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O Verdadeiro Crime do Dr. Jung por Davy Bogomoletz – parte I

Nota: Ao ler meu artigo O retrato de um Nazista, Davy enviou-me este seu trabalho, que eu resolvi publicar – em duas partes.
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Dedicado que estou, desde o princípio de minha vida profissional, ao estudo da psicanálise de Freud, e posteriormente da de Winnicott, confesso a impossibilidade de tecer comentários mais sérios a respeito desse fértil autor psicanalítico que foi Jung. A contribuição junguiana é imensa, complexíssima, e somente aqueles realmente dedicados a estudá-la encontram-se em condições de, seriamente, discutir os pontos de vista de seu autor. Cumpre, aqui, mais a tarefa de analisar os dois artigos acima citados, e para esta limitada meta voltarei meu esforço.
                 Sobre "Wotan" e "Depois da Catástrofe", de C.G.Jung*

                                                                           Davy L. Bogomoletz

Antes de mais, porém, devo declarar que a controvérsia a respeito das posturas anti-semitas de Jung não é, para mim, um assunto fácil. Muitas são as alegações, afirmações, testemunhos e depoimentos de ambos os lados da questão. Já sabemos da celêuma levantada pelo "caso Heidegger". Diversos textos de qualidade profissional imputam ao pensador alemão a acusação de haver colaborado ativamente com o movimento nazista. Não seria necessário citá-los aqui. Aparentemente, é aceita a tese de que Heidegger adotou posturas nazistas ativas (ingresso no partido, manutenção de um posto acadêmico oficial durante o Estado Nazista, etc.).

Que, posteriormente, lhe tenha surgido a necessidade de desvincular-se do Nazismo, seria prova mais de sua inteligência e instinto de auto-preservação, que de reais convicções contrárias àquele regime. No entanto, não é Heidegger que nos interessa aqui, e o trazemos apenas pela notoriedade de seu "caso" e pela importância intelectual do homem em questão.

Jung, aparentemente, sai-se bem das acusações e suspeitas. Há o fato, a seu favor, de seus inúmeros discípulos e colabores judeus. A mais importante pessoa nessa condição era, sem dúvida, a célebre Aniela Jaffé, uma das pessoas mais próximas a ele, co-autora de sua importante obra auto-biográfica "Memórias, Sonhos, Reflexões". Tenho em meu poder, quase casualmente, a versão israelense desse livro, traduzida para o hebraico e lançada em Israel muito recentemente por Mikha Ankori, psicanalista israelense de orientação junguiana, e autor de dois outros livros que atestam sua "filiação" profissional: "Obscuras Alamedas no Arvoredo Sem Fim", um estudo junguiano da Cabalá, e "O Coração e a Fonte", uma reflexão junguiana sobre o Movimento Chassídico. (A tradução dos títulos é minha)

Em conversa pessoal com esse autor, e perguntado por mim a respeito das inúmeras acusações a Jung por seu possível anti-semitismo, garantiu-me ele que de fato houve muitos mal entendidos, frutos amargos da guerra entre Jung e os seguidores de Freud, mas que nada de realmente positivo foi encontrado para substanciar quaisquer suspeitas. Houvesse Jung sido realmente anti-semita, ou simpatizante do Nazismo, e a escola junguiana de psicanálise não teria, em Israel, a representatividade que tem. De fato, existe tal escola em Israel, com inúmeros filiados (não disponho de dados precisos, mas é certo que se contam às dezenas) e as alegações sobre o possível anti-semitismo de Jung, ali, não convencem nem incomodam ninguém.

Na apresentação da versão israelense, diz Ankori (tradução minha):

"No início de sua carreira, Jung inclinou-se em direção à Ciência. No entanto, sua interesse em desvendar os recônditos da alma humana, especialmente a sua própria, levou-o à conclusão de que o método científico clássico não seria suficiente. Na mesma época, ocorreu a profunda ruptura entre ele e Freud. Do ponto de vista de Jung, o apego de Freud à teoria sexual, e ao modelo estrutural da psique parecia excessivamente limitador.

"Ele havia encontrado uma ligação muito estreita entre os conteúdos dos sonhos e os mitos nas diversas culturas antigas, e concluiu que sem o conhecimento dessa herança cultural, encerrada nas profundezas do inconsciente individual, não seria possível compreender o seu mundo interno, com suas várias camadas superpostas. Lado a lado com os conteúdos obscuros e destrutivos do inconsciente, descobriu Jung a força curativa da alma, e as tendências ao desenvolvimento e à integração nela encerradas.

"As descobertas de Jung não se nos apresentam na forma de uma teoria. Seu pensamento surge mais como uma doutrina, como uma sabedoria de vida, do que como um modelo científico. Por este motivo, por muitos anos sua contribuição foi rejeitada pelo establishment  psicológico – especialmente o acadêmico.

"Nos últimos anos, porém, à medida em que a ilusão sobre a capacidade da ciência de resolver todos os problemas e compreender todos os processos se foi esvaindo, vem ocorrendo um interesse cada vez maior pela doutrina de Jung, tanto em círculos acadêmicos quanto entre o público mais amplo. Sua contribuição tem sido reconhecida em muitos campos: Na compreensão dos fenômenos espirituais, na análise de textos religiosos e místicos, na percepção de obras de arte, nas pesquisas sobre as religiões, sobre o folclore, etc." (1)

É conhecida a sensibilidade do público israelense a qualquer tentativa de reabilitar notórios anti-semitas, nazistas e simpatizantes. Assim, por exemplo, até hoje ocorrem verdadeiras comoções públicas toda vez que algum maestro pretende incluir, no repertório de uma orquestra, obras de Richard Wagner. O escândalo, as manifestações de repúdio, os piquetes à frente da sala de concertos são imediatos e incansáveis.

Tomando este fato como "prova", pode-se dizer, com razoável dose de certeza, que Jung não mais é visto atualmente, ao menos em Israel, como portador de algum ódio digno de nota ao povo judeu.

Sua participação na administração da Sociedade Alemã de Psiquiatria, e na edição da "Zentralblatt für Psychoterapie", o órgão oficial da instituição, é  analisada com razoável detalhamento por Renato Bittencourt. (2) O autor discute as acusações movidas contra Jung por, por exemplo, Marthe Robert, escritora de inegável competência, mas excessivamente identificada com a "causa" freudiana. Bittencourt propõe, em sua análise, que a autora, "germanista conceituada, em psicanálise é leiga, ainda que colabore em periódicos especializados. O que ela afirma aqui nos interessa, porque é representativo do ponto de vista freudiano." (Pág. 176).

Sim,  Bittencourt acerta ao dizer que Robert "representa o ponto de vista freudiano", mas erra ao dizê-la "leiga" no que toca à psicanálise. É de autoria desta francesa, "germanista conceituada", no dizer de Bittencourt, e jornalista de profissão, segundo é de meu conhecimento, uma belíssima e comovente série radiofônica, posteriormente publicada em livro, sobre a vida e a obra de Freud. Tive o livro em meu poder há muitos anos, e lembro-me bem de que ele bem mereceria o título "Freud, Herói da Cultura", um reconhecimento recentemente dado a Lacan por outro autor, tamanha a efusividade e a veemência com que Robert retrata a imensa aventura vivida por Freud. Numa brincadeira ainda mais atual, poder-se-ia dizer que Marthe Robert, se pudesse, teria intitulado seu livro de "Indiana Freud em Busca do Inconsciente Perdido"… O livro, à época, impressionou-me muito fortemente, e o menciono tão extensamente por concordar com a alegação de Bittencourt de que essa autora seria uma "torcedora fanática" de Freud, sendo, por isto, seu depoimento sobre Jung passível de suspeição. O seu conhecimento sobre a psicanálise, no entanto, não pode ser legitimamente posto em dúvida.

Outra acusação a Jung, segundo Bittencourt, parte de Franz Alexander e Sheldon Selesnick, os quais, em "História da Psiquiatria", (3) avançam sobre Jung a acusação de que ele "… não era cidadão alemão, e não tinha desculpa para tornar-se líder de uma nova espécie de psiquiatria alemã, e redator-chefe de uma revista que, aberta e oficialmente, apoiava a filosofia nacional socialista. Aceitando a liderança desse novo movimento psiquiátrico, que tinha decidida orientação política, Jung, na verdade, tornou-se líder da psiquiatria na Europa Central." (pág. 176) (Apêndice B – págs. 519-522 – na edição brasileira do original.)

No entanto, prossegue Bittencourt, os dois eminentes autores chegam a um beco sem saída, pois ao tentarem "fechar" o "caso Jung" com conclusões finais, eles explicitamente confessam que "Seus motivos não foram anti-semitismo nem verdadeira convicção a respeito dos princípios do Nacional Socialismo." Diz Bittencourt: "Alexander e Selesnick partiram com uma acusação, mas no caminho ela se desfez, esqueceram-na porque não tinha solidez nem vida própria. Deixemos que eles mesmos destrinchem. Perguntam eles: "E o que o (a Jung) levou a desempenhar  papel proeminente em um novo movimento psicológico racialmente orientado? Como evidentemente não foi preconceito racial nem convicção racista, que foi então? É difícil fugir à resposta de que foi puro oportunismo." (pág. 177)

Bittencourt não cita os motivos que levaram os autores a concluir que "evidentemente" Jung não tinha motivações anti-semíticas ou racistas. Mas ele diz, pouco antes: "Para nossa surpresa, os autores não citam um único texto de adesão de Jung. Mencionam o ensaio "A Situação Atual da Psiquiatria", de 1934, mas se torna logo evidente que o que há de "chocante" nesse texto (…) é a crítica às teorias freudianas, na qual, não se sabe como, eles vêm "a perversão das idéias de Freud pelos nacional-socialistas."  "A psicanálise freudiana foi banida pelos nazistas", lembra Bittencourt, "mas também os livros de Jung entraram na lista negra em 1940". (pág. 177)

Restou, portanto, sobre Jung, a pecha de "oportunismo", que Bittencourt classifica mais como "pecadilho" que como verdadeiro crime. E menciona o próprio Freud que "fez todo o tipo de concessões, entrou em toda a espécie de conchavos para promover a Causa". Outra vez, Bittencourt acerta uma e erra outra. Chamar de "conchavos" e "concessões" as ligações de Freud com Bleuler, Pfister, Stekel, Adler, e com o próprio Jung é algo equivalente ao que ele próprio denuncia, por exemplo na "torcedora fanática" Marthe Robert. Pois Bittencourt, para provar a má fé dos freudianos, nesse ponto assaca contra Freud uma acusação tão injusta e caluniosa quanto, diz ele, os freudianos fazem em relação a Jung. O ponto em que Bittencourt acerta, é quando lembra que, segundo Jones – fonte obviamente insuspeita – o próprio Freud teria enviado a Mussolini, em 1938, um de seus livros com a dedicatória: "De um velho homem que saúda no Líder o Herói da Cultura".

Que Freud, tão tarde quanto 1938, tenha homenageado Mussolini com esse incrível epíteto, realmente nos espanta. Por um lado, cabe brincar com a idéia de que Freud pode ter realmente mandado o livro, mas quem sabe terá sido o "Totem e Tabu", o que tornaria a dedicatória acima mais uma das obras primas freudianas em termos de sarcasmo e concisão. (Vale mencionar, para legitimar a brincadeira, que ao sair de Viena ocupada, da qual foi espantosamente salvo por Mme. Bonaparte, Freud atendeu à exigência do oficial da Gestapo para atestar que não fora molestado, acrescentando a observação: "Recomendo, assim, a Gestapo a todos os que dela vierem a precisar".) Mas também não podemos esquecer o entusiasmo do jovem Freud quanto aos grandes "ideais" do pan-germanismo, onde as figuras do "herói da cultura"  e do "líder" certamente desempenharam um papel de grande relevância. (4) (Freud e o Sionismo).

No entanto, o texto completo das acusações de Alexander e Selesnick é bem menos leniente em relação a Jung. O que Bittencourt não cita, é o conteúdo do texto no qual os autores denunciam Jung por distorcer as idéias freudianas e ajeitá-las ao gosto nacional-socialista. De fato, cabe mencionar o seguinte trecho do Apêndice B (pág. 520): "Comparando a ênfase por ele próprio dada aos aspectos criativos da mente inconsciente com as opiniões hedonísticas (o princípio do prazer) de Freud, acusou Freud e Adler de só verem os lados sombrios da natureza humana. Atribuiu a popularidade do método de tratamento de Freud ao fato de o psicanalista subestimar a personalidade do paciente, 'atingindo o paciente em seu ponto vulnerável e, dessa maneira, obter facilmente superioridade… Existem realmente pessoas decentes que não são impostoras e que não usam ideais e valores para o embelezamento de sua personalidade inferior. Tratar tais pessoas redutivamente e atribuir a elas motivos inconfessáveis, e suspeitar que por trás de sua pureza natural existe sujeira antinatural é não só pecaminosamente estúpido, mas também criminoso.' "

E citam novamente Jung, no parágrafo seguinte: "Os judeus têm esta semelhança comum com as mulheres: sendo fisicamente mais fracos, precisam visar as brechas nas defesas do adversário e, devido a essa técnica que lhes foi imposta através dos séculos, os judeus têm as melhores defesas onde os outros são mais vulneráveis… Devido à sua antiga cultura, são capazes de maneira perfeitamente consciente, mesmo no ambiente mais amistoso e tolerante, de entregar-se a seus próprios vícios, enquanto nós somos jovens demais para não termos "ilusões" a nosso próprio respeito." (Observação geral: Todas as citações constantes deste trabalho, salvo as traduzidas diretamente por mim, reproduzem trechos de textos traduzidos por outras pessoas. Que não me sejam imputados os seus erros. Já me bastam os meus.)

E mais: "O inconsciente ariano tem um potencial mais elevado que o judaico; isto é a vantagem e a desvantagem de uma juvenilidade que ainda está mais próxima do barbarismo. (…) A mente inconsciente do ariano contém tensões e elementos criativos a serem realizados no futuro. É perigoso e não permissível desvalorizar essas forças criativas como romantismo de infância. Em minha opinião, foi um erro da psicologia médica até agora existente aplicar inadvertidamente categorias judaicas – que não são válidas sequer para todos os judeus – aos alemães e aos eslavos cristãos. O mais valioso segredo da personalidade alemã, sua alma intuitiva criativa, foi declarado como um charco banal e infantil. Ao mesmo tempo, minha voz de advertência foi suspeita de anti-semitismo. Esta suspeita originou-se em Freud. Ele conhecia tão pouco a alma alemã quanto seus idólatras alemães. Não terão eles aprendido alguma coisa sobre o poderoso aparecimento do Nacional-Socialismo, para o qual o mundo inteiro olha cheio de espanto? Onde estavam a tensão e o ímpeto sem precedentes quando o Nacional-Socialismo ainda não existia? Estava escondido na alma alemã, em, seu fundo, que pode ser tudo menos uma cesta de lixo para desejos infantis não satisfeitos e ressentimentos familiares não resolvidos. Um movimento que toma conta de toda uma nação deve ter-se tornado predominante em cada pessoa." (pág. 521) (Itálicos meus.)

