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Observáveis cinemáticos e dinâmicos. Em física há ação e energia. Classificação dos sistemas físicos e dos limites da intuição – parte III

Até agora os observáveis do sistema físico e das pro­priedades associadas foram apresentados em forma abs­trata. Neste artigo insistirei em um conjunto de observáveis de grande importância para a descrição dos sistemas físicos. São eles: as coordenadas generaliza­das, os impulsos canônicos, a energia e a ação. Em con­tinuação definirei escalas características para todos os sistemas físicos, o que permitirá estabelecer uma classi­ficação dos mesmos e assim definir os graus de aplicação das diferentes teorias físicas disponíveis para seu estudo. Neste contexto é fundamental determinar os limites de validez de nossa intuição quando ela se apli­ca aos sistemas físicos.

O conceito de posição dos objetos no espaço é formalizado nos sistemas físicos com o observável de posição X ao qual se assinalam valores que correspondem à distância do objeto a certos pontos ou eixos eleitos convencionalmente, e que recebe o nome de "coorde­nada". Já foi mencionado que a coordenada X ca­racteriza a posição de uma partícula que se move ao longo de uma linha (um caminhante em uma rua) e que po­de tomar diferentes valores (X = 5 m, por exemplo). Para caracterizar uma partícula que se move sobre um plano (um caminhante em uma cidade) é necessário fixar duas coor­denadas X, Y, e se a partícula se move no espaço de três dimensões serão necessárias três coordenadas X, Y, Z. Se o sistema físico tem duas partículas, as coordenadas se duplicarão, e se temos, por exemplo, 8 partículas que se movem em três dimensões, serão necessárias 3 x 8 = 24 coordenadas. O número de coordenadas necessá­rio para fixar exatamente a posição de um sistema físico equivale aos "graus de liberdade" do mesmo.

Nos exemplos anteriores, as coordenadas eram dis­tâncias a pontos ou eixos. Para certos sistemas físicos é con­veniente eleger coordenadas que correspondem a ângu­los que fixam direções, referidas a uma direção dada. O estado de uma biruta que indica a direção do vento se caracterizará mais naturalmente com um ângulo. O mes­mo sucede com a posição de todo sistema físico onde a rotação seja relevante.

Denominam-se coordenadas generalizadas aos observáveis (distâncias, ângulos, o que seja) eleitos para determinar sem ambigüidade a posição ou localização do sistema físico. A estes observáveis os designamos com as letras Q1, Q2, Qa,… Qk.

Nossa experiência nos indica que os valores associa­dos às coordenadas variam com o tempo. Se para uma partícula em movimento ao longo de uma linha temos em um instante a propriedade X = 5 m, em algum instante posterior poderemos ter a propriedade X = 8 m. Isto sig­nifica que, associado a cada coordenada, podemos definir outro observável: a velocidade com que muda o valor assinalado à coordenada. Por exemplo, se V é o obser­vável, o sistema físico definido pode ter a propriedade V = 2 metros por segundo. Se a coordenada em questão é um ângulo, a velocidade associada será uma velocidade an­gular de rotação. A velocidade é uma quantidade essen­cialmente cinemática, pois se refere à descrição espaço-temporal do movimento. O formalismo da mecânica clássica nos ensinou que a velocidade asso­ciada a uma coordenada é relevante, mas muito mais o é uma quantidade que depende da velocidade e também da quantidade de matéria que se encontra em movimen­to. Um mosquito que avança a 60 km/h não é o mesmo que uma locomotiva a essa velocidade. Define-se, então, o impulso como o produto da velocidade pela massa P = m V. Esta é uma quantidade dinâmica – vinculada às causas que originam o movimento -, cujo valor se con­serva quando nenhuma força atua e cuja mudança tem­poral depende da força aplicada na direção indi­cada pela coordenada. Se a coordenada é um ângulo, o impulso associado será a velocidade angular multiplica­da por uma quantidade que indica a inércia ou resistência que opõe o corpo a ser rodado com maior velocidade.

