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Harry Stack Sullivan – parte III

Parataxe:

O tratado da teoria social-psicológica de George Herbert Mead, no capítulo XXII, terminava com a observação de que, quando alguém vem a viver em uma contradição por ter um “social self” fortemente antagônico, deverá abandonar o “sef” antagônico ou toda a contradição. Se acontecer o último, o indivíduo colocar-se-á em um crepúsculo neurótico. Se o sujeito abandonar apenas o “self” fortemente antagô­nico, surgirá nele um inconsciente do mesmo tamanho do grupo antagônico que abandonou. Com palavras mais sim­ples: quando a vida pessoal é determinada, dominada, ator­mentada por dois significant others fortemente àntagônicos, a pessoa terá que renunciar a um dos dois ou a ambos. No último caso, deixa de existir como pessoa social; será, então, internada em um hospital psiquiátrico. No primeiro caso, o raio de ação de sua vida social será pequeno e ela será ator­mentada por angústia. – A suