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Quatro atitudes perante o mundo

Acho útil distinguir quatro formas básicas de ver a realidade. Por falta de termos melhores, usarei os rótulos: “realismo ingênuo”, “idea­lismo”, “fenomenalismo” e “darwinismo”

Realismo ingênuo

Para quem nunca refletiu muito sobre questões filosóficas, parece um gasto de tempo ficar questionando a existência das coisas. Afinal de contas, parece óbvio demais que "uma rosa é uma rosa, é uma rosa" (Gertrude Stein). Se os outros começam a questionar o que se entende por "real", dá-se uma frustração, e se explica em tons enfáticos que se trata do "real mesmo", ou do "real concreto" ou simplesmente do "realmente real". Parece uma insensatez começar a questionar os "fatos", ou os "fatos reais".

Pode ser que poucos teriam problemas em identificar o que se entende pela casa de Maria na rua Y, mas problemas começam a surgir quando se pergunta sobre o que se entende por "casa", de forma mais genérica. Quando se lê que o censo constatou 400 casas no bairro X, é preciso perguntar se contaram a casa do cachorro de Maria, ou se contaram como uma ou duas casas, o lugar onde moram Cristina e sua irmã. Talvez Cristina ache que se trata de uma casa só, enquanto a irmã imagina que esteja morando em outra casa. E aquelas flores? Aquela flor azul é realmente uma "rosa"?

Quando se passa por conceitos um pouco mais abstratos, os pro­blemas aumentam. Lembro-me, quando ainda adolescente, fiquei fascinado quando descobri a arbitrariedade do conceito de "guerra". Afinal, eu tinha sempre acreditado, sem grandes questionamentos, que alguns países estavam em guerra, mas quando comecei a perceber que algumas pessoas definiam os combatentes não como "guerreiros", senão como "criminosos comuns", comecei a me dar conta de que não era tão fácil reconhecer o "fato" de existir guerra ou não.

Outros conceitos são ainda mais complicados. Como falar de "cau­sas". Posso dizer que é um "fato" que a gravidade "causa" a queda das coisas? Posso afirmar que é um fato que Joana ama José?

Em termos estéticos, os realistas ingênuos pressupõem que existem músicas ou pinturas "realmente" mais "belas" que outras. Em termos éticos ou morais, não há problemas em declarar que uma coisa é "realmente errada" e outra coisa "certa". Listas de pecados ou regras de comportamento elaboradas por autoridades como igrejas ou governos podem reforçar estas idéias. Com a ajuda destas normas, possivelmente algumas pessoas continuam com uma idéia ingênua da realidade durante todas as suas vidas.

Idealismo

Uma resposta para as dúvidas quanto à realidade é de tirar o "real" do mundo "de fora", e colocá-Io na mente "de dentro". Como argumentava Platão, se na vida particular somos confrontados com uma grande diversidade de casas, rosas ou cachorros, ainda conseguimos formar uma imagem de uma "casa", "rosa" ou "cachorro" ideal. Esta imagem corresponde a algo que nunca foi visto, mas que combina todas as qualidades essenciais para formar o conceito. As "coisas" lá fora são apenas sombras imperfeitas do ideal que já possuímos dentro da mente. Para conhecer o mundo, então, é preciso primeiro conhecer a si mesmo. Para Platão, saber consistia simplesmente em "Iembrar-se", em "tornar-se" consciente.

Aristóteles compartilhava com Platão a crença na primazia das idéias, mas se interessava mais pela natureza. Para ele, as coisas do mundo nunca conseguiam realizar a perfeição dos ideais. Ficavam sempre no "potencial", embora algumas coisas fossem mais perfeitas e mais belas que outras, justamente porque chegavam mais próximas aos ideais, às "essências" das espécies. Nos seus estudos, Aristóteles dedicava-se a descobrir como uma coisa que é apenas potencial conseguia se realizar. Com esta finalidade, levou a cabo uma experiência sugerida anteriormente por Hipócrates. Aristóteles quis saber se já havia no embrião da galinha todas as partes em miniatura que existiriam depois no adulto (a teoria de pré-formação) ou se o embrião tornava-se galinha em etapas sucessivas nas quais as diferentes partes seriam diferenciadas uma após outra (a teoria de epigênese). Abriu 20 ovos de galinha em dias sucessivos desde o dia em que foram postos até o dia em que descascaram, descrevendo minuciosamente o desenvolvimento da galinha.