Generalizamos isto dizendo que, para cada coordenada generalizada, se define uma quantidade dinâmica chamada impulso canônico, que indicamos pelas letras P1, P2, Pa,… Pk, e que está relacionado com a velocidade e com a inércia ou resistência que o sistema opõe às mudanças de dita velocidade.

As coordenadas generalizadas Q1, Q2, Qa,… Qk, e os im­pulsos canônicos correspondentes P1, P2, Pa,… Pk, são ob­serváveis que participam na descrição da cinemáti­ca e dinâmica do sistema físico.

A meta da mecânica clássica é determinar como variam com o tempo as propriedades associadas a todas as coor­denadas e impulsos simultaneamente. Para propor as equações matemáticas que permitem alcançar esta meta é de grande utilidade definir duas quantidades que dependem de todas as coordenadas e impulsos do sistema físico, a saber: a energia e a ação. Ambas as quantidades também são importantes em nosso caso, apesar de que, como veremos mais adiante, a meta proposta para a mecâni­ca clássica seria inalcançável para a mecânica quântica.

Todo corpo em movimento possui uma quantidade de energia devido ao mesmo movimento, que se denomina "energia cinética". Quando um corpo choca contra al­gum objeto e se detém, libera sua energia cinética, a qual fica de manifesto nos danos e deformações pro­duzidos. Esta energia pode ser incrementada pela ação de uma força, que efetua um trabalho e aumenta a velocidade do corpo. Se não se aplica nenhuma força, a energia cinética, como o impulso também, mantém seu va­lor constante. Em geral, a energia cinética se expressa matematicamente como uma função que depende de to­das as velocidades associadas a todas as coordenadas ge­neralizadas. Mais adequado é expressá-la como função dos impulsos canônicos.

Além disso, da energia cinética ou do movimento, que é fácil de imaginar, existe outra forma de energia algo mais abstrata que se chama "energia potencial". É a energia, ainda não realizada, que existe nas forças apli­cadas ao corpo e que eventualmente se transformará em energia cinética.

Para ilustrar a relação entre estas duas formas de ener­gia, consideremos um pêndulo que oscila subindo e baixando pela ação de seu peso, isto é, da força de gravidade. Lembremos nossa infância, quando nos balançávamos no parque dominando esse sistema físico que é o pêndulo. No ponto mais baixo do pêndulo corresponde a máxima velocidade. Portanto, a energia cinética é máxima. Neste ponto, a força, ou seja, o peso é perpendicular ao movimento e não pode produzir-se nenhuma mudança em seu valor. Ali começamos a elevar-nos, "carregando" de energia potencial à força de atração da Terra e diminuindo a energia ciné­tica. Isto continua até chegar ao ponto mais alto do pên­dulo, onde o movimento se detém; a energia cinéti­ca transformou-se totalmente em potencial, a que novamente começará a transformar-se em cinética ao iniciar a queda com velocidade crescente. No pêndulo, a energia vai mudando em forma periódica entre ci­nética e potencial, permanecendo a soma de ambas cons­tante em todo o processo. A energia potencial, que neste exemplo está associada à coordenada "altura", será, em geral, dependente de todas as coordenadas do sistema físico.

O conceito de energia se formaliza na mecânica clássica pela função chamada hamiltoneana, que se ob­tém somando a energia cinética mais a potencial asso­ciada a todas as coordenadas generalizadas e impulsos canônicos do sistema físico. A partir desta função se obtém na mecânica clássica as equações chamadas "de Hamilton", que determinam o comportamento tem­poral de todas as posições e impulsos, relacionando as variações temporais das mesmas com a variação  hamiltoneana com respeito às coordenadas e impulsos. Em outras palavras, o conhecimento hamil­toneano nos permite alcançar a meta proposta para a mecânica clássica.

