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Pequeno ensaio sobre Augusto dos Anjos

Para bem penetrar a poesia de Augus­to dos Anjos, é necessário adotar preliminarmente uma posição estrutura­lista, que permita compreender o homem e a obra, integrados em uma totalidade uni­tária.

Os conceitos que se têm expendido a propósito são, as mais das vezes, super­ficiais ou incompletos, não chegando a abranger, senão aspectos parciais da ques­tão, por abstração dos fatores de ordem ge­ral e particular que intervieram na forma­ção de sua personalidade total. Daí o consi­derar-se o aparente como real e o confun­dir-se o fundamental com o que é apenas acessório. Assim, a preocupação do ma­cabro, a idéia absorvente do apodreci­mento final, a predileção quase obsessiva pelos temas rebarbativos ou escabrosos, a riqueza do vocabulário técnico irrepreen­sível, são apenas características formais, que não traduzem a essência, a natureza íntima, a significação profunda de sua arte poética, cujas origens terão que ser perquiridas nos componentes de sua pró­pria estrutura psicológica, através da análise pluridimensional de sua persona­lidade.

Para a consecução desse objetivo, faz-se mister à guisa de ordenação metó­dica e sistemática, indispensável a qual­quer ensaio de interpretação crítica, dis­criminar desde logo, para ulterior expla­nação e desenvolvimento analítico, fato­res de ordem individual e fatores mesoló­gicos. Os primeiros se distribuem em duas categorias distintas: os predominan­temente endógenos ou constitucionais, representados pela unidade biopsíquica em seu tríplice aspecto fundamental – o somático, o temperamental e o intelectual; os predominantemente exó­genos, que provêm aqui de duas fontes autônomas e definidas – uma espiritual constituída dos elementos até certo ponto antagônicos de sua formação ética e humanística, a outra orgânica, de natureza patológica, representada pela terrível enfermidade pulmonar que o vi­timou. Finalmente, entre os fatores mesológicos, cumpre salientar como princi­pais, e de certo modo interdependentes: o seu ambiente cósmico-social e o drama econômico de sua vida.

Facilmente se depreende que, para a rigorosa execução do plano elaborado, é necessário lançar mão de dados biográfi­cos, os quais, neste caso, foram co­lhidos a maior parte, no comovido e subs­tancioso prefácio de Orris Soares, amigo dileto do grande e incompreendido poeta paraibano, e a quem se deve a cuidadosa recolta de suas poesias completas. Mas não menos importante é, certa­mente, o elemento subjetivo da própria obra, que vale por uma auto­-dissecação, por um fotograma interior de sugestiva eloqüência psicológica.

A arte é, efetivamente, uma forma superior de sublimação, mediante a qual, a tensão afetiva inibida, satisfaz aquilo que em potência represen­ta, sob o aspecto de realizações imaginárias, por mecanismos par­cialmente inconscientes de derivação que visam a adaptação fun­cional progressiva do indivíduo às reali­dades contingentes. "Criar, como dis­se Dostoiéwski, é eliminar nossos fan­tasmas". Daí, o interesse que se confere, hoje em dia, ao estudo da obra de arte, como a mais segura das vias de aces­so à intimidade do artista, através dos meios de expressão simbólicos de que ele se utiliza para a exteriorização de suas emoções estéticas.

Numerosas são as criações artísticas que têm constituído ob­jeto de perquirições científicas, sobretudo por parte da escola psicanalítica, cum­prindo ressaltar, entre os trabalhos mais divulgados, o do próprio Freud sobre o sorriso da "Gioconda", o de Moeder sobre a "Divina Comedia", o de Jones sobre o "Hamlet", o de Otto Rank sobre o signi­ficado da música wagneriana. Entre nós, Artur Ramos, que foi um dos ele­mentos mais representativos daquela cor­rente psicológica, autor de um pequeno ensaio sobre a complexa personalidade do poeta do "Eu", publicado há muitos anos nos "Anais médico-sociais" da Bahia, sob o título – "Augusto dos Anjos à luz da psi­canálise".

No estudo que agora vou empreen­der sobre o que poderia denominar o seu "componente psicofísico", vou me socorrer inegavelmente em muitas das minhas interpretações dos subsídios for­necidos pela psicanálise. Conquanto não me atenha aqui estritamente aos pontos de vista doutrinários da concepção freudiana, prefiro antes uma posição eclética, que me permita utilizar também a psicologia individual de Adler, a caracte­rologia de Kretschmer e, muito especial­mente, o método fenomenológico-compreensivo de K. Jaspers, quando da necessidade de encarar o fenômeno objetivamente, tal co­mo é experimentado, e no que ele possa ter de permanente e característico.