O trecho de Jung acima citado, extraído por Alexander e Selesnick do artigo também mencionado por Bittencourt, "A situação atual da psicoterapia", de 1934, foi publicado por Jung no "Zentralblatt für Psychoterapie". Bittencourt, porém, limita-se a reproduzir em seu escrito as conclusões dos dois autores, sem citar em momento algum os motivos que os levaram a elas. Já no número anterior da revista, que inaugura sua nova fase sob orientação nazista, Jung havia publicado uma curta nota introdutória, onde entre outras coisas diz: "As bem conhecidas diferenças fatuais entre psicologia germânica e judaica não devem mais ser obscurecidas, o que só pode beneficiar a ciência." Esta frase é citada por Alexander e Selesnick, mas, muito inteligentemente, não por Bittencourt!

Os itálicos acima, acrescentados por mim ao texto de Jung citado por Alexander e Selesnick e, convenientemente, apenas mencionado por Bittencourt, apontam para algo, a meu ver, extremamente revelador. O ano é 1934, poucos meses depois que o povo alemão deposita o poder total nas mãos de Adolf Hitler. Nessa época, as sujas pancadarias das S.A. nas ruelas de Berlim (vide os filmes "Cabaret" e "O Ovo da Serpente") já não ocorrem mais. Não são mais necessárias. Foram substituídas por um aparato muito mais sofisticado, elegante, conveniente: A máquina militar do Estado. Nessa época, o Nacional-Socialismo ainda é uma promessa de reabilitação da humilhada nação alemã. Os momentos de desvario truculento, de bares e homens quebrados, de sangue derramado selvagemente, são substituídos por imensos comícios, cheios de ordem, disciplina e linhas retas (e, naturalmente, por prisões e "desaparecimentos na calada da noite. Não é mais necessário sujar as calçadas…) As mãos erguidas de uma multidão simétrica, perfeitamente alinhadas umas às outras, dão a impressão esmagadora de unidade, de harmonia, de integração de todo um povo a um único ideal. E o ideal está ali, de corpo presente, não é uma ilusão ou uma "idéia": O ideal está postado exatamente no lugar para onde apontam os braços estendidos – um pouco à frente e um pouco acima – bem ali no palanque, na verdade um magnífico altar, onde Adolf Hitler incorpora as aspirações ardentes da massa.

Até aqui, fatos (e fotos) demasiadamente conhecidos. Foi por esta razão que enfatizei com itálicos as aparentemente inócuas afirmações de Jung, no parágrafo ante-penúltimo. É que tais afirmações não escondem precisamente a sua admiração imensa por essa força elementar revelada pelo Nacional-Socialismo em seus primeiros tempos. Nada melhor retrata esse fenômeno histórico que a "Canção da Juventude Alemã", outra vez no filme "Cabaret" (aliás, um inspirado libelo anti-nazista, apesar de sua aparente intenção de contar apenas uma história de amor malfadado). Naquela cena, de uma beleza impressionante, uma lindíssima melodia começa a ser entoada por um jovem em uniforme, em meio a um restaurante de calçada, e a ele juntam-se pouco a pouco os outros fregueses do restaurante, e depois os transeuntes, até que a rua inteira sucumbe ao encanto da melodia e integra-se ao magnífico coral. Descontado o estilo hollywoodiano da encenação, é preciso reconhecer que, se não retrata uma realidade, ao menos a cena é magistral para nos dar uma idéia do poder fascinador que tal ideologia exerceu sobre as massas que a ela estavam expostas.

É no contexto desse fascínio que as palavras de Jung foram postas em itálico. Que Jung não tenha aderido ao Nazismo pode ser um fato. Mas que ele se deixou levar pela erupção de lava incandescente, disso não resta a menor dúvida. A conclusão de Alexander e Selesnick, freneticamente aplaudida por Bittencourt, de que se tratou meramente de "oportunismo", um pecadilho certamente perdoável e universalmente cometido, não procede. Configura-se, por tais palavras do mestre Jung, não necessariamente uma adesão de caráter político, mas certamente uma inclinação, uma simpatia, um entusiasmo indiscutíveis.

A alegação de Bittencourt, em defesa de seu amado Jung, é formulada nos seguintes termos: "Ora, o Nacional-Socialismo era uma "epidemia psíquica", uma violenta e formidável irrupção do inconsciente coletivo na vida de um povo. Um problema, portanto, apaixonante para um especialista do inconsciente, como uma praga de inusitadas proporções o seria para qualquer epidemiologista. Nunca se sabe a priori se o que procede do inconsciente coletivo é um bem ou um mal. Por isso, Jung não condenou, de imediato, o novo movimento alemão. Desconhecemos o que se passou realmente na sua mente. Por algumas passagens ambíguas de seus escritos, poder-se-ia deduzir que ele estivesse de certo modo "fascinado", como alguém é capaz de sentir fascínio diante de uma cobra, de um terremoto, de uma erupção vulcânica." (pág. 175)

Confrontando tais palavras com as proferidas formalmente por Jung, no citado artigo de 1934, a defesa de Bittencourt se revela extremamente inadequada e tendenciosa, de uma benevolência e uma tolerância na verdade encobridoras. Seria muito mais correto dizer, ao menos, que Jung talvez não tenha aplaudido os atos do Nacional-Socialismo, nem tenha aderido aos seus métodos, já naquela época sobejamente conhecidos, e que nem mesmo teria ele aprovado as suas intenções finais. Mas é certo que Jung aprovou a idéia em si mesma, o retrato estático, num aqui e agora artificiais e ingênuos, mas ainda assim possíveis, da apresentação oficial e popular que o Nacional-Socialismo fazia de si mesmo. Nada do que disse Jung o caracteriza como anti-semita, mas à altura de seu artigo (não conheço o mês de sua edição) é possível que as famosas leis de Nurenberg, do mesmo ano, que excluíram os judeus alemães da vida nacional em termos tanto sociais quanto econômicos, instaurando um apartheid ariano como primeiro passo da trágica "Solução Final", já houvessem sido adotadas – e divulgadas – pelo Governo alemão.