Pelo visto, a energia tem um papel de fundamental importância na física. Os físicos se sentem incomodados quando esse belíssimo conceito é manuseado e desvirtua­do por pseudo-cientificismos que o adotam para dar-lhe al­gum brilho a suas charlatanices roubando o prestígio que o mesmo tem na física.

O outro conceito que determina a dinâmica dos sis­temas físicos é o da ação. Esta quantidade pode ex­pressar-se em várias formas equivalentes que envolvem uma evolução temporal ou espacial do sistema. Entre a energia e a ação existe uma diferença importante. A energia se pode expressar como uma função genera­lizada de todas as coordenadas e de seus impulsos canô­nicos correspondentes em qualquer instante. Lembremos que o impulso canônico associado a uma coordenada é a variável dinâmica relacionada à "velocidade" de variação da coordenada em questão e à resistência à mudança na mesma. A ação não depende do valor ins­tantâneo que tomam as coordenadas e os impulsos, mas, pelo contrário, depende de todos os valores que estes tomam durante um processo de evolução do sistema que pode estar definido entre dois instantes dados. A ação é, então, uma quantidade global, característica da evolução temporal e espacial do sistema e não do estado instantâneo e local do mesmo. Não darei aqui a expressão matemática para a ação, porque não será ne­cessária para as nossas metas.

Somente é impor­tante ressaltar que cada coordenada QK com seu impulso canônico associado PK contribui para a ação em uma quanti­dade que podemos aproximar mediante o produto da "distância" ∆QK  recorrida pelo sistema em sua evolução pelo impulso médio <PK>. Além destas contribuições, a energia do sistema contribui em uma quantidade que também podemos aproximar mediante o produto do tempo ∆T de evolução pela energia média. Para alcançar a meta da física clássica, que, como já se mencionou, é obter a dependência temporal do valor de todas as coordenadas e impulsos, a partir da ação, é necessário postular o famoso princípio da mínima ação (princípio de Hamilton), o qual estabelece que as coordenadas e impulsos como funções do tempo, Qk(t) e Pk(t)  serão tais que a ação adquira um valor mínimo.

À miúdo, físicos e matemáticos utilizam palavras que têm um significado usual na linguagem co­mum para nomear conceitos com significados precisos em suas teorias. Não necessariamente ambos os significados são compatíveis, o que pode gerar confusão. Por exem­plo, aos quarks, partículas elementares que formam os prótons, nêutrons e outras partículas, lhes assinalam certas propriedades chamadas "cor" e "sabor" que, evidente­mente, nada têm em comum com o sabor e cor de uma fruta. Os matemáticos falam de números "naturais", que não são nem mais nem menos naturais que os outros. Os números "reais" não são atributos de reis nem têm mais realidade que os "complexos", os quais, por sua vez, não são mais complicados que os demais. A palavra "ação" tem um significado bastante claro na linguagem comum e é natural perguntar-se se este significado é compatível com o conceito físico que nomeia. Acontece que o nome é bastante adequado porque, também em física, designa a capacidade que o sistema tem de modificar seu entorno e de inter-atuar com outros sistemas físicos.

Um sis­tema físico caracterizado em sua evolução por um valor grande de ação pode modificar fortemente a outros de pequeno valor sem sofrer grandes alterações. O jo­go de tênis é possível porque os jogadores estão caracte­rizados por valores de ação muito grandes comparados com o da bola. (Os elétrons se repelem porque têm cargas elétricas de igual sinal, mas também se po­de dizer que o fazem porque pretendem jogar o tê­nis com fótons. O jogo não dura muito tempo porque, ao ser a ação dos "jogadores" equiparável à ação da "bola", aqueles são repelidos.)

A energia total (cinética mais potencial) ou a ação fixam a dinâmica dos sistemas físicos. Na mecânica clássica permitem calcular a dependência temporal de todas as coordenadas generalizadas e de seus impulsos canônicos.

