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Sentimentos vitais (ou cenestesia)

Os sentimentos vitais, para Max Scheler, se distinguem dos sensoriais, em primeiro lugar, porque não estão localizados.  Como tipos fundamentais de sentimentos vitais, temos, por exemplo, o frescor vital, a depressão vital, as sensações de angústia, de repugnância, de fadiga, etc. Do ponto de vista médico têm uma importância extraordinária, porque a anamnese da maioria das enfermidades está estruturada sobre a presença de sentimentos sensoriais e de sentimentos vitais.

Para saber o que tem um enfermo apresenta, temos dois caminhos: um que é o da exploração objetiva, os dados que nos dão nossos meios habituais de exploração; outro, que é o relato que faz o enfermo de seu mal. Em muitos casos, tem mais importância o relato que faz o enfermo sobre sua enfermidade que os próprios achados de exploração objetiva. Assim, a grande maioria dos dados que integram uma anamnese clínica está baseada sobre a descrição dos próprios sentimentos sensoriais e dos sentimentos vitais.

Caso se trate de uma doença infecciosa banal, encontra-se sempre o fato de que ela começa com uma sensação de mal estar. Em outras doenças, o indivíduo relata que tem uma dor localizada ou que se irradia, uma sensação de náusea, ou vertiginosa ou de angústia. A interpretação correta de toda esta melodia nos conduz ao diagnóstico, muitas vezes com uma segurança surpreendente, e nos leva à compreensão do que é a enfermidade naquele indivíduo com grande precisão. Os sentimentos sensoriais nos dizem de processos via de regra locais; em troca, os sentimentos vitais nos dão conta de como está a totalidade do ser.

O começo de quase todas as doenças somáticas traz sempre uma perturbação dos sentimentos vitais, a genérica "sensação de mal estar", isto é, não "estar" bem. É um desvio do estar, portanto, um sentimento, posto que os sentimentos são estados do ego. Da mesma maneira que aparece a sensação de mal estar, pode aparecer a sensação de frescor vital no indivíduo sadio e perceber certa euforia. Em troca, quem está doente sente algo que lhe põe abaixo, que lhe deprime, que lhe pesa. Do mesmo modo, em determinados momentos da doença podem aparecer crises angustiosas. Essas variações sentimentais podem existir, não somente como começo das doenças, senão como reações sentimentais ao fato de estar enfermo.

Os sentimentos vitais estão intimamente enlaçados com os sentimentos sensoriais, até o ponto que assim como estabelecemos um grupo intermediário entre o que são puras percepções, e o que começa a entrar na descrição dos sentimentos, também poderíamos estabelecer um grupo intermediário entre os sentimentos sensoriais e os sentimentos vitais; por exemplo, na fome e na sede. Ao falarmos em fome e sede como instintos, do plano vivencial, se podem distinguir dois componentes: um local e outro geral. O componente geral faz referência à presença de um sentimento vital.

Para Leibniz, em nosso espírito se opera uma soma de todas as percepções individuais que emanam de nossa corporalidade, isto é, de como funcionam nossos vasos, de como se move nossos músculos, etc; cada setor enviaria uma percepção, e esta se integraria em um conjunto sobre o qual chama a atenção. A este conjunto se chama de cenestesia, e o problema fundamental consiste em saber se essa sensibilidade geral interna, realmente corresponde a uma agregação de uma série de percepções isoladas e elementares emanando de todos os distritos de nossa corporalidade ou se é uma percepção primária, uma espécie de sensação global.

Essa concepção é paralela àquela que estabelece que o pensamento cursa por associações e que toda a vida psíquica brota de um conglomerado ou de uma associação de elementos, e inclusive na própria psicologia escolástica se fala do sentido comum como de um lugar na vida psíquica no qual aparecessem somadas e conglomeradas todas as experiências sensoriais:  a experiência visual, a olfativa, etc. Um objeto, uma coisa, está diante de nós; por exemplo, um cão; nós recebemos o odor que dele emana, vemos seus movimentos, ouvimos seus latidos, etc.; temos, portanto, percepções visuais, auditivas, e formamos a imagem do cão por uma somatória dessas percepções, a que se chama de sensório comum.