Para Aristóteles, a explicação de um fenômeno consistia em enten­der esta realização do potencial. As famosas quatro "causas" de Aristóteles precisam ser vistas nesta luz. Lembrando as quatro causas para Aristóteles: material, formal, eficiente e final. Sugerimos a leitura de nosso artigo "Voltando aos gregos", parte I (01/08/2007) e parte II (02/08/2007).

Podemos ilustrar estas "causas" usando o exemplo da mudança de cor de um camaleão. A explicação formal seriam as condições gerais que definem a cor. A explicação material seria a substân­cia na pele do animal que é responsável pela cor. A explicação eficiente seria a mudança de uma folha para um galho. A explicação final seria a necessidade de se esconder de predadores. No caso de fenômenos sociais, poderíamos tentar explicar a guerra entre dois países. A explicação formal esclareceria o que os pesquisadores ou os pesquisados entendem por guerra, em termos de regras, estruturas, ou logística. A explicação material – o inventário de soldados, armas etc. – esclareceria porque o "ideal" da guerra não se realiza completamente neste caso particular. A explicação eficiente seria o insulto sofrido pelo rei de um dos países na ocasião de uma visita oficial. A explicação final esclareceria a existência de guerra em termos gerais (a sua finalidade aos olhos de Deus, na natureza humana, ou na adaptação biológica, por exemplo).
Na ótica do idealista, as questões morais e estéticas estão muito ligadas à questão da Verdade. Tudo se realiza no encontro com a perfei­ção.

O idealismo dominou a Filosofia durante séculos. Na área da Bio­logia, por exemplo, a ênfase na realização do potencial e do aperfeiçoa­mento, continuava praticamente sem questionamentos até Darwin. A "Escala da Natureza" de Tomás de Aquino organizava o mundo vivo em uma hierarquia que ia do mais imperfeito até o mais perfeito, das plantas e animais simples até os macacos, o ser humano, os anjos e finalmente Deus. O Systema Naturae de Lineu aperfeiçoou esta classificação original, e os primeiros evolucionistas como Lamarck continuavam nesta tradição, vendo a história da vida na terra como um movimento contínuo em direção à perfeição. Na sua ótica, a "adaptação" biológica era vista como uma realização cada vez mais aperfeiçoada do potencial dos diferentes animais. Todas as partes do animal ou da planta teriam uma função na vida. Mesmo para as coisas não vivas, há uma preocupação em achar um sentido e uma finalidade. Por exemplo, Bachelard (1977) cita o argumento de Votteux de que os cometas servem para dar umidade às plantas. O mesmo ocorreu com relação a muitas histórias da humanidade como aquelas de Juan Vives (1492-1540), ou de Turgot (1727-1781) em que se tentava mostrar o progresso contínuo da humanidade. Os antropólogos conhecidos como "evolucionistas" como Maine, Tyler, Morgan e Engels continuavam nesta velha tradição.

Até hoje se vê as marcas deste idealismo em muitas áreas acadê­micas. Alguns psicólogos, por exemplo, insistem em exortar as pessoas a realizarem todo o seu potencial. Odum (1963) fala do "clímax" em uma sucessão ecológica, a etapa mais realizada de um sistema ecológico, e comenta sobre a força da natureza em se reestabelecer, após uma perturbação. Na medicina é comum se falar de corpos mais perfeitos ou saudáveis que não sofreram perturbações genéticas, acidentes ou doenças infecciosas.

Fenomenalismo

Embora muitos pensadores concordassem que as coisas sejam um produto da nossa mente não compartilhavam da confiança dos idealis­tas nas formas ideais. O que temos na mente também pode ser apenas uma sombra, pura ilusão, puro sonho. Na Grécia antiga os sofistas já rejeitavam a pretensão de poder se chegar a qualquer conclusão a respeito de uma Verdade universal. Em sua declaração de que "o homem é a medida de todas as coisas", Protágoras enfatizou que o ser humano vive apenas sob as leis da própria cultura. Não havia poderes maiores. Isto implicava que as leis, valores e normas morais eram apenas convenções culturais, podendo variar de um lugar para outro. Isto é a doutrina de relativismo cultural aceita por muitos, senão a maioria dos antropólogos atuais.