Num momento anterior, diz Bittencourt: "Nos (primeiros) anos (da década de) 30, o Nacional-Socialismo não dava necessariamente a mesma impressão que hoje, quando temos o privilégio de uma visão geral de sua evolução, incluindo aspectos que só mais tarde se evidenciariam, como a insanidade de Hitler, a Gestapo, os campos de concentração, o genocídio. Mesmo em 1941, um judeu, Chaplin, considerava tudo uma "piada", e em "O Grande Ditador" nos faz rir com os bufões Hitler e Mussolini. Certamente, ele não estava cônscio da odiosidade dos personagens. Em Brecht (por oposição) a desmistificação é feroz, e em "A Resistível Ascenção de Arturo Ui" os nazistas aparecem como um bando de psicopatas, atuando à maneira dos gângsters de Chicago." (págs. 173-174)

Ora – digo eu – Bittencourt faz o que pode para "livrar a cara" de Jung. Despreza solenemente que o "Mein Kampf" é de 1923, que dez anos de notoriedade não poderiam deixar o Nazismo com esse aspecto de "pouco feroz", que o crescimento assombroso do movimento nazista teve tanto de assustador quanto de fascinante, e que muito sangue já havia sido derramado, àquela altura, para que esse fenômeno brutal ainda pudesse ser visto por alguém como "uma epidemia", "uma cobra", "um terremoto", ou uma "erupção vulcânica". Claro, Bertold Brecht foi mais explícito e mais contundente que Chaplin, mas Chaplin era um comediante, e Brecht um dramaturgo comunista militante, portanto pouco afeito a "gracinhas".

O filme de Chaplin, no entanto, não pode ser arrolado como "testemunho de defesa" em favor de Jung, sob pena de mais um judeu ser assassinado pelo Nazismo, mesmo que simbolicamente. O filme de Chaplin é, em si mesmo, de uma contundência absolutamente terrível, e só o entende como "piada" quem é muito ingênuo, "está" muito ingênuo, num momento de distração, ou é movido por má-fé. Em todas as épocas,  uma das formas mais veementes e contundentes de resistência aos tiranos foi a sua ridicularização através de cartuns, caricaturas, e mesmo "piadas" contadas a seu respeito. Dois exemplos: Circulava, nos idos da Primavera de Praga, a definição checa de Comunismo: "O Capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O Comunismo é exatamente o contrário". E: "Um homem foi condenado a 42 anos de trabalhos forçados na Sibéria, na época de Stalin, por haver dito que este era louco. Dois anos lhe foram imputados por difamar o Chefe de Estado, e quarenta, por revelar publicamente um segredo militar…"

Não procedem, portanto, as "defesas" de Bittencourt, nenhuma delas, ainda que o fracasso de sua defesa não seja suficiente para, por oposição, legitimar a acusação.

Mas talvez porque a acusação também tenha sido incompetente, nesse "caso". Não seria tão necessário, talvez, acusar Jung de anti-semitismo, ou de nazismo. Dom Helder Câmara foi integralista na juventude, e Carlos Lacerda havia sido comunista, na sua. As pessoas crescem, amadurecem, repensam, redefinem sua identidade, em suma, não são sempre monolíticas nem homogêneas ao longo da vida. Não há por que "limpar a ficha" de Jung por inteiro, só para livrá-lo de uma acusação em si mesma injusta. Talvez se descubra que tal crime ele não tenha cometido, mas tal outro sim. Vejamos, pois, os dois artigos citados no título deste trabalho.

Primeiro o artigo intitulado "Wotan", de 1936, publicado primeiramente em Neue Schweitzer Rundschau, em Zurique.

Em "Wotan", Jung, o profeta, apóstolo e apologista do inconsciente coletivo, idéia por ele elaborada para além da psicanálise que havia aprendido com Freud, cuja noção de inconsciente restringia-se ao terreno estritamente individual, está em seu elemento. "Wotan" estuda o antigo deus germânico, famoso por sua fúria destruidora e seu martelo massacrador. Wotan é a "personificação", a meu ver, da masculinidade, da virilidade, daquilo a que os chineses chamam "Yang". Jung (nenhuma intenção espúria, nessa casual justaposição de palavras…) começa sua análise resenhando os grandes cataclismas sociais do Século, após a Primeira Grande Guerra. Entre outros, ele menciona as "perseguições a cristãos e judeus".