A variedade e o número de sistemas físicos a estudar é enorme. É tão grande a variedade e são tão grandes as diferenças entre os sistemas que podemos duvidar de que uma só teoria física possa tratá-los a todos. Para ter uma noção dos múltiplos sistemas físicos é útil estabelecer uma classificação dos mesmos. Mas com que critérios? O primeiro que se apresenta é classificar os sis­temas físicos em "pequenos e grandes" ou, mais precisamen­te, de acordo com uma escala espacial X que corresponde à extensão que o sistema abarca. O sistema físico mais extenso que podemos pensar é simplesmente todo o uni­verso físico, com uma escala espacial de X = 1010 anos-luz (1010 = 10.000.000.000). Um ano-luz é a distância que per­corre a luz em um ano, ≈ 1016 metros. As galáxias, conjuntos de muitos milhões de sóis, estão caracterizadas por uma escala espacial de muitos milhares de anos-luz, e ao sistema solar lhe podemos assinalar como escala espacial seu diâmetro, na ordem dos 1012 metros. Aqueles sis­temas físicos com os quais o ser humano estabelece um contato direto através de seus sentidos têm uma esca­la espacial em torno de um milímetro a um quilômetro. Abaixo disto encontramos escalas microscópicas para sistemas bio­físicos, e chegamos às moléculas e átomos com escalas espaciais de 10-10 metros, dimensão que leva o nome de Angstrom e o símbolo Ǻ (10-10 = 1/1010). Os nú­cleos e as partículas elementares estão caracterizados por escalas espaciais de 10-15 metros (1 fermi). Estes são os sistemas físicos menores conhecidos hoje. Com os gigantescos aceleradores de partículas se pode sondar escalas até de 10-19 metros.

Da mesma forma que nos foi fácil classificar os siste­mas físicos segundo seu tamanho, também é possível fazê-lo segundo uma escala temporal T, que corresponde ao tempo típico de evolução, de transformação ou de estabilidade dos sistemas físicos. As partículas elementares e nú­cleos atômicos têm tempos característicos entre 10-10  e 10-20 segundos. As moléculas e átomos se situam em uma escala temporal entre T = 10-6 e T = 10-9 segundos. A escala temporal do ser humano e dos objetos de sua experiência sensorial pode situar-se em torno do segundo ao século. Tempos típicos para o sistema solar serão de um ano; para as galáxias, muitos milhares de anos, e para todo o universo podemos eleger sua idade de 1010 anos.

Classificamos aqui os sistemas físicos segundo dois con­ceitos cinemáticos de extensão e rapidez de evolução. Esta classificação é simples, mas forçosamente incom­pleta, porque não contém informação sobre os concei­tos dinâmicos que, como temos visto, são importantes para a descrição dos sistemas físicos.

Devemos, então, completar nossos critérios de classificação com duas escalas dinâmicas: o impulso P e a energia E, que correspondem aos valores típicos que se encontram nos sistemas físicos para estas quantidades.

Contamos, portanto, com quatro escalas X, T, P, E para classificar todos os sistemas físicos. Estas quatro esca­las são claramente suficientes, mas, de certa forma, re­dundantes, porque, como veremos, somente com duas escalas, deduzidas das anteriores, obtemos uma classificação completa que põe em evidência as di­ferenças essenciais entre os sistemas físicos. Estas es­calas são a velocidade e a ação. A primeira é cinemática e a segunda dinâmica.

Um sistema físico com uma extensão X, e cujas transfor­mações se fazem em um tempo T estará caracterizado por uma velocidade V ≈ X / T. Esta escala de velocidade se obtém também combinando o impulso e a energia V ≈ E / P. Um sistema físico com energia E que evolui em um tempo típico T estará caracterizado por um valor de ação A ≈ ET, que também se pode obter conside­rando sua extensão X e seu impulso P : A ≈ XP. As relações entre as quatro escalas iniciais (X, T, P, E) e as duas últimas propostas se põem em evidência na Figura 1.

