquista do seu próprio infortúnio.
O pessimismo avassalador e corrosivo, que é a principal diretriz de suas reflexões, altera-lhe a percepção do mundo real, de modo a só permitir-lhe a visão do aspecto negativo das coisas. Sua arte é, por assim dizer, uma glorificação paradoxal da matéria morta, isto é, de tudo que lhe inspira repugnância instintiva ou que lhe sugere a decomposição subterrânea do ser humano:
"Eu sou aquele que ficou sozinho,
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto".
(O poeta do hediondo)
Há, todavia, certas passagens de sua obra, que parecem traduzir estados mentais, diretamente dependentes da infecção tuberculosa, propriamente dita, a agir sobre os seus centros neurais, pelo mesmo mecanismo de como agem as demais toxi-infecções neurológicas. Não se trata aqui, a bem dizer, de uma psicose tuberculosa, no seu conceito geral de entidade mórbida, tão discutido, mas de distúrbios psíquicos intermitentes, exacerbados pela vigília ou pela febre, traduzindo estados confusionais leves e efêmeros, por ofuscação parcial da consciência. É o que ocorre, por exemplo, em "Poema negro" e em "Tristezas de um quarto-minguante", entressachados de imagens alucinatórias aberrantes, de colorido onírico, que podem dar a impressão da extravagância ou de desconexão, a quem não assumir, ao analisá-Ias, uma posição predominantemente fenomenológica.
* * * *
É preciso ainda aqui não esquecer o cenário exterior em que se desenrolou o drama íntimo do poeta, tão prematuramente arrebatado ao convívio dos humanos.
Chegado do norte ao Rio de Janeiro, em uma época em que se desvanecia o ambiente literário do país, rareando por toda a parte os editores, foi-lhe desconcertante a decepção de não ter encontrado aqui o interesse que previra. Ao emigrar da província natal com o seu diploma de bacharel em ciências e letras e o seu farnel abarrotado das mais justas e alentadas esperanças. Premido pelos encargos de família, fora então forçado a recorrer, como único meio de vida, ao professorado secundário, lecionando, a princípio, particularmente, mediante remunerações parcas, como é de adivinhar, e mais tarde regendo turmas, como substituto, na antiga Escola Normal. Minado pela moléstia cuja evolução se acelerava com as privações materiais, queimando as etapas, fora, por fim, levado a aceitar, pela necessidade de clima, a direção de um grupo escolar em uma cidade mineira, onde findou os seus dias, aos vinte e nove anos de idade apenas, sem ter atingido, portanto, o limiar da maturidade.
Foi-lhe a existência um martirológio sem termo. Não obstante, a sua obra aí está opulenta, a desafiar, incólume, a passagem do tempo e as arremetidas da crítica oficial ingênua ou tendenciosa, que a tem tornado objeto de tanta incompreensão e de tanta injustiça.
Não se vacile em reconhecer que haja em seu livro discrepâncias, concepções abstrusas e mesmo imagens atrevidíssimas que, em uma ascensão vertiginosa para o Sublime, chegam a tangenciar os limites do grotesco. É, porem, sobretudo, a segunda parte do livro, que representa, em verdade, a suprema cristalização do seu estro, tanto pela elevação e pureza do pensamento, como pela riqueza, elegância e precisão de linguagem. Aí se encontram diamantes do melhor quilate, verdadeiras obras primas, que fariam honra a qualquer literatura do mundo.
Se é verdade que a poesia é a alma do verso, Augusto dos Anjos foi, indiscutivelmente, um grande poeta. Ninguém, melhor que ele, soube mergulhar na alma da natureza, penetrar o sentido oculto das coisas e até extrair dos prosaicismos mais abjetos motivos de beleza.
E quando se desprovia das suntuosidades de sua verbalística e de seu fraseado acadêmico para exibir à luz meridiana as exuberâncias de sua sentimentalidade! Haja visto aquele delicioso "Ricordanza della mia gioventú" e, no mesmo sentido, o sugestivo e musical poemeto, "Uma noite no Cairo", que é, certamente, inigualável em riqueza pictórica.
Não se compreende como alguns espíritos esclarecidos e brilhantes possam contestar, em sã consciência, a beleza elegíaca dos versos sombrios de Augusto dos Anjos. É que lhes falta, talvez, certa capacidade de empatia, isto é, de interpenetração espiritual, em relação ao bardo inexcedível, que constituiu todo um período luminoso da nossa poesia. Há que ter a sensibilidade apurada na sondagem diuturna das tragédias humanas para entender em toda a sua plenitude, o cântico amargurado de quem passou pela existência, como o espectro lívido da Mágoa, ferido de uma estranha e inconsolável melancolia.