Ao fazê-lo, ele coloca o banimento da Igreja Ortodoxa, na Rússia, e as leis discriminatórias aos judeus, na Alemanha, como equivalentes em termos históricos. Ele próprio classifica a introdução do ateísmo oficial na Rússia comunista como "de péssimo gosto e de pouca inteligência", em substituição à "riqueza variada da Igreja Ortodoxa". Tal admiração pelos outros perseguidos, os judeus da Alemanha, ele não menciona – e à época não possuía. (Bittencourt, op.cit., pág. 182) Ele também revela uma surpreendente simpatia pela religião muçulmana, "uma mesquita decente, em que a presença de Deus não fora substituída pelo exagero de ritos e objetos sagrados." (# 372)

Com palavras cada vez mais exaltadas, passa a descrever a outra "revolução", ocorrida na Alemanha, "país verdadeiramente culto, que se acreditava já bem distante da Idade Média…"  Faz sua aparição ali "um antigo deus da tormenta e da embriaguez, Wotan". Incansável errante, agitador, "esse deus ressurgiu no movimento da juventude, com suas mochilas e alaúdes, caminhando por todas as ruas … os verdadeiros servidores do deus da errância." No final da República de Weimar, também aderiram a essa caminhada os milhares de desempregados, que se podiam encontrar, por toda parte, numa migração sem destino". Mas "em  1933, já não se caminhava mais. Marchava-se, aos milhares… Hitler pôs literalmente de pé a Alemanha e produziu "in loco" o espetáculo de uma migração de povos. Wotan, o errante, voltava a despertar". (até aqui, citações do # 373).

E prossegue: "Sem dúvida alguma, o papel do errante sem trégua foi desempenhado, durante a Idade Média, pela figura então surgida de Ahasverus, que não constitui uma lenda judaica, e sim cristã, ou seja, o motivo do errante não incorporado por Cristo precisou ser projetado para os judeus, da mesma maneira que encontramos, nos outros, conteúdos que se tornaram inconscientes para nós. Em todo caso, a coincidência entre o anti-semitismo e o redespertar de Wotan é uma finesse psicológica que deve ser mencionada…" (# 374)

Esta frase de Jung foi por mim posta em itálico por revelar, no autor, uma pitada de sadismo indisfarçável. O "humor" nela contido jamais poderia ser julgado "inocente", nas alturas de 1936. Que isto, ainda assim, não caracteriza um anti-semitismo declarado, é algo que devo conceder ao bem da verdade. Mas que o rancor de Jung por seus antigos amigos judeus – Freud principalmente – que o rejeitaram e o expulsaram de seu movimento, o levou a regozijar-se pelo triste destino que os esperava, disto não resta sombra de dúvida. E aqui cabe o que seria talvez a primeira verdadeira acusação a ser feita a Jung: A de haver em muito ultrapassado as fronteiras do ódio pessoal, e concordado em contentar-se com o opróbrio e a humilhação desumanas de todo um povo, numa espécie de "racismo passivo", se assim se pode dizer, para ver realizada uma desforra pessoal.

Outro aspecto do pensamento de Jung, transparecendo neste seu trabalho, é um repúdio não declarado ao intelecto, à racionalidade. Não é com palavras amargas que ele fala de Nietzsche e de seu Zaratustra. "Como um vento, quero um dia soprar entre eles, e com meu espírito cortar a respiração ao seu espírito."  Zaratustra é "adivinho, mago e vento tempestuoso." (# 376). Parente próximo de Wotan, portanto. Que o pensamento de Nietzsche deveria aqui ser explicado de modo adequado, não tenho a menor dúvida. No entanto, não estou preparado para fazê-lo, e felizmente é algo que escapa aos limites deste trabalho. Seja como for, fica o convite a mim mesmo de, nalgum futuro mais clemente, confrontar idéias desses dois gigantes da germanidade. Certamente não será um trabalho ocioso: algo da grandiloqüente anti-ocidentalidade (ou anti-racionalidade) de um encontra-se no outro, e o confronto entre as idéias de ambos com certeza revelará alguns tesouros. Em todo caso, as concepções de Nietzsche acerca do Super Homem não ficam mal num contexto em que analisamos as idéias de Jung sobre a pujança do deus Wotan.

Em nota de rodapé a esse mesmo parágrafo, Jung cita o próprio Nietzsche, que "acentuou o aspecto dionisíaco por oposição e diferença ao apolíneo. Desde o aparecimento do "Nascimento da Tragédia", em 1872, o lado obscuro, telúrico e feminino,  com seus traços fundamentalmente encantatórios e orgiásticos apoderou-se da fantasia dos pensadores e poetas. Pouco a pouco, a irracionalidade foi se transformando em ideal." Ora, quão próximas estão tais idéias da descrição de Wotan, "deus da tormenta e da embriaguez"… Embora Wotan seja, ao menos a meu ver, o símbolo máximo da masculinidade, e Dionísio, como diz Jung, possuir um caráter "feminino", ainda assim a semelhança entre os dois arquétipos – para usar o conceito junguiano – é impressionante.

E Jung cita ainda, na mesma nota, o poeta Stefan George, do qual diz: "George ataca de maneira decisiva o racionalismo dos séculos XIX e XX. Sua mensagem aristocrática de grande beleza mística e de uma compreensão esotérica da história exerce uma profunda impressão sobre a juventude alemã. Sua obra foi utilizada por políticos inescrupulosos para fins de propaganda."