X ———— T                       V ≈ X / T ≈ E / P  (Cinemática)
│            │     
P ———— E                         A ≈ E . T ≈ X . P  (Dinâmica)

FIGURA 1. Escala para classificar os sistemas físicos.

Se classificamos todos os sistemas físicos conhecidos de acordo com as escalas de velocidade e ação, nos en­frentamos com duas leis fundamentais da natureza às quais não se lhes conhece nenhuma exceção.

Primeira Lei:
Em nenhum sistema físico a matéria ou a energia se move com velocidade superior ao valor limite
c ≈ 3.108 metros por segundo (velocidade da luz).
Portanto:              V ≤ c

Segunda Lei:
Na evolução de nenhum sistema físico a ação toma um valor inferior ao valor limite
ћ ≈ 10-34 joules por se­gundo (constante de Planck).
Portanto:              A ≥ ћ

Estas duas leis impõem uma restrição aos possíveis valores de velocidade e ação que podem realizar-se na natureza. Contudo, os limites impostos foram descobertos no século XX devido a que:

1) a ve­locidade da luz é um valor relativamente grande com­parado com as velocidades que usualmente percebemos, e
2) a constante de Planck é muito pequena comparada com a ação dos sistemas acessíveis à nossa percep­ção sensorial.

As implicações destas duas leis são enormes: a primeira foi o ponto de partida da teoria da relatividade de Einstein, e a segunda é conseqüência da mecânica quântica.
Para classificar todos os sistemas físicos segundo suas esca­las de velocidade e ação é conveniente construir um dia­grama com dois eixos perpendiculares. No eixo vertical assinalamos os valores da velocidade característica dos sistemas a classificar e no eixo horizontal os correspon­dentes ao inverso da ação: I = 1 / A, que podemos denominar "inação". Registramos o inverso da ação e não a ação porque a segunda lei, ao estabelecer um li­mite inferior para esta, fixa um limite superior para aquela.

                  

Na Figura 2 se pode ver esta construção, que designamos com o nome de "diagrama V – I" (velocidade-­inação). Neste, cada sistema físico estará representa­do por um ponto ou uma pequena região e as duas leis fundamentais implicam que os mesmos se posicionarão den­tro de um retângulo limitado pelos eixos e pelos valo­res:
"c" e "1 / ћ"

É um sonho dos físicos (ou um prejuízo) que em época próxima se desenvolva uma teoria completa, no sentido de que contenha em seu formalismo uma representação para todos os elementos relevantes da realidade física, e concluída, no sentido de que todos os aspectos de seu formalismo tenham uma interpretação clara e sem ambi­güidades, e que seja aplicável a todos os sistemas físicos posicionados dentro do retângulo do diagrama V-I, po­dendo predizer comportamentos que se corroborem ex­perimentalmente. Para completar o sonho podemos pedir, além disso, que esta teoria seja de grande beleza, sim­ples e de fácil divulgação.

Tal sonho não se realizou ainda, mas existem boas aproximações à teoria desejada que são aplicáveis em certas regiões parciais do diagrama V-I. Para apresentar estas teorias consideremos o retângulo do diagrama dividido em quatro regiões que correspondem à velocidades muito menores que "c" ou próximas a eIa, e a ações muito maiores ou próximas a "ћ". Os limites entre estas quatro regiões são difusos. Para a análise e estudo dos sistemas físicos que se posicionam na região inferior esquerda do diagrama V-I, ou seja, para aqueles caracterizados por velocidades muito menores que a velocidade da luz e por uma ação muito maior que ћ dispomos de uma teoria, a mecânica clássica (MC), que nasceu com Galileu e Newton no século XVII e se foi aper­feiçoando até adquirir um formalismo de grande beleza e potência no século XIX.