* * * *

Começando pelo aspecto físico, de transcendência incontestável, vamos reproduzir pequeno trecho do prefácio da obra de Orris Soares, em que ele procura re­tratar a sin­gular figura do poeta: "Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquáli­da – faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada". E mais adiante: "Os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio da epiderme trigueira. A clavícula arquea­da. Na omoplata, o corpo estreito que­brava-se em uma curva para diante. Os braços pendentes, movimentados pela dança dos dedos, semelhavam duas rabe­cas tocando a alegoria dos seus versos. O andar tergiversante, nada aprumado, pa­recia reproduzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam o cérebro". E, por fim, concluindo em uma metáfora expressiva: "Feriu-me de chofre o seu tipo excêntrico de pássaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva".

Assim era, efetivamente, Augusto dos Anjos. E dir-se-ia que a sua maneira de versejar, em ângulos agudos, traía-lhe, não raro, o perfil de arestas e adunco.

Mas a descrição fotográfica a que se acaba de aludir serve ainda para demons­trar, de um lado, as correlações estabele­cidas pela biotipologia de Kretschmer entre a estrutura corporal astênica e a maneira de ser es­quizóide, evidenciada a cada passo na obra do poeta, e do outro, para explicar certas particularidades psicológicas, sem as quais não seria possível compreender a significação de muitas de suas atitudes espirituais, que se refletem imprecisa­mente no conjunto, e mais nitidamente em certas passagens de sua atividade criadora.

É sabido que a morfologia corporal condiciona geneticamente o aspecto do indivíduo. O estilo dos seus gestos e movimentos, e que origina, por si só, um obscuro senti­mento de superioridade ou de inferiori­dade física, ante as situações, capaz de influir decisivamente em suas reações, frente a um estímulo, e de fazer variar completamente o seu tipo de conduta, não só no plano da ação explícita, como na esfera da vida subjetiva consciente.

O complexo de inferioridade adleriano, ar­rière-fond de tantos heróis da humanida­de, é o responsável teleológico pelo desenvolvimento de muitas aptidões artísticas vigorosas e de um sem número de desco­bertas científicas. O viver pelo instinto conforme a natureza é apanágio dos que se conceituam fortes, dos que se bastam a si mesmos, dos que nunca experimenta­ram essa ânsia incontida de algo mais, como compensação às suas insuficiências íntimas, reais ou imaginárias.

Em Augusto dos Anjos, o sentimento de inferioridade física se denuncia sob a forma de renúncia búdica às materia­lidades terrenas e de desejo manifesto, irreprimível, de afirmação da personali­dade no domínio das coisas do espírito.

A demonstração vai às origens daquela sua paixão obsedante pelo estudo, que acabou por transformá-Io em um remanescente retardatário das gerações que o precede­ram. E estende-se até o título de sua obra poética – "Eu" – que, com o tra­duzir uma atitude de contemplação nar­císica do seu mundo interior, representa, ao mesmo tempo, um "grito de protesto", de imposição tirânica de sua noumenali­dade à vida e à natureza, em uma conscien­tização momentânea do sentimento exis­tencial.

A fome e o amor constituem a pola­rização da vida animal, na sua expressão mais rudimentar e primitiva. A necessi­dade de intelectualizar a existência é pro­duto do sentimento de incapacidade, mais do que talvez da incapacidade mesma, de enfrentar a vida, tal como é, na sua rea­lidade rotineira e brutal.

O poema de abertura – "Monólogo de uma sombra" – grandioso pelo tema e pela forma, é, em suma, a glorificação da arte como supremo refúgio do ser huma­no, esmagado pelas iniqüidades terrenas, após haver reconhecido a inutilidade da ciência diante da morte e a transitorieda­de do prazer material, sempre mesclado de sofrimento, conforme o princípio hegelia­no da contradição. Tudo se processa aqui por um mecanismo de racionalização compensadora, peculiar às mentalidades robustas, quando expostas a conflitos vitais.

Nos versos de "Agonia de um filóso­fo", do "Vencido", do "Idealismo", do '''Versos de amor", de "O meu nirvana", de "A fome e o amor", do "Canto de oni­potência" e em certas passagens do "Quei­xas noturnas", obtém-se a ampla con­firmação desse pressuposto. Dentre os citados, destacamos, como dos mais tí­picos:

"No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero,
Encontrei, afinal, o meu Nirvana.

