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A evolução da mente humana

Nós temos uma tendência a conceber o ser humano, e especial­mente a sua mente, como sendo muito especial e único. Durante muito tempo esta reflexão fez com que estudiosos (como Wallace na época de Darwin) evitassem considerar processos evolutivos como relevantes para explicar a mente humana.

Era possível pensar em um "ponto crítico". Geertz (1978, p.75) cita Kroeber para resumir esta idéia:

Em um momento específico da nova história irrecuperável da hominização, ocorreu uma alteração orgânica, portentosa, mas provavelmente bem insignificante em termos genéticos ou anatômicos – com a qual um animal cujos antecessores não estavam dispostos "a comunicar-se, a aprender e a ensinar, a generalizar a partir de uma cadeia interminável de sentimentos e atitudes discretas" equipou-se a um ponto a partir do qual "ele começou a ser capaz de agir como receptor e transmissor," e iniciou a acumulação que é a cultura.

Com a idéia do "ponto crítico" não há muito a explicar. Precisa-se apenas determinar o momento em que ocorreu "o milagre". Explicações quanto ao valor adaptativo, ou pressões seletivas tornam-se desnecessárias.

Um argumento nesta linha vê o tamanho relativamente maior do cérebro humano moderno como uma conseqüência secundária da dimi­nuição do nosso corpo no decorrer da evolução. A grande superfície hori­zontal dos ossos das pernas de alguns dos nossos antepassados imediatos – especialmente H. erectus – sugere que estes hominídeos eram mais pe­sados do que imaginávamos. A evolução do H. sapiens teria envolvido uma redução do peso do corpo. O corpo teria diminuído, mas o cérebro teria ficado igual, resultando em um índice cefálico (que corrige pelo tama­nho do corpo) relativamente maior (Foley, 1993). Com este argumento, não precisamos falar de um valor adaptativo. O cérebro maior é um sim­ples efeito secundário sem maior significância. Mas uma vez evoluído, o cérebro relativamente maior teria tido efeitos espetaculares, dando origem a um ser muito especial e único.

Sem dúvida, o ser humano é uma espécie única. Mas como ressalta Foley (1987), todas as espécies são únicas, e nem por isso deixamos de achar explicações adaptacionistas para muitas das suas diferenças. No caso da mente humana há boas razões para pensar que esta evolução envol­veu fatores seletivos. Uma das melhores razões é que a mente tem o seu custo. Milton (1988) comparou as taxas de metabolização do corpo e do cérebro em diferentes animais. Observou-se que para a maioria dos mamí­feros o metabolismo do cérebro representa menos que 10% do metabolis­mo do corpo. Para o ser humano o metabolismo do cérebro representa 20% do metabolismo do corpo. Mais importante ainda, até 4 anos de idade o metabolismo do cérebro pode representar até 50% do metabolis­mo do corpo. Isto é um custo energético muito alto, especialmente para mães lactentes. E trata-se de um custo que afeta diretamente a reprodu­ção. Este aumento de metabolismo deve-se principalmente ao 'córtex cere­bral que tem uma taxa de metabolismo em torno de 43% mais alta que outras partes do cérebro'.

Se um cérebro mais complexo tem custos, teria que haver vanta­gens compensatórias. Senão a seleção natural eliminaria esta "complexificação". Quais seriam então as vantagens, e por que estas vantagens se aplicariam aos nossos antepassados e não a outros animais? Fialkowski (1986) argumenta que a evolução de um cérebro maior seria uma adaptação ao calor. Uma postura ereta, junto com uma subsistência baseada na caça diurna de animais nas savanas africanas, teria exposto a cabeça dos nossos antepassados ao calor do sol. Isto poderia provocar derrames (AVC). Um animal que tivesse um cérebro maior, com neurônios de sobra, teria melhores condições de se recuperar destes derrames.

Um segundo argumento sustenta que um cérebro maior e mais com­plexo teria uma adaptação a uma vida social cada vez mais importante. Para ganhar acesso à reprodução e para criarem filhos em grupos sociais grandes, os nossos antepassados teriam que lidar com as manipulações maquiavélicas dos seus pares. Isto exigiria muita capacidade cognitiva para comunicar sentimentos e intenções, e para reconhecer as intenções dos outros (Whiten e Byrne, 1988).