Esta teoria conta, além disso, com uma interpretação clara e sem ambigüidades e, no século XIX, ninguém supunha que fracassaria rotundamente quando fosse aplicada a sistemas físicos posicionados fora da região marcada por MC no diagrama. Pensava-se que se havia encontrado a teoria definitiva da física, sem suspeitar que o século XX traria duas revoluções científicas que fariam estremecer sua hegemonia.

A mecâ­nica clássica explicava desde o movimento dos plane­tas até o comportamento dos objetos menores acessíveis a nossos sentidos. Com êxito se estendeu a sistemas de muitas partículas na mecânica estatísti­ca, termodinâmica e mecânica de sistemas contínuos como os gases, fluidos e sólidos. Pensava-se que não havia mais que refinar os métodos de cálculo para explicar o comportamento de todos os sistemas físicos. Era uma época de grande soberba. Dizia-se que conhecendo a posição e velocidade de todas as partículas do universo po­deríamos calcular sua posição até o final dos tempos. Somente alguns pequenos problemas opunham resistência: não se podia explicar a distribuição de freqüência (cor) da luz emitida pelos corpos quando se esquentam e tampouco se podia detectar o incremento na velo­cidade da luz quando a fonte que a emite se move. A solução a estes "pequenos" problemas geraria duas grandes revoluções paradigmáticas: por um lado, a mecânica quântica e, por outro, a teoria da relatividade.

Os sistemas físicos representados na região marca­da por MCR, ou seja, aqueles de grande ação (inação pequena), mas velocidades que se aproximam à da luz, devem ser estudados com a teoria da relatividade que denomino aqui mecânica clássica relativista (MCR). Os que estão caracterizados por ação próxima a ћ e ve­locidades pequenas serão tratados com a mecânica quân­tica (MQ), que é a teoria que nos ocupa nesta seqüência de artigos de Coluna da RedePsi. Finalmente, para os sistemas físicos que requerem um tratamento quântico e relativista, dispomos da me­cânica quântica relativista (MQR) para seu estudo.

Considerando o formalismo e a interpretação destas quatro teorias, encontramos diferenças significativas. As duas teorias "clássicas", MC e MCR, podem ser consideradas completas e concluídas por ter um formalismo que abar­ca todas as propriedades do sistema físico e porque todos os elementos daquele possuem uma interpretação clara e sem ambigüidades. Além disso, ambas as teorias se conectam em forma contínua entre si, porque tanto seus formalis­mos como suas interpretações coincidem no limite de considerar à velocidade da luz "c" tão grande, compa­rada com as velocidades do sistema físico, que possa ser tornada infinita.

Isto significa que se em qualquer fórmu­la da MCR tomamos o limite c→∞, obtém-se uma fór­mula válida em MC e, do mesmo modo, todos os concei­tos de massa, velocidade, aceleração, força, energia etc., coincidem neste limite. Com respeito ao grau de vali­dez de ambas as teorias se deve esclarecer que, se bem que a MC não se pode aplicar na região MCR do diagrama, a MCR sim se pode aplicar na região MC com resultados corretos. Pode-se calcular o lento movimento do pêndulo de um relógio com a MCR, ainda que com a MC chega-se mais facilmente a resultados suficientemente precisos para to­dos os fins práticos. O mesmo sucede com os graus de aplicação da MQ e da MC. A MQ é válida na região da MC, mas não o inverso, e torna-se bastante estranho, ainda que correto, calcular o pêndulo do relógio com a MQ. Contrariamente ao que sucede entre a MCR e a MC, não existe entre MC e MQ uma transição suave para seus formalismos nem para suas interpretações. A MQ conta com um belíssimo formalismo, mas este não se transforma no formalismo da MC quando fazemos o limite ћ → 0. É certo, contudo, que as predições experimen­tais da MQ se conectam com as correspondentes da MC neste limite. Temos mencionado várias vezes que a MQ não tem ainda uma interpretação definitiva, pelo que nem sempre está clara a relação entre o significa­do dos elementos do formalismo da MQ com os con­ceitos da MC. A MQR é, em princípio, aplicável a todos os sistemas físicos do diagrama V-I. Contudo, esta teoria dista muito de ser a teoria sonhada pelos físicos, já que seus problemas de interpretação são, todavia, mais graves que os da MQ e, apesar dos formidáveis avanços feitos nas três últimas décadas, seu formalismo tem ainda sérias dificuldades matemáticas não resolvidas.