Nessa manumissão schopenhaureana,
Onde a Vida, de humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana.

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato – ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias ­-

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias".
(O meu nirvana)

Em Augusto dos Anjos, a ânsia de evasão da realidade é a expressão de sua inadaptabilidade à vida exterior, tradu­zindo o que Kretschmer descreveu sob a denominação de esquizoidia. O termo ro­tula um estado inicial de inadaptação pragmática, situado nas fronteiras da psicose franca, e caracterizado pela perda da sintonização afetiva com o meio. Essa ruptura do contato vital com a realidade (Minkowski) dá, em resultado, a tendência à introversão, isto é, a um estado primitivo de satisfação autoerótica, a que E. Bleuler denominou autismo.

O temperamento esquizóide oferece antinomias e contrastes que lhe empres­tam caráter de estranheza. Robespièrre, Calvino, Feuerbach, Tasso, Michelange­lo são exemplos sempre citados de esqui­zóides célebres, que realizam, por sua complexidade psicológica, o que se desig­na com o qualificativo de personalidades emaranhadas.

Procurando definir a vida interior de um esquizóide de "autismo rico", algu­mas vezes em absurdo contraste com as suas reações de superfície, Kretschmer assinala, em uma imagem, que muitos dos indivíduos desse grupo "são como certas casas e vilas romanas, que se fecharam ao sol brilhante, enquanto na meia obscuri­dade do interior celebram festas". . .

Augusto dos Anjos realiza bem o tipo perfeito do esquizóide, permanentemente dissociado da realidade exterior, voltado para dentro de si mesmo, a se auto-analisar, em uma perquirição sem tréguas:

"Escafandrista de insondado oceano,
Sou eu que, aliando Buda ao sibarita
Penetro a essência plásmica infinita,
Mãe promíscua do amor e do ódio insano

.
No abstrato abismo equóreo em que me inundo,
Sou eu que, revolvendo o ego profundo
E a escuridão dos cérebros medonhos,

Restituo triunfalmente à esfera calma
Todos os cosmos que circulam na alma,
Sob a forma embriológica de sonhos!"
(Revelação)

O vagar solitário em meio de noite calma é, por exemplo, um motivo que freqüentemente se repete em muitas de suas amarguradas poesias, todas de um subje­tivismo extremo, a traduzir em queixu­mes, lamentações e revoltas, as vibrações do seu mundo interior. Assim ocorre em "Os doentes", em "As cismas do destino", "lnsônia", "Tristezas de um quarto-min­guante", "Noite de um visionário" e nos quartetos dolorosos de "Viagem de um vencido".

Há igualmente outro tema de grande assiduidade na obra do poeta e de que se não pode evitar aqui a reprodução, por constituir nota representativa do quanto se procura demonstrar sobre a sua cons­tituição temperamental. É o que nos é revelado de modo mais flagrante no "As cismas do destino", quando o poeta soluça:

"Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique, no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo".

E logo adiante:
"Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do universo,
Minha morada equilibrada e firme".

A ânsia de uma libertação absoluta e definitiva da ambiência é ainda observa­da em diversas passagens do "Eu", ora sob a forma de absorção, de assimilação do mundo exterior, por um mecanismo de introjeção do objeto nos recessos da con­sciência ("As cismas do destino"; "Os doentes"), ora ao contrário, sob a forma de integração panteísta do homem no cosmos, como ocorre, entre outros, nos sonetos "Vozes da morte",

"Ár­vore da serra", "A floresta", e "Debaixo do Tamarindo", ora finalmente sob a for­ma de regressão da personalidade às eta­pas mais embrionárias da evolução filo­genética, conforme se verifica em "Os doentes" e no soneto "lnsânia de um simples":

"Em cismas patológicas insanas,
E'-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;

Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,
Ter o destino de uma larva fria,
Deixar, enfim, na cloaca mais sombria
Este feixe de células humanas!

Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho
No silêncio da minha pequenez!"

Em Augusto dos Anjos, o conteúdo ideo­lógico e vivencial da interioriza­ção "autística", é fornecido, em última análise, por elementos adventícios, cir­cunstanciais, inespecíficos, que vão cons­tituir a própria estrutura objetiva, formal, de sua arte poética.