Um terceiro argumento salienta o impacto de um regime alimentar baseado em comidas de melhor qualidade como responsável pela expan­são do cérebro na evolução humana. Segundo este argumento, uma de­pendência em alimentos de melhor qualidade implica a necessidade de viajar mais longe, de reconhecer quando e onde diferentes alimentos esta­rão disponíveis e uma capacidade maior para encontrar as estratégias de forrageio mais otimizantes. São estas exigências que selecionariam para um cérebro maior (Milton, 1988).

Evidências para avaliar estas teorias vêm de duas fontes. Primeiro, comparações filogenéticas podem revelar correlações entre características dos cérebros de diferentes espécies, capacidades cognitivas, e questões como vida social, estratégias de forrageio, ou exposição ao sol. Segundo, comparações dos fósseis de diferentes hominídeos podem revelar regulari­dades entre o desenvolvimento cerebral e as estratégias de subsistência, cultura material, ou convívio social.

Quanto ao argumento da adaptação ao calor, Falk (1993) observa que o 'ser humano moderno possui um "radiador venal". Veias vindas do rosto ou do escalpo passam pelo crânio e entram no cérebro, onde podem absorver o calor do cérebro e passá-Io às veias jugulares. Marcas nos crâ­nios indicam que os Australopitecus afarensis e robustus não possuíam estes radiadores, mas que os Australopitecus graceis os possuíam. Esta adaptação sugere que o calor era realmente um problema para a expan­são cerebral dos nossos antepassados, mas indica que se trata de uma modificação que permitiu a expansão do cérebro. O fato da expansão cerebral ocorrer só depois do aparecimento deste radiador sugere que esta expansão não se deve a uma adaptação a derrames, que teriam sido pre­venidos com este radiador. Além disso, os australopitecos eram bípedes nas savanas durante milhões de anos, sem que houvesse uma expansão grande no cérebro. Talvez estes primeiros hominídeos não caçassem duran­te o dia, mas mesmo se dependessem apenas de produtos vegetais e/ou de carniça imagina-se que haveria momentos em que precisariam fugir de predadores e, assim, se expor a um calor que poderia causar derrames.

O argumento de forrageio para a expansão cranial é apoiado em vários dados. Primeiro, há correlações entre regimes dependentes em fru­tos (versus folhas) e maiores índices cerebrais entre diferentes espécies de primatas, e entre famílias de alguns mamíferos pequenos (Milton, 1988). Segundo, testes piagetianos de capacidades sensoriomotoras feitos com macacos cebus, alouatta e ateles confirmaram as maiores capacidades dos cebus, que são mais omnívoros e ativos, e que exploram mais habitats (Box, 1984). Terceiro, a evidência fóssil poderia também ser compatível com esta idéia. O ser humano moderno possui um sistema digestivo adaptado a um regime de alimentos de muito boa qualidade, e o trajeto dos primeiros hominídeos até o ser humano moderno sugere que houve uma tendência geral para adotar regimes alimentares cada vez de melhor qualidade. Se a caça tornou-se especialmente importante para H. habilis e depois para H. erectus, a expansão cerebral destes hominídeos também poderia ser explicada em termos das novas exigências cognitivas desta atividade. No entanto, este argumento tem alguns problemas. Por exem­plo, o gorila depende principalmente de folhas para a sua alimentação, mas as suas capacidades cognitivas e lingüísticas comparam-se àquelas do chimpanzé. É uma exceção importante uma vez que a separação filogenética entre o gorila e o ser humano é muito recente.

O argumento da inteligência maquiavélica também se apóia em uma pesquisa que comparou diferentes primatas. Byrne (1995) achou uma correlação forte entre o índice do neocórtex (peso do neocórtex dividido pelo peso do cérebro inteiro), e o tamanho do grupo social. O índice do neocórtex parece mais confiável como medida de capacidade cognitiva do que índices cranianos. Assim, Byrne mostrou que o índice do neocórtex é também muito correlacionado com a capacidade para enga­nar. (Não há nenhuma correlação entre o índice do neocórtex e o tama­nho do território ocupado por um primata. Byrne sugere que a correla­ção encontrada por Milton entre regime alimentar e índices cranianos simplesmente reflete o fato de herbívoros terem estômago e corpos maio­res devido à necessidade de digerir muita fibra. Índices cranianos não têm nada a ver com a capacidade cognitiva). De toda maneira, as limita­ções desta teoria ficam claras quando se examina uma exceção impor­tante, o orangotango, que possui capacidades cognitivas comparáveis às do chimpanzé, mas que passa a maior parte da sua vida sozinho.