Finalizo a apresentação das diferentes teorias fí­sicas mencionando o posicionamento no diagrama V-I do eletromagnetismo.

Esta teoria estuda os campos elé­tricos, magnéticos e as ondas eletromagnéticas. Contudo, pode considerar-se que o sistema físico de estu­do que lhe corresponde é o fóton, partícula de massa zero que se move à velocidade da luz, o que coloca esta teoria na linha superior do diagrama V-I. Ainda que se ignore sua origem, o eletromagnetismo acabou sendo uma teoria relativista. Tampouco mencionamos a teoria da relatividade geral, necessária quando o sistema físico em questão possui campos gravitacionais tão intensos que modificam a geometria euclidiana introdu­zindo uma "curvatura" local. A rigor, para introduzir esta nova teoria necessitaríamos uma nova dimensão no diagrama.

O diagrama V-I nos permitiu classificar os sistemas físicos e, em particular, definir a MQ fixando seu grau de aplicação. Ajuda-nos, além disso, apresentar um argumen­to de importância para poder estudar a MQ. Notemos que no diagrama se posicionou uma figura humana na região MC. Isto significa que todos os sistemas físicos com os que o ser humano inter-atua, que são aqueles que vão formar nossa intuição, são sistemas clássicos. De fato, nossa expectativa, o que intuitivamente espera­mos do comportamento dos sistemas físicos, se formou, ou foi gerado, a partir do contato que temos através de nossa percepção sensorial com sistemas físicos clássicos. Mas sabemos que existem sistemas físicos nos quais a teoria clássica fracassa rotundamente; portan­to, não devemos nos assombrar demasiado que a própria intui­ção também fracasse quando pretendemos aplicá-la em tais casos. Devemos estar preparados a tolerar que o estudo dos sistemas quânticos ou relativistas exija a aceitação de certos conceitos que podem ser al­tamente contrários à nossa intuição. Por exemplo, o contato com os sistemas clássicos nos acostumou a somar as velocidades como se fossem números: se lançamos uma pedra a 20 km/h de um veículo que se move a 10 km/h, a velocidade da pedra relativa ao solo será 20 + 10 = 30 km/h. Mas se o veículo se mo­ve à metade da velocidade da luz (0,5c) e a pedra é um fóton que viaja à velocidade da luz, nossa intuição se equivocará ao predizer c + 0,5c = 1,5c violando a lei fundamental V ≤ c. A intuição clássica nos diz que as fitas e relógios que usamos para medir distân­cias e tempos são invariantes absolutos para todos os observadores. Contudo, a relatividade viola nossa intuição clássica ao propor que ao longo das fitas e o período dos relógios variam segundo a velocidade que estes tenham. Esta contração das distâncias e dilatação do tempo tem sido confirmada, sem lugar a dúvidas, em nu­merosos experimentos. Outro exemplo: o contato com sistemas clássicos nos acostumou a que uma pedra está em um lugar ou não está ali; na mecânica quântica a um elétron se lhe assinala uma probabilidade de estar em certo lugar que, em algumas ocasiões, não é nem zero (não está), nem um (está), ou algum valor intermediário.

A intuição é clássica por haver sido gerada em con­tato com sistemas físicos clássicos. O estudo de sistemas relativistas ou quânticos requer adotar alguns concei­tos contrários à intuição.

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