Para os fenomenalistas, o mundo material também carece de sig­nificado maior. O aforismo de Heráclito de que o "homem nunca pisa duas vezes no mesmo rio" é muitas vezes citado para ilustrar a fugacidade dos fenômenos, e, presumivelmente, a fragilidade de conceitos a respeito destes fenômenos. Como podemos falar de um "rio" se em momentos diferentes a água é outra, o reflexo solar é outro e o observador também é outro? Como ousaríamos dizer, então, que existe uma coisa chamada "rio" que continuaria igual? Podemos apenas sentir os fenômenos fugazes. A "essência" da realidade, se é que há uma "essência", consiste simples­mente naquela sensação passageira que nunca se repete. Qualquer tentativa de juntar fenômenos díspares em um único conceito (como "rio") acaba sendo arbitrária, e, no fundo, sem justificativa maior.

"Fenomenalistas" reagem de formas diferentes a estas reflexões sobre a arbitrariedade e falta de sentido maior na realidade. Para alguns sofistas, estas reflexões desembocaram em um niilismo social. Calicles con­cluiu que, já que não havia virtudes sociais, também não haveria nem normas nem moral. As leis seriam invenções de pobres e fracos para tirar o poder dos ricos. Sócrates e Platão horrorizavam-se com estas conclusões em prol da desconsideração do moral social. Outros adeptos desta linha de pensar, como os epicúreos, decidiam que, já que o homem só existia no aqui e agora, o melhor que se podia fazer era apro­veitar o que a vida tinha para oferecer e evitar o sofrimento.

Neste século, existencialistas como Sartre, Camus, e os personagens dos filmes de Ingmar Bergmann, reagiram com angústia a esta falta de sentido para a vida. O "absurdo" da vida tornou-se a sua preocupação principal. Em L'Étranger de Camus, por exemplo, o personagem principal se angustia porque não consegue sentir nada na ocasião da morte da mãe. Ele mata, sem razão, uma pessoa em uma praia, e passa por um pro­cesso judicial com procedimentos absurdos que não têm nada a ver com a questão do crime. Outros como Genêt, mergulham no absurdo e conse­guem tirar um êxtase místico ao contemplar a sua própria insignificância, especialmente quando esta insignificância é provocada pela humilhação, a única maneira convincente de se tornar humilde.

Uma vez que para os fenomenalistas a realidade é produto de um pensar sem sentido maior, as explicações para a realidade concentram-se principalmente na consciência em si. Para Husserl "o mundo está constituído por sentidos ou significações que dependem da consciência". Isto levou, nos seguidores de Husserl, a uma concentração na pesquisa sobre a "função 'constituinte' da consciência, em um estudo da consciência 'pura' ou 'transcendental'''. Tudo é "sujeito", até o "objeto". Alguns entendem por isto que somente podemos conhecer da realidade (além da experiência mística pessoal do fenômeno único e passageiro) o que nós construímos nas nossas mentes. Outros fenomenalistas mais extremados diriam que não há nada (nem o fenômeno único passageiro) que não seja uma construção da nossa mente.

Esta ênfase na consciência também se encontra na visão de alguns físicos. A partir de uma interpretação do significado das equações para ondas de Schroedinger, o físico Fred Wolf (1981) argumenta que o simples fato de observar um fenômeno é suficiente para mudá-Io. Ele sugere que a realidade é realmente um produto da nossa mente, e que as diferentes possibilidades de pensar correspondem a diferentes universos paralelos que aparecem nos momentos da consciência.

As posições de fenomenalistas com respeito a questões estéticas e éticas refletem esta falta de sentido universal para a vida. Invertem as noções de beleza, típicas da sociedade, achando beleza onde os outros acham feiúra, e vice-versa. Inferências quanto à moral variam. Para alguns, a falta de verdades ou normas universais implica que cada um pode "ficar na sua" e fazer o que quer. Mas para a antropóloga-poetisa, Ruth Benedict, que mergulhou na obra de Nietsche, e foi uma das primeiras antropólogas a levar muito a sério as idéias fenomenalistas, o imperativo moral era muito claro – mais tolerância e respeito para quem é diferente. Cada povo inventa a sua própria moral, e nós, que temos idéias diferentes, precisamos respeitar isto.