Possivelmente o cérebro humano evoluiu em função de todos estes fatores, mas ainda precisamos de maiores esclarecimentos. Mas uma aten­ção a outras questões pode ser mais produtiva. Talvez, tão ou mais impor­tante que a questão do "porquê" da evolução do cérebro humano é a questão de "como" se deu esta evolução. As perguntas sobre "porquês?" tratam a evolução como uma questão de mudanças adaptativas. Mas as perguntas sobre "como?" tratam a evolução como uma questão de acu­mulação ou de "complexificação". Por exemplo, podemos fornecer uma boa explicação para a evolução de peixes sem olhos nas cavernas. Nestes ambientes os olhos são inúteis, e só causariam problemas, como infec­ções. Mas esta mudança não seria uma questão de evolução no sentido de acumulação. Para ter evolução neste sentido, precisaríamos mostrar que o novo traço não poderia ter evoluído sem a presença anterior do outro traço. No caso de peixes sem olhos, fica claro que não é preciso ter tido olhos no passado para depois não os ter. Muitos animais sem olhos nunca tiveram antepassados com olhos. As perguntas "como?" lidam com a ques­tão da estrutura na evolução. Um novo traço não pode evoluir do nada. Precisa haver uma correspondência entre a estrutura de um traço antigo e de um novo.

Para uma teoria geral da cognição é importante saber se há diferen­tes maneiras de se construir uma inteligência. Se Piaget está com razão, não devem existir muitas alternativas. O pensamento teria que se construir da mesma forma em tudo quanto é lugar – que seja nos pássaros, nos primatas, ou nos computadores. A evolução da cognição seria basicamen­te unilinear. Na sua análise da evolução cultural, Carneiro (1970) sugeriu um método que poderia ser usado para examinar esta questão. Carneiro codificou diferentes sociedades para a presença ou ausência de diferentes traços culturais – como lideranças religiosas, impostos, cooperação entre aldeias para fazer guerra etc. Depois usou um computador para organizar estas informações para ver se formavam uma escala. Por exemplo, todas as sociedades que possuem impostos também têm cooperação entre aldeias na guerra. Por outro lado, há muitas sociedades com cooperação entre aldeias para guerrear, mas que não têm impostos. Disto, Carneiro podia concluir que o traço, "impostos" é mais evoluído que o traço "cooperação na guerra". Observe que Carneiro considera traços como mais ou menos evoluídos, não culturas. Uma sociedade pode ter traços culturais muito evoluídos em uma área, e muito primitivos em outra. Por exemplo, os vícios na nossa sociedade formam uma escala. Quase todas as pessoas alcoólatras ou viciadas em drogas também fumam, e quase todos que fumam também tomam café. Mas há muitas pessoas que tomam café e que não fumam, e muitos que fumam e que não são alcoólatras. Uma sociedade pode ser muito evoluída em uma escala de vícios, e pouco evoluída em uma escala de agricultura.

O método de Carneiro pode ser usado para examinar a questão da evolução de complexidade na cognição. Mas cuidado! Carneiro precisava mostrar que as suas escalas não se deviam à difusão cultural. De forma semelhante, uma pesquisa que demonstrou uma escala em apenas uma ordem de animais (o que parece ocorrer com os primatas), não seria con­clusiva, pois poderia resultar do equivalente biológico da difusão cultural – ­uma genealogia comum. Diferentes espécies de macacos podem ter as mesmas capacidades simplesmente porque compartem o mesmo antepassado, não porque estes traços necessariamente precisam ocorrer juntos. Por esta razão acho importante realizar esta análise em diferentes ordens de animais – como primatas e cetáceos. Alguns cetáceos (como baleias e golfinhos) parecem ter evoluído, independentemente, capacida­des cognitivas parecidas com as de alguns primatas – formas de brincar, de enganar, de solucionar problemas e de compreender uma linguagem. Como estas duas ordens de animais teriam chegado ao mesmo conjunto de ca­pacidades se não houvesse alguma coisa que ligasse estas diferentes capa­cidades entre si?