Tome-se o vocábulo "inteligência", no ­sentido que lhe confere a psicologia atual, isto é, como noção virtual, heurís­tica, com que se designa o conjunto de atributos intelectuais superiores ou fun­ções cognitivas. E empregue-se a expressão "cultura", no conceito de saber estratificado, dinamizado, digerido, meta­bolizado.

Afigure-se agora, primeiramente, uma inteligência abstrata, por sua própria natureza constitucional, toda empolgada pelo universo metafísico. Augusto dos Anjos não se referia, via de regra, a fenô­meno algum, sem aludir imediatamente à sua contextura original específica. Os exemplos se multiplicam em cada página do livro: "substância córnea da unha", "'miséria anatômica da ruga", "mucosa carnívora dos lobos", "frialdade inorgâ­nica da terra", "triunfo emocional do re­gozijo", "alegria guerreira da desforra", "'odor cadaveroso dos destroços", "camisa vermelha dos incestos", e assim por dian­te, sempre no mesmo diapasão mono­córdico.

Reconheça-se, ao lado disso, a reali­dade de uma cultura humanística verda­deiramente assombrosa, especialmente no domínio das ciências físicas e naturais. Com que estupenda desenvoltura ele ma­nejava a terminologia científica, ali­nhando estrofes poderosas e magníficas, rimadas com expressões esdrúxulas e vocábulos de prosódia complicadíssima, que nem por isso comprometiam o efeito sugestivo do verso e a sua inexcusável musicalidade.

Augusto dos Anjos era leitor do homem de Ciência Ernst Haeckel, um sábio da biologia evolucionista de seu tempo. Acredito que sua terminologia do jargão orgânico tenha vindo desta leitura. Assinale-se, finalmente, como nota de contraste das mais curiosas de observar na psicologia do ser humano em geral, a flagrante antinomia entre a sua índole cristã, profundamente espiritualista, e os seus pendores doutrinários no âmbito das ciências biológicas. Ê o que parece ter inspirado o soneto "Vítima do dualismo", em que tão nitidamente se evidencia a sua ambivalência espiritual, a sua bivalência afetiva:

"Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!

Muito mais cedo do que os imagináveis
Eis-vos minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias.

Psique biforme, o Céu e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor de rosa,
Feita dos mais variados elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,
a simultaneidade ultra-monstruosa
de todos os contrastes famulentos!"

Conquanto adstrito às correntes evo­lucionistas, lideradas por Spencer, Dar­win, Haeckel (que acabo de citar), entre outros e mais parti­cularmente aferrado às concepções do monismo materialista, que transparecem em muitas de suas produções, parecendo mesmo constituir a orientação filosófica precípua de toda a obra, Augusto dos An­jos deixa entrever, de quando em vez, uma sensibilidade transbordante de lirismo magoado, como se verifica nos sonetos ao pai doente e ao pai morto, e ainda naquele melancólico e delicadíssimo "Ilha de Ci­pango", ou então, quando arrebatado em êxtase místico, exclama nesta estrofe do seu desvairado "Poema negro":

"Não ! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo… Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
e faz da cloaca uma urna de perfume."

* * * * *

É chegado agora o momento de ence­nar a tragédia íntima formidável (na mais pura acepção do verbete), que lhe agitou a existência, convindo delimitar aqui, desde logo, duas ordens de elementos: os que derivam da própria consciência da enfermidade e os que se relacionam à enfermidade mesma, consi­derada objetivamente.

É sabido que a tuberculose pulmonar condiciona em suas vítimas um particular estado de espírito, que se revela em nuan­ces de tal sorte características, que se vai a ponto de atribuir-lhes, não sem exagero, uma individualidade psicológica autôno­ma. São, em geral, manifestações de to­nalidade depressiva ou de feitio hipocon­dríaco, geradas pelo terror do aniquila­mento orgânico, e que, não raro, assumem o aspecto de preocupação obsessiva com a idéia da morte iminente.

Em quase todas as poesias de Augus­to dos Anjos, observa-se essa tendência à ruminação masoquista do seu próprio in­fortúnio.

