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A primeira vez

A chuteira parecia um pouco apertada. Agachou-se, desamarrou-a e tornou a amarrá-la. Não ficou bom, continuava incomodando. Pensou que por mais que tentasse ajeitá-la não ficaria bom, então desistiu. Sentia o coração a mil e seu foco de atenção flutuava pelo mundo à sua volta, porém invariavelmente retornava para as desagradáveis sensações corporais que lhe invadiam.

À sua frente um jogador mais velho, aparentando uma calma inacreditável. Como podia alguém manter-se calmo no túnel de acesso ao campo, a poucos segundos de encarar os 80 mil torcedores que lotavam o estádio? Como alguém podia ficar equilibrado sabendo que qualquer erro seu seria visto pelos presentes e por todos os telespectadores? Achou melhor parar de pensar pois afinal a cada palavra ou imagem em sua cabeça as sensações corporais ficavam mais fortes e difíceis de controlar. Aquela era sua estréia pela equipe principal. Mal completou 17 anos e já havia sido chamado pelo treinador para completar o banco de reservas da equipe principal. Achava que não iria entrar em campo, mas mesmo assim ficava apavorado de pensar na idéia de entrar em campo e falhar em sua estréia.

Também não queria que os outros percebessem, mas não estava certo de obter sucesso nesse objetivo. Na verdade acreditava que qualquer um poderia olhar para ele e perceber o vulcão de emoções que tomava conta dele. Por tal motivo evitava encarar qualquer um, como se pudesse assim disfarçar seu nervosismo. A caminho do campo, já na escada de acesso, passou pelo treinador que o interpelou aos gritos: “Poderia ter aquecido menos! Olha como está suado”! Ele não sabia, mas se estivesse completamente seco o treinador iria reclamar também. No final ficou aliviado, pois o treinador não percebeu o verdadeiro motivo de tanto suor.

Foi com grande esforço que conseguiu percorrer os poucos metros que separavam a saída do túnel e o banco de acesso. Olhar para a torcida? Nem pensar. Pelo menos naquele momento.

No decorrer do jogo dificilmente conseguia prestar atenção na partida. Passou todo o primeiro tempo e parte do segundo tentando se controlar. Viu sem muita consciência dos fatos ao seu redor quando um jogador do seu time saiu de maca e foi levado direto para o vestiário. Só mudou o foco quando o reserva a seu lado lhe deu uma cotovelada razoavelmente forte. “Pô cara! Acorda! O homem ta mandando você entrar!” Um forte arrepio passou pela sua coluna. Ao tentar se levantar sentiu uma enorme falta de força nas pernas. Atrapalhou-se todo para retirar o colete e iniciar o aquecimento, mas enfim entrou em campo.

Estava atônito. Em poucos segundos passou de espectador a protagonista. Como era zagueiro torcia para que a bola ficasse no máximo no meio de campo. Antes mesmo de completar tal pensamento a danada da pelota veio em sua direção. Atrás dela um atacante adversário bufando, com “sangue nos olhos” e muita vontade de deixá-lo sentado no gramado enquanto partia em direção ao gol. Apavorado projetou-se a frente e enfiou o pé na bola literalmente. A torcida foi ao delírio com tamanha bicuda que isolou a redonda no anel superior da arquibancada. Nessa hora sentiu um tremendo alívio. A sua primeira interação com a torcida não tinha sido tão ruim como seu medo anunciava. Ele não havia feito um gol contra e nem mesmo sido fintado de modo humilhante pelo adversário. A imagem que passara era a de alguém que não queria brincadeira. A torcida gostou daquela desengonçada mas produtiva intervenção.

A segunda bola que chegou próxima a ele também foi rechaçada com outro chutão. Desta vez a reação dos torcedores não foi tão efusiva. Aliás, quase não se ouviu nada além dos berros do treinador que lhe trouxeram de volta ao presente: “Calma! Sai jogando moleque!”. E não é que ele conseguiu ouvir? A terceira bola chegou mais lenta. Porém o mesmo não se pode dizer de um jogador adversário que vinha atrás dela. Louco para roubar a bola do novato imprimiu grande velocidade a sua corrida em direção a bola que girava lentamente a frente do zagueiro iniciante. Um lampejo dos tempos de várzea, quando ainda jogava no ataque, foi suficiente para jogar a bola de lado e sair pelo outro, deixando o desembestado atacante adversário passar pelo meio dos dois. Um autêntico drible-da-vaca que foi imediatamente reconhecido pela torcida com urros de alegria! O treinador gritava: ”Cuidado, menino””, enquanto lançava um olhar desconfiado para os seus atletas no banco que sorriam levemente com a finta desconcertante.

Mais alguns minutos e o juiz apitou o final do jogo. A sensação de “quero mais” havia tomado conta do jovem jogador que saia de campo muito diferente do que havia entrado: a ansiedade pelo próximo jogo havia substituído o medo do fracasso. Seria difícil segurar o bom zagueiro que anos mais tarde defenderia a Seleção Brasileira.

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