Darwinismo

No realismo ingênuo a realidade existe, independentemente das nossas mentes, e reflete-se pouco sobre como nós chegamos a conhecer esta realidade. No idealismo os "fatos" naturais são símbolos de "fatos" espirituais, de forma que há uma perfeita correspondência entre o mundo natural e o mundo espiritual. No fenomenalismo, a realidade é uma cons­trução das nossas mentes. No darwinismo, admite-se a existência de uma realidade externa, e se pressupõe que há uma certa relação entre as nos­sas mentes e esta realidade. Mas em contraste com o idealismo, não há uma correspondência perfeita entre "fatos naturais" e "fatos espirituais". Como no caso de fenomenalismo, o darwinismo pressupõe que a realida­de tal como nós a percebemos é, com efeito, uma construção das nossas mentes. Mas à diferença de uma visão fenomenalista mais extremada, esta construção não é de todo arbitrária. Isto, porque nossa mente é vista como um produto da evolução via seleção natural.

A chave da visão darwinista está no conceito de seleção natural. (Se existisse um adjetivo – como -"selecionista" ou algo parecido – para expressar esta idéia, teria usado este adjetivo em vez da palavra "darwinista" para esta linha de pensamento). Embora a expressão "seleção natural" faça parte do vocabulário da maioria dos estudiosos de todas as áreas acadêmicas, esta noção é muito mal compreendida. "Cem anos sem Darwin", lamentou Müller na ocasião do centenário da Origem das Espé­cies para expressar a sua frustração quanto a estes mal-entendidos.

A grande contri­buição de Darwin não consistia na elaboração das idéias de evolução ou de adaptação (que já estavam sendo discutidas um século antes), nem o seu cuidado em juntar informações para demonstrar a idéia de evolução.

A grande criatividade de Darwin devia-se à junção de várias idéias e observações da sua época para formular a idéia de seleção natural. Primeiro, de Malthus, Darwin obteve a idéia de que a prole toda de diferentes animais não deveria nunca ter sobrevivido. Por tempos imemoriais alguns devem sempre ter morrido antes de se reproduzirem, senão o mundo estaria transbordando de seres vivos, o que obviamente não é o caso. Da análise de Spencer sobre empresas capitalistas, Darwin emprestou a frase "sobrevivência do mais apto". Outro autor sugere que seria historicamente mais correto chamar as idéias de Darwin de "spencerismo biológico" do que as idéias de Spencer de "darwinismo social". A sobrevivência do mais apto explicaria quais indivíduos sobreviveriam. Da seleção artificial praticada por agropecuaristas e por cavalheiros ingleses que gostavam de reproduzir pássaros exóticos como esporte, Darwin observou como se poderia modificar os descendentes de um animal de uma geração para outra. Juntando estas três idéias, Darwin podia explicar o mecanismo da evolução de diferentes espécies. A natureza agiria sobre o excesso de prole, selecionando aqueles indivíduos mais aptos, o que no decorrer das gerações levaria a mudanças nas suas características. Diferentes espécies se originariam quando diferentes ambientes, como diferentes criadores de pássaros, tivessem criado animais tão diferentes que eles não poderiam mais se cruzar na reprodução.

O elemento radical na teoria de seleção natural era o seu profundo ateísmo, no sentido de não exigir um Deus para explicar as coisas ou Ihes dar um sentido. Como Darwin simplesmente achava impossível saber da existência de um Deus, talvez fosse mais exato usar a palavra "agnóstico", inventada por seu maior defensor na época, Thomas Huxley. Enquanto Lamarck, como Lineu e São Tomás antes dele, podiam acreditar no aperfeiçoamento contínuo dos seres vivos, e ver nisto um plano divino, ou pelo menos alguns princípios idealistas, Darwin forneceu um mecanismo de evolução absolutamente amoral. Não havia nenhuma "finalidade" na evolução, nem seres superiores e inferiores. Darwin es­crevia lembretes no seu caderno para nunca usar as palavras "higher" ou "Iower". Tratava-se apenas do fato de algumas coisas sobreviverem e continuar no futuro e outras não. Um ambiente facilitaria algumas características. Outro ambiente favoreceria outras características.