O pessimismo avassalador e corrosi­vo, que é a principal diretriz de suas reflexões, altera-lhe a percepção do mun­do real, de modo a só permitir-lhe a visão do aspecto negativo das coisas. Sua arte é, por assim dizer, uma glorificação para­doxal da matéria morta, isto é, de tudo que lhe inspira repugnância instintiva ou que lhe sugere a decomposição subterrânea do ser humano:

"Eu sou aquele que ficou sozinho,
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto".
(O poeta do hediondo)

Há, todavia, certas passagens de sua obra, que parecem traduzir estados men­tais, diretamente dependentes da infecção tuberculosa, propriamente dita, a agir sobre os seus centros neurais, pelo mes­mo mecanismo de como agem as demais toxi-infecções neurológicas. Não se trata aqui, a bem dizer, de uma psicose tuberculosa, no seu conceito geral de entidade mórbida, tão discutido, mas de distúrbios psíquicos intermitentes, exacerbados pela vigília ou pela febre, traduzindo estados confusio­nais leves e efêmeros, por ofuscação parcial da consciência. É o que ocorre, por exemplo, em "Poema negro" e em "Tristezas de um quarto-minguante", en­tressachados de imagens alucinatórias aberrantes, de colorido onírico, que podem dar a impressão da extravagância ou de desconexão, a quem não assumir, ao analisá-Ias, uma posição predominante­mente fenomenológica.

* * * *

É preciso ainda aqui não esquecer o cenário exterior em que se desenrolou o drama íntimo do poeta, tão prematuramente ar­rebatado ao convívio dos humanos.

Chegado do norte ao Rio de Janeiro, em uma época em que se desvanecia o ambiente literário do país, rareando por toda a parte os editores, foi-lhe desconcertante a decepção de não ter encontrado aqui o interesse que pre­vira. Ao emigrar da província natal com o seu diploma de bacharel em ciências e letras e o seu farnel abarrotado das mais justas e alentadas esperanças. Premido pelos encargos de família, fora então for­çado a recorrer, como único meio de vida, ao professorado secundário, lecionando, a princípio, particularmente, mediante re­munerações parcas, como é de adivinhar, e mais tarde regendo turmas, como subs­tituto, na antiga Escola Normal. Minado pela moléstia cuja evolução se acelerava com as privações materiais, queimando as etapas, fora, por fim, levado a aceitar, pela necessidade de clima, a direção de um grupo escolar em uma cidade mineira, onde findou os seus dias, aos vinte e nove anos de idade apenas, sem ter atingido, portanto, o li­miar da maturidade.

Foi-lhe a existência um martirológio sem termo. Não obstante, a sua obra aí está opulenta, a desafiar, incólume, a passagem do tempo e as arremetidas da crítica oficial ingênua ou tendenciosa, que a tem tornado objeto de tanta incompre­ensão e de tanta injustiça.

Não se vacile em reconhecer que haja em seu livro discrepâncias, concepções abstrusas e mesmo imagens atrevidíssi­mas que, em uma ascensão vertiginosa para o Sublime, chegam a tangenciar os limites do grotesco. É, porem, sobretudo, a se­gunda parte do livro, que representa, em verdade, a suprema cristalização do seu estro, tanto pela elevação e pureza do pensamento, como pela riqueza, elegância e precisão de linguagem. Aí se encon­tram diamantes do melhor quilate, verda­deiras obras primas, que fariam honra a qualquer literatura do mundo.

Se é verdade que a poesia é a alma do verso, Augusto dos Anjos foi, indiscuti­velmente, um grande poeta. Ninguém, melhor que ele, soube mergulhar na alma da natureza, penetrar o sentido oculto das coisas e até extrair dos prosaicismos mais abjetos motivos de beleza.

E quando se desprovia das suntuo­sidades de sua verbalística e de seu fra­seado acadêmico para exibir à luz meri­diana as exuberâncias de sua sentimenta­lidade! Haja visto aquele delicioso "Ri­cordanza della mia gioventú" e, no mesmo sentido, o sugestivo e musical poemeto, ­"Uma noite no Cairo", que é, certamen­te, inigualável em riqueza pictórica.

Não se compreende como alguns es­píritos esclarecidos e brilhantes possam contestar, em sã consciência, a beleza ele­gíaca dos versos sombrios de Augusto dos Anjos. É que lhes falta, talvez, certa capacidade de empatia, isto é, de interpe­netração espiritual, em relação ao bardo inexcedível, que constituiu todo um perío­do luminoso da nossa poesia. Há que ter a sensibilidade apurada na sondagem diuturna das tragédias humanas para en­tender em toda a sua plenitude, o cântico amargurado de quem passou pela existên­cia, como o espectro lívido da Mágoa, feri­do de uma estranha e inconsolável me­lancolia.

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