Não se pode dizer que esta seja uma apreciação desvalorizadora. Ao contrário, nela vemos alguns nacos da própria carne do ideário junguiano: A aristocracia – valor superior, talvez supremo, do qual ainda voltaremos a falar. A beleza mística – da qual não é necessário falar, pois o misticismo é uma das marcas registradas da preocupação junguiana. E a compreensão esotérica da história – quase a mesma coisa que o próprio Jung tenta fazer aqui, nesse mesmo trabalho, atribuindo ao Nacional-Socialismo uma natureza essencial extra-humana. Diz ele mais adiante, no # 395: "Esqueçamos por alguns momentos que nos encontramos no ano de 1936 e que, coerentemente com essa data, deveríamos explicar racionalmente o mundo, tomando por base os fatores econômicos, políticos e psicológicos. Se deixarmos um pouco de lado essa racionalidade bem intencionada, demasiado humana e, caso nos seja lícito, colocarmos o peso da responsabilidade do que hoje ocorre não no homem, mas em Deus, ou nos deuses, a hipótese de Wotan enquanto causa faria sentido."

E prossegue: "Atrevo-me a proferir a heresia de que o velho Wotan, com seu caráter abissal e inesgotável, é uma explicação bem mais acertada do Nacional-Socialismo do que todos os outros três fatores reunidos. Embora cada um desses fatores esclareça aspectos relevantes dos acontecimentos atuais na Alemanha, Wotan nos diz ainda mais, sobretudo no que diz respeito ao fenômeno de ordem geral, diante do qual o não alemão, por mais profunda que seja a reflexão sobre os seus fundamentos, vê-se desconcertado e incapacitado para compreender." (# 385) Novamente, utilizo o itálico para tornar gritante uma afirmação que, entre outras, talvez não produzisse tanto ruído. Sobretudo, se nesse "não alemão" citado por Jung incluirmos Freud. Sim, Freud, que com sua vasta cultura germânica, com seu Prêmio Goethe pela excelência de sua prosa alemã, com sua vida passada na germanófona e germanófila Viena, e suas constantes citações aos clássicos alemães, sim, esse mesmo Freud, no entanto, de um ponto de vista "racial", portanto primordial, portanto principal, para os efeitos de compreensão verdadeira da alma "alemã", "por mais que sobre ela reflita", não passa de um judeu!

Pois não é muito convincente que Jung se referisse, aqui, a todos os não alemães. Primeiro, porque não seria importante que um francês ou um hotentote deixasse de entender o que se passa no "espírito alemão": a estranheza cultural de um verdadeiro estranho não seria um fenômeno digno de nota. Segundo, porque a sua própria definição do caráter judaico, acima citada, como aquele que viceja em solo estranho, e necessita de um povo hospedeiro para desenvolver suas melhores qualidades, aproxima-se bem mais dessa idéia de um estrangeiro judeu que, por morar ao lado, poderia pretender compreender a cultura em meio à qual vive. E terceiro, porque Freud já havia declarado, e talvez mais de uma vez, sua irrestrita adoração a Logos, o Deus da Razão. Juntando os indícios, cabe suspeitar que esse "não alemão" impessoal e indefinido mencionado por Jung se chamava na verdade Zigmund e, em 1936, morava em Viena.

Ao entusiasmo (lembremo-nos: entusiasmós, em grego, significa o possuído por um deus…) de Jung pelo vigoroso e irracional Wotan, esse habitante das esferas externas ao Logos, essa figura mitológica, atávica, que se encaixava como uma luva no conceito de arquétipo, o grande conceito central da doutrina junguiana, que tinha tudo para legitimar a raison d'etre de toda a sua vida, esse "ser" que daria a Jung o pleno direito de proferir, perante os seus esmagados adversários, um "Eu não disse?" cheio de desprezo e vitória, ainda por cima vinha acompanhado de uma arrebatadora e arrebentadora campanha de discriminação e repressão (àquela altura, é verdade, ainda não de extermínio) justamente contra a nação à qual pertencia seu arqui-inimigo.

É legítimo dizer que, aos olhos de Jung, a guerra aberta pelos nazistas contra os judeus, se bem que longe ainda de revestir-se do caráter cataclísmico de poucos anos depois, já deveria ter então todos os sinais indicadores de uma tenebrosa e indubitável "Delenda est Judea"? Não era preciso esperar pela Cristalnacht de 1938 para imaginar que ela fatalmente aconteceria. Está bem que Treblinka e Majdanek ainda estavam longe da imaginação, mas era preciso ser muito míope, naquela altura, para não perceber as linhas mestras da conduta nazista. Que o destino de seus inimigos pessoais fosse esse inferno que os nazistas lhes estavam preparando, talvez tivesse para Jung o sabor de uma vingança "divina", quase bíblica. Resta provar que seu ódio por Freud e colaboradores teria tido essa dimensão, mas isto não me é dado (e não me cabe) fazer. Levanto apenas hipóteses lógicas a partir do material que me veio às mãos.

