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“Olha, Será que é uma estrela? Será que é mentira? Será que é comédia? Será que é divina ”(1)

O céu fechou-se em pesadas nuvens em plena tarde de sábado, anoitecendo a luminosidade clara do dia ainda em marcha. A cidade pareceu momentaneamente tragada pela escuridão e nela desabou uma chuva abundante e farta, lavando calçadas, pessoas, cachorros de rua e tudo mais que encontrou pela frente.
De sua janela Antonio observava a chegada da água que caía do céu, diga-se de passagem, com freqüência de cidade tropical, comum nesse clima. Sentou-se em sua poltrona e ficou apreciando o espetáculo que aquilo tudo fornecia, sem pensamentos e com sua alma suspensa. Por alguns momentos, depois de dias, sentia alguma paz. Sabia que aquele estado não demoraria, musculatura do corpo dolorida ainda por toda tensão que se jogara nela, ombros que pareciam feitos de pedra, duros, mas de uma pedra porosa que se partiria ao contato mais forte de qualquer coisa. Corpo dolorido e cabeça pesada, e a única coisa boa era que não mais sentia angústia, essa havia passado, dando lugar a uma sensação de esvaziamento, de ausência de sentido. Vontade zero de movimentar-se, até mesmo para estender a mão em direção ao que necessitasse, tudo era vazio, destituído de sentido e volição. Há quantos dias se encontrava naquele estado? Não tinha mais uma exata noção: luzes ligadas, tv, pc, contrastando com o desligamento que sentia em seu interior, vontade de ausentar-se de si mesmo, despir-se de sua própria pele, ou mudar-se para outro corpo como se muda de casa.

A tarde ficou pesada, fornecendo uma paisagem de sufocamento, de expulsão. Antonio levantou-se da cadeira, andou até ao chuveiro e deixou maquinalmene que a água morna caísse sobre seu corpo anestesiado pela dor. Saiu, sem prestar muita atenção em seus movimentos, sem lembrança e sem direção, dessa maneira vestiu-se sem preocupação e com a chave de casa e do carro caminhou em direção a porta. Entrou em seu auto, deu partida e sem que se desse conta novamente, viu-se dirigindo pela rua, meio ausente de gente que se escondia paralisada por debaixo das marquises, acuadas pela tempestade que traduzia o sentimento da natureza da cidade. O transito parado não o irritou, sequer se dava conta do que se passava ali, passou um outro carro com uma música tão alta que não pôde deixar de ouvir, um sambinha torpe elogiando as formas de alguma mulher redonda, alegre, desejável. Antonio queria rir, mas algo o impedia e ao invés disso lágrimas grossas escorriam-lhe pelo rosto, total incontinência frente aos seus sinais corporais, chovia na cidade e chovia em sua visão, combinando sem contrastes a paralisação de ambos, cidade e olhos. Por momentos pensou em como tudo é absolutamente destituído de sentido e no como os humanos se entregam à sentimentos e vínculos como se fossem caixa de lápis de colorir, e acabam sobrando sempre os mesmos: cinza, preto e marrom. Foi invadido por uma enorme irritação, vontade incontrolável de brigar, discutir, arrumar confusão, olhou com ódio para o motorista ao lado, que protegido por seus vidros escurecidos não percebeu ser o objeto da hostilidade dirigida a ele. Antonio, o homem sem destino, uma vida sem rumo, um corpo sem habitação. Assim sentia-se, bélico e sem ânimo, vontades contrastantes em uma emoção confusionada. Vagou por tempo indeterminado, até avistar um lugar cheio de gente, barulho, música, muitos carros e confusão. Já não chovia, embora seu pára-brisas continuasse ligado. Um carro saiu de uma vaga e, mecanicamente, destituído de intenções, estacionou e saltou. Gente jovem e barulhenta o esbarravam a todo momento, pensou em como era estranho sentir o toque, mesmo que rapidamente, de outra pele humana, parecia que fazia séculos desde seu último contato. Caminhava como um autômato entre aquela multidão igual, não olhava seus rostos e sentia cheiro misturado de suor, perfume, alcóol, cheiro de gente que o deixava meio nauseado. Entrou no bar e pediu uma cerveja, bebeu e não sentiu o gosto, acendeu um cigarro e ficou ali parado, esperando que algo de vida corresse em suas veias, que alguém o visse, provando que não era um fantasma pensando estar vivo entre os vivos.

Lembrou-se que já tinha sido daquele jeito como aquela gente toda, e que não se lembrava mais da última vez que sentira qualquer outra coisa que não fosse indiferença, ou no máximo dor. Olhou e olhou, e não viu sentido em continuar ali. Bebeu mais um pouco, por pura obrigação, e caminhou pela calçada olhando para o chão, com aquela luz que iluminava sem no entanto clarear coisa alguma.

Ouviu chamarem seu nome e apressou o passo na esperança de não ser alcançado.

– Antonio, Antonio…Quanto tempo, cara! Por onde anda? Não soube mais de vc, o pessoal está aqui. Não quer ir até lá?

Antonio volta o olhar e reconhece Mauro, fotógrafo e grande parceiro de outras épocas. Espreme-se por dentro e consegue um esboço de sorriso e cumprimento, abraça o amigo querendo soltar-se e sair dali o mais breve possível.