Contudo, Scheler pensa que não é assim, haveria uma espécie de percepção imediata de como as encontramos; vale dizer, saber o estado de nosso corpo não deriva da soma de todas as percepções, mas é uma percepção global e imediata independente das outras. Realmente, assim deve ser, posto que cabe a nós termos sensações vitais de um sinal diferente dos sentimentos sensoriais correspondentes; por exemplo, cabe a um indivíduo que se encontre em um estado de frescor vital, apesar de ter uma dor. Se realmente o sentimento vital fosse uma soma dos outros, enquanto tivéssemos sentimentos sensoriais de sinal negativo, como, a dor, a fome ou a sede, não poderíamos ter um sentimento vital positivo resultante da soma de todos estes sentimentos sensoriais negativos. Em um grau patológico isso nos demonstra de uma maneira muito clara os estados maníacos. No maníaco há uma exaltação de sua vitalidade, e nesta exaltação pode ter qualquer sofrimento corporal, e, contudo, não é afetada a sua exaltação vital. Assim, isso, que vemos em relação caricaturesca, exagerada em estado patológico pode ocorrer também em estado normal, o que demonstra, a independência que existe fosçosamente entre os sentimentos sensoriais, que são sempre sentimentos circunscritos, sinais de estados orgânicos, no sentido de órgão como parte limitada do corpo, e os sentimentos vitais, que nos dão uma informação imediata e unitária de nosso estado como totalidade.

Os sentimentos vitais nos dão além de informações de nossa corporeidade, de nosso estado corporal como tal, senão, até certo ponto, de nossa relação vital com o mundo. Por existirem os sentimentos vitais é que podemos perceber uma paisagem como alegre ou triste; podemos perceber o frescor da manhã, podemos perceber a sensação especial que produz o som do bosque; podemos perceber um espaço como especialmente agradável ou desagradável, cômodo ou incômodo; isto é, os sentimentos vitais se acham em correlação com o que é espaço vital, no sentido psicológico; vale dizer, como uma maneira especial de perceber o que nos rodeia, que não é a percepção gnóstica, a percepção puramente intelectual, senão que é uma espécie de simpatia com o mundo entorno.

A presença dos sentimentos vitais é também o que nos permite criar as relações de simpatia ou hostilidade com os outros. Assim se constitui essa camada de vitalidade que tem um interesse primordial do ponto de vista psiquiátrico. Os sentimentos vitais podem alterar-se de uma maneira autônoma aparecendo estados de tristeza, de angústia, etc., que não dependem em nada do que ocorre ao nosso redor, senão de uma alteração anômala desta vitalidade.

Os sentimentos sensoriais têm certo caráter cadavérico. Servem como sinais de estados e processos de determinados órgãos e tecidos. Em troca, os sentimentos vitais nos permitem sentir nossa vida mesma, em seu incremento e decréscimo, na doença e na saúde. Por meio dos sentimentos vitais percebemos os valores do mundo circundante, o frescor do bosque, a opressão do trópico, etc.; para eles existe uma verdadeira lembrança sentimental, coisa que não existe para os sentimentos sensoriais.

Eu não posso viver novamente uma dor física sofrida, mas lembrar-me de como era; em troca, posso viver de novo um estado de cansaço. Os sentimentos sensoriais são, pois, pontuais; existem como sinais recortados no tempo, sem continuidade possível. Os sentimentos vitais possuem a nota da duração e, além disso, certo caráter intencional. Eu não posso saber como é a dor de um pássaro, mas sim participar de sua sensação. Por isso os sentimentos vitais nos servem como indicadores de valores vitais. Sinalizam-nos os perigos e os ventos favoráveis através dos quais circula nossa vida, e não por experiência adquirida, mas de um modo primário, pré-sentido. Eis aqui a série dos pré-sentimentos nos quais somos advertidos de algo – perigo ou sorte – de um modo antecipado. É um erro crer que acompanham o estado de perigo; isso é o que ocorre nos sentimentos sensoriais, por exemplo, na dor. Em troca, os vitais os anunciam; são, pois, sentimentos plenos de futuração que nos põem, à distância, em contato com os acontecimentos temporais e as desordens espaciais. Por exemplo, é o que ocorre com a angústia, o medo, a vergonha, o apetite, a aversão, a simpatia e antipatia vitais, a vertigem, etc.

A autonomia dos sentimentos vitais se acha intimamente enlaçada com a autonomia da vida. Em fisiologia clássica se distinguia entre excitabilidade e irritabilidade. A característica da irritabilidade se baseia na autonomia da resposta. Na excitabilidade existe certa correlação entre o estímulo e a resposta. Na irritabilidade há algo mais; o ser que responde, agrega, energeticamente, algo, que procede de seu próprio mundo interior, com o qual demonstra sua capacidade de autodeterminação. A irritabilidade não é um quantum constante de ação, mas variável; é mais, se acha submetida a ritmos biológicos gerais e a outros específicos do ser vivo afetado.

Um processo análogo acontece nos sentimentos vitais. Precisamente seu caráter vital se mostra em sua autonomia e espontaneidade. A tristeza vital emerge do próprio doente, sem achar-se motivada por nenhum acontecimento exterior. A outra forma de tristeza sim depende da informação triste. O mesmo ocorre em relação à corporeidade: o cansaço físico depende do esforço; o cansaço vital depende do estado do ser, sem que haja mediado esforço anterior nem outra causa produtora de fadiga. O doente desta classe se levanta já fatigado pela manhã, após o repouso noturno.

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