E ainda assim, Jung não se deteve ao formular idéias que certamente nunca poderiam ser tomadas como "anti-nazistas". Nem mesmo como "neutras". E tampouco, como concederam Alexander e Selesnik impotentemente, e Bittencourt triunfalmente, como "oportunistas". O oportunismo de Jung teria que funcionar, para ser autêntico, também sob a pata do urso russo. Mas a esse ele reserva epítetos que não podem deixar de ser vistos como inteiramente odientos e cheios de desprezo. Numa entrevista, por exemplo, ele diz: "A democracia comunista ou socialista é uma sublevação dos incompetentes contra as tentativas de ordem." E finaliza essa entrevista com as frases: "Sem o ideal aristocrático não existe estabilidade. Vocês, na Inglaterra, devem ao gentleman (o fato de) possuírem o mundo." (Entrevista ao The Observer, de Londres, em 18 de outubro de 1936).(5) Com o ideal aristocrático e a descrição dada ao movimento proletário da Rússia, fica inteiramente óbvia a preferência política de Jung. (Sobre as atrocidades cometidas por Stalin, Jung arremata: "…Mas Stalin não é muito original, e acho de muito mal gosto que se mostre em frente de todos como um czar tão cruel, sem o menor pudor! É realmente uma conduta proletária!" (itálicos mais uma vez meus). (Entrevista concedida a H.R.Knickerbocker em outubro de 1938, publicada no Cosmopolitan, EUA, em janeiro de 1939.) 

Tais declarações não "parecem" oportunistas, o que seriam caso a virulência de Jung contra o Comunismo e seu líder decorressem apenas da oposição entre este e o Nazismo. É impossível, dadas as suas várias declarações francamente favoráveis à aristocracia como forma ideal de governo, não ver em seu desprezo pela "ralé" russa um sentimento verdadeiro. Portanto, não se pode (mais uma vez) aceitar a tese do oportunismo para justificar as carícias de Jung ao Nacional-Socialismo. Só pode ter sido, no mínimo, como se diz em nossas terras, uma "amizade quase amor". Isto para não aproveitar outras declarações suas – de escancarada admiração por Hitler como líder mágico, por exemplo (ver adiante) – como indicadoras de uma espécie de amor homossexual pelo Nazismo (ou por Hitler, quem irá saber?), daqueles muito profundos e intensos, mas que é preciso jamais declarar publicamente…

Hipóteses, hipóteses, pode se ir longe na tessitura de hipóteses. Não pretendo prová-las todas, obviamente. As menos prováveis, porém, servirão de "molho" para as melhor demonstradas, ajudando a realçar, com seu sabor picante  –  o próprio Jung usa o termo, diga-se, ao se referir ao fato de que um deus primitivo e selvagem como Wotan tenha surgido justamente na Alemanha, esse "ápice da civilização e da cultura" – # 373 do artigo "Wotan"  –  o sabor amargo das outras.

As especulações de Jung sobre os dois tipos de tiranos – o tirano "cacique" e o tirano "pajé" – são por sinal deliciosas, não tratassem elas dos proprietários de três cabeças que tantos milhões de outras cabeças fizeram rolar com seus respectivos "estilos de tirania". A Stalin e Mussolini ele classifica como "tiranos caciques": São homens fortes, rijos, que tomam o que querem ou destroem o que não querem – praticamente com as próprias mãos. São mais temidos que amados, mesmo por seus seguidores, e exercem o fascínio que só o poder absoluto pode exercer. Mas Mussolini, aos olhos de Jung, é um sofisticado aristocrata quando comparado a Stalin. O carinho reservado por Jung para com Mussolini só encontra paralelo, aparentemente, na já citada dedicatória que Freud lhe teria endereçado. Já o desprezo por Stalin não precisa de maiores demonstrações que as assinaladas acima.

Em relação a Hitler, a opinião de Jung muda não só quanto ao conteúdo, mas quanto à própria qualidade das idéias emitidas. Se para Mussolini e Stalin ele reserva umas poucas frases, sobre um um tanto mais doces que sobre o outro, a respeito de Hitler Jung se derrama em comentários, talvez não fascinados, mas no mínimo intensamente admirados – mesmo quando o critica.

Hitler é, aos olhos de Jung, um "possuído". Na entrevista acima, intitulada "Diagnóstico dos Ditadores", (5) Jung diz textualmente que "Hitler não governa a Alemanha: Ele é simplesmente o expoente da tendência irrefreável das coisas." (pág. 128) E "Hitler é um megafone que amplia os murmúrios inaudíveis da alma alemã." (pág. 119) E ainda: "O poder de Hitler não é político, é mágico" (pag. 120), e logo adianta explica: "Não é que Hitler tenha um inconsciente mais abastecido que o seu ou o meu. O segredo de Hitler é duplo: Primeiro, o inconsciente dele tem um acesso excepcional à consciência. E segundo, ele se permite ser incitado pelo que o inconsciente lhe diz." (ídem) Portanto, ele "é literalmente verdadeiro quando afirma que, seja o que for que faça, somente pode fazê-lo porque tem o povo alemão atrás dele – ou, como às vezes se diz, porque ele é a Alemanha. Assim, sendo o inconsciente dele o receptáculo da alma de 78 milhões de alemães, Hitler é poderoso e, com sua percepção inconsciente do verdadeiro equilíbrio de forças políticas no interior e no mundo, tem conseguido até agora ser infalível." (pág. 121).

Atenção: a parte II deste texto segue na Seção Artigos.

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