Quando vê já está sendo arrastado animadamente por seu amigo, em direção a rostos que lembra vagamente de já ter visto, tudo é impreciso e irreal, e a náusea insiste em fazer presença. Cumprimenta a todos sem grande entusiasmo, logo está com um copo de cerveja na mão, inserido em grupo sem ao menos pensar em si como humano. Outro amigo visivelmente embriagado fala animadamente sobre o time que ganhou o campeonato, escuta para fingir-se ocupado, antes que outro lhe exija reciprocidade na conversação. Não se dá conta de coisa alguma e quando vê está já em uma pista de dança e uma menina com olhos Barbie se convulsiona em sua frente, em um ritual que parecem todos compartilhar, fecha os olhos com receio de ser tragado por tudo aquilo, enquanto a música em ritmo cardíaco faz com que seu corpo se mexa sem que se dê conta de estar ou não com vontade disso. Abre por instantes os olhos e paralisa.

Lá está ela, sorrindo e dançando alheia a tudo que está a sua volta, faz-se um enorme silêncio dentro da cabeça de Antonio, enquanto seus olhos aprisionados não conseguem se afastar daquela visão. A náusea aumenta terrivelmente e tudo parece girar, um grito parece querer soltar-se à revelia, aumenta o ritmo do corpo a tempo de justificá-lo pela dança frenética. Olhos Barbie, o olham, e com uma voz em tom metálico, diz:
– Irado!
Sorri, enquanto se sente tragado por uma boca com gosto de morango que o suga até suas entranhas. Afasta-se tonto daquele turbilhão de música, luzes, corpos e bocas e cai exausto em um pequeno sofá, em um espremido lugar desocupado, sente o suor escorrendo pela testa e fecha por um instante os olhos.

Sente, então, uma mão delicada e fria em seu braço e antes de abrir seus olhos, já escuta aquela voz tão conhecida:

– Antonio, Antonio! Vc era a última pessoa que esperava encontrar por aqui.

Abre os olhos de supetão e lá está ela, parada a sua frente, olhando-o bem, com aquele seu olhar, sempre presente e meio ausente ao mesmo tempo. Como se algo de etéreo separasse o mundo real do mundo que se reflete em seus olhos. Antonio gostaria de poder mergulhar novamente naquela irrealidade, naquela vertigem que o submeteu por tanto tempo, tragando todos os seus sentidos e retirando-o da insuportável realidade pela qual vaga ultimamente.

Tudo que pôde dizer, foi:

-Oi!

Os olhos dela não se despregavam do seu, como era comum acontecer, sentia como se um fio elétrico unisse seus olhares a partir do momento em que se encontravam, alguém poderia até morrer eletrocutado se passasse ali, no meio desse caminho de olhares enquanto se cruzavam. Antes que tivesse sua alma tragada novamente, retirou com grande esforço seu olhar do dela, sentindo-se novamente um ser sem essência. Lembrou-se imediatamente de seu psicanalista, algumas poucas palavras fariam sentido nessa hora, mas sua cabeça pesava como chumbo e o corpo levitava como uma pena. Não fez nenhum sinal de rejeição quando ela pediu para sentar-se um pouco ao seu lado, afastando com delicadeza seu pesado corpo e tocando-a para ajudá-la a sentar-se. Entendeu a agonia de um mudo com a sua impossibilidade de comunicar-se. Nesse momento a cegueira, talvez, fosse uma dádiva, pensou.

Ouviu o que ela tinha a dizer com olhar fixo no movimento de sua boca, prestando atenção aos movimentos de seu rosto, sobre os quais já tinha gasto tanto tempo tentando entender a intenção oculta, aquilo que se esconde e foge pelas palavras. Sentia que se não desviasse o olhar seria novamente tragado por tudo aquilo que já conhecia bem, que o deixaria novamente obsessivamente ligado aquela mulher, de aparência tão amorosa, mas de onde se revelava sair tudo que de mais enlouquecido poderia haver para um ser dentro da relação com o outro. Tinha sido uma sucessão de ilusórias armadilhas, pequenas mentiras que se faziam presentes no cotidiano até atingir o status de grandes. Não tinha como esquecer da febre que tinha se abatido sobre ele, o pensar constante naquele outro ser, acordar e dormir, respirar, ligado no que estaria se passando com aquela outra alma, tão sua que parecia amalgamada e alojada em seu próprio corpo. Hora tendo nela a coisa mais linda que poderia acontecer-lhe, outra hora tragado pelas mais cruéis dúvidas sobre suas verdadeiras intenções.

Mas, agora ali na sua frente, aquele sorriso aparentemente desarmado, aquele olhar tão chamativo, tudo o enfeitiçava e o atraía de volta ao inferno, visto nesse momento como a mais calorosa fogueira onde valeria a combustão, onde sentiria-se novamente vivo, sensações de prazer e dor, acolhimento e rejeição, amor e ódio…Quando pôde perceber o que fazia, já estava quase no momento do buscado gozo, há apenas alguns instantes antes, olhando profundamente para aqueles olhos, achado e perdido, desarmado.

Acordou, telefonou para seu analista, marcou hora e foi…

"Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética utilitária. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedonista, do puro prazer”. (Leonardo Boff)

(1) Música: “Beatriz” – Chico Buarque e Edu Lobo

Nota: Personagem levemente inspirada no Ricardo Somocurcio do livro “Aventuras de uma menina má” de Mario Vargas Llosa

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