Para Darwin, o que se aplicava às características físicas dos dife­rentes animais, também se aplicava às características mentais. E o que se aplicava aos animais também se aplicava ao ser humano. Argumenta-se que foi a extensão da teoria de seleção natural à mente hu­mana que incomodou/assustou Darwin e fez com que demorasse 20 anos para publicar as suas idéias. Wallace, que chegou independentemente à idéia de seleção natural, hesitou em aplicar esta idéia à mente humana, e não teve problemas em apresentar a sua teoria.

A ausência de um sentido maior para a vida aproxima a visão de Darwin à visão dos fenomenalistas. Ambos vêem o "sentido da vida" como uma ilusão ou sonho. Mas há uma diferença básica. Enquanto os fenomenalistas vêem a mente como relativamente independente da reali­dade, ou até como construtora única dela, o darwinismo coloca limites no distanciamento que a mente pode ter da realidade. Se a nossa mente fosse totalmente desconexa da realidade externa, nunca chegaríamos a sobrevi­ver ao processo de seleção natural. Mas cuidado! Isto não quer dizer que a mente precisa ser perfeitamente adaptada à realidade, como pensavam os idealistas. A seleção natural é pragmática, não perfeita.

Foi importante para Darwin mostrar que a adaptação não é perfeita. Os lamarckianos e idealistas em geral acreditavam na perfeita adaptação. Até hoje os Testemunhas de Jeová usam o argumento da perfeita adaptação ao meio ambiente para derrubar a teoria de seleção natural. Para apoiar a sua teoria contra estas outras visões, Darwin precisou mostrar elementos não-adaptativos em di­ferentes plantas ou animais. Estes elementos podiam ser explicados às ve­zes pela história evolutiva do animal – uma sobrevivência, agora sem sen­tido, de algo que em algum antepassado foi talvez útil – pêlos no corpo de um homem, por exemplo. Ou estas características podiam existir simples­mente porque não haveria nenhuma razão para que desaparecessem. Por exemplo, apenas 5% do nosso DNA codifica proteínas, e se pergunta por que teríamos tanto DNA não-codificador?

Uma possibilidade é simplesmente que este DNA não-codificador não causa problemas. A sua continuação teria mais a ver com um processo de sele­ção natural ao nível molecular. A independência do DNA para com o or­ganismo talvez remeta à origem da vida. Alguns ecólogos suge­rem que as primeiras células se originaram da "simbiose" de moléculas de DNA com sistemas de circulação de elementos.

Esta noção de adaptação pragmática, não-perfeita, aplica-se tam­bém à nossa mente. Do ponto de vista da seleção natural, o que importa é que nosso pensamento nos deixa sobreviver e reproduzir. Mas não há nenhuma garantia que este pensamento possa chegar a qualquer "verda­de". Esta idéia é ilustrada com uma piada sobre uma mulher que ganhou na loteria. Quando perguntada por um jornalista como é que con­seguiu acertar o número ganhador, a mulher respondeu: "Bem, sonhei na noite anterior com o número 249. Aí pensei, 2 vezes 4 dá 8; 8 vezes 9 dá 63. Aí apostei no 63." O jornalista, perplexo, informou à mulher que 8 vezes 9 dava 72, não 63. Ao escutar esta "correção", a mulher olhou para o jornalista com desdém e deu a resposta que o jornalista não podia refu­tar: "Fui eu que ganhei na loto, não foi?"

Com efeito, se o raciocínio desta mulher a ajudasse a sobreviver e reproduzir, é este raciocínio que seria selecionado pela seleção natural, e não o de um matemático por mais gênio que fosse. Para resumir, o nosso raciocínio é também um produto da seleção natural. Talvez tenha um va­lor adaptativo. Talvez seja simplesmente um efeito secundário de outra coisa que tenha valor adaptativo (como a evolução do queixo humano se explica como efeito secundário da diminuição dos dentes). Talvez nem isto seja. De qualquer forma, não há nenhuma garantia que este raciocínio possa representar qualquer verdade última.

Em termos de estética e ética, os darwinistas assemelham-se aos fenomenalistas, na medida em que rejeitam a idéia de um "belo" transcendental ou de um "certo e errado" absoluto. No entanto, diferem dos fenomenalistas na medida em que reconhecem certos limites no que o ser humano poderia considerar como "belo" ou "certo". Isto, porque as nossas noções de "belo" e "certo" também poderiam ser, pelo menos em parte, um produto da seleção natural. Sugeriu-se, por exemplo, que as nossas noções de moralidade tenham evoluído em função de "sistemas de reciprocidade", especialmente "reciprocidade indireta". Reciprocidade indireta ocorre quando eu observo como alguém interage com uma terceira pessoa, e depois tiro conclusões a respeito da probabili­dade deste indivíduo interagir de forma favorável ou não, comigo. Não podemos concluir que características que são adaptativas (inclusive as nossas noções de moralidade), também sejam morais. Isto seria uma tentativa de concluir do que é para o que deve ser, o que os filósofos têm mostrado ser impos­sível. Mas o estudo de como evoluíram as nossas idéias de moralidade pode ser útil, na medida em que nos alerta para vieses e estratégias típicas de trapaça. Assim, podemos melhor vigiar estas trapaças para garantir a justiça.

Ao elaborar estas quatro formas de encarar a realidade, tive um forte impulso de acreditar que se tratava de uma questão de etapas de raciocínio ou de níveis de consciência, sendo, é claro, a linha de pensa­mento darwinista o último e "mais maduro" nível. No meu caso pessoal, posso distinguir claramente as épocas de minha vida em que fui dominado por uma ou por outra maneira de olhar a realidade. Até a adolescência regeu o realismo ingênuo; até o último ano do segundo grau, o idealismo; até o primeiro ano de pós-graduação, o fenomenalismo, e até agora o darwinismo. Mas eu sei que isto seria muita pretensão, e que não corresponderia ao pensamento dos outros, nem aos desenvolvimentos his­tóricos destas linhas de pensar. É possível refletir um pouco dentro de uma forma de pensamento e logo sair. Por exemplo, Emerson, um dos mais puros idealistas, refletiu um pouco sobre a possibilidade de tudo ser apenas sonho, mas logo concluiu: Que a natureza goze de uma existência substancial lá fora, ou exista apenas no apocalipse da mente, é igualmente útil e venerável para mim.

Da mesma maneira, alguém poderia começar a questionar se tudo não é sonho. Poderia questionar até se a própria idéia de estar em vias de pensar também não seja sonho. Mas no final, poderia concluir que sempre que se pensa que se está pensando, tem outro "eu" por trás que inventa a idéia de que eu penso que estou pensando. Este "eu por trás" continua recursivamente ad infinitum e nunca desaparece. Logo, este "eu pensante" deve existir. Talvez seja, inclusive, a única coisa em cuja existência se pode confiar. Foi a partir da "certeza" deste "eu pensante" que Descartes con­cluiu que existe um mundo lá fora, e que "cada idéia claramente e distinta­mente presente na mente deve ser verdadeira".

Algumas pessoas podem também refletir um pouco sobre o darwinismo e depois concluir que toda a idéia de seleção natural é mais uma construção arbitrária da mente humana, e que também é puro so­nho, voltando a uma posição fenomenalista. Talvez alguns biólogos pas­sem por uma visão darwinista sem nunca ter passado por visões idealistas ou fenomenalistas. Imagino que seria possível ter muitos "vai-e-véns" entre as diferentes formas de encarar a realidade, mas acredito que a maioria das pessoas se estabiliza, depois de um tempo, em uma ou em outra forma de pensar. O ponto desta exposição não é tanto concluir que uma visão é mais correta que outra (embora eu prefira o darwinismo), mas de discorrer sobre as implicações de cada. No fundo, o próprio darwinismo me deixa pragmático o suficiente para acreditar que será a utilidade demonstrada de uma linha de pensar que, no final das análises, determinará qual linha de pensar se deve seguir.

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