Acho bem possível que algumas estruturas cognitivas sejam univer­salmente necessárias para se construir uma inteligência. Muitos pesquisa­dores da área de inteligência artificial parecem acreditar nisso (como exem­plo ver Fialho, 1994). Acho que muitos argumentariam, para usar a minha analogia anterior, que uma casa, mesmo construída por um bricoleur pre­cisaria de uma estrutura mínima para sustentá-Ia, mesmo se possui algu­mas colunas ou vigas além do necessário. É esta estrutura mínima que procuram entender. O argumento é possível, mas isto não implica que uma estrutura mínima seja necessária. Para usar uma frase de Oscar Wilde, se você tem o suficiente do supérfluo, não precisa do substancial. Uma casa sem nenhuma coluna poderia se sustentar simplesmente porque possui muitas paredes. Uma inteligência poderia funcionar simplesmente porque possui programas específicos suficientes para não precisar de uma estrutu­ra mais abstrata. Estas questões só serão respondidas através de pesquisas empíricas.

As idéias de Goodenough são ainda muito especulativas, mas ilus­tram como a ordem de aparecimento de diferentes capacidades cognitivas é importante para entender como funciona a mente humana. Esperamos que maiores e mais sutis comparações filogenéticas junto com estudos so­bre as capacidades cognitivas dos nossos antepassados possam esclarecer melhor estas questões.

Cognição elementar e epistemologia

Qual a relevância para uma epistemologia darwinista destas pes­quisas sobre neurologia e cognição animal? Primeiro, ao examinar diferen­tes níveis de cognição e as suas interrelações com o meio ambiente, refor­çamos a importância de encarar a cognição como um fenômeno adaptativo.

Um animal pode ter algumas capacidades "desnecessárias" (como capaci­dades sociais entre orangotangos), e pode lhe faltar alguma capacidade que seria útil (como a capacidade para reconhecer o engano no grito de alarme de um macaco vervet), mas em geral as formas de percepção, rea­ção, e construção de imagens mentais têm um valor adaptativo. Também ao relatar as diferentes capacidades cognitivas de diversos animais, refor­çamos a idéia de que a mente humana evoluiu de formas de cognição comuns em outros animais, e que não devemos esperar encontrar um

grande "divisor de águas" ou "ponto crítico" entre o nosso pensamento e aquele de diferentes animais.

Podemos também observar o uso que diferentes animais fazem das suas capacidades cognitivas e talvez aproveitar isto para refletir sobre o uso que nós fazemos das nossas capacidades. Observamos animais com reflexos automáticos, mas também com capacidades para simular todo um

processo de "tentativa e erro cognitivo" para escolher alternativas de ação.

Observamos animais aprendendo rotinas via observação ou ensino, mas também raciocinando via analogias. Observamos animais solucionando problemas tecnológicos, mas também manipulando os seus pares. Observamos diferentes metaníveis de "consciência". Em todas estas diferentes formas de cognição é possível ver também as limitações – os vieses e as incapacidades de abstração.

Estas limitações podem nos alertar para algumas de nossas limitações. Vimos que os animais aprendem algumas coisas com mais facilidade do que outras. Ao observar a reação de outros, macacos aprendem a ficar com medo de cobras, mas não aprendem a ficar com medo de flores. Ratos associam as formas dos alimentos com choques elétricos, mas não os cheiros. Abelhas aprendem o local das flores na saída, mas não na che­gada. Ratos aprendem mais facilmente a associar eventos súbitos com outros eventos súbitos, e eventos prolongados a outros eventos prolongados. Macacos aprendem a reagir com mais atenção a gritos de alarme feitos por adultos "confiantes" do que a gritos feitos por jovens ou adultos baixos na escala de dominância. O papel da seleção natural em facilitar ou não estas formas de aprendizagem é claro. Uma vez que compartilhamos todo um passado evolucionário com outros animais, seria muito arriscado imaginar que nós não possuímos vieses parecidos.

A nossa capacidade lingüística nos deu ferramentas novas. Talvez isto nos permita controlar alguns destes vieses. Mas devemos reconhecer que existem formas de raciocínio independentes da linguagem, e que o nosso cérebro trabalha também com imagens e conceitos não-lingüísticos. Se eliminamos o critério de uma linguagem simbólica, é até possível falar em "culturas" não-humanas no sentido de comportamentos e hábitos mentais aprendidos e compartilhados por um grupo, e transmitidos de uma geração para outra. Quanto do nosso raciocínio e das nossas culturas baseia-se nestas formas de pensar não-lingüísticas? E até que ponto somos suscetíveis aos vieses de aprendizagem e raciocínio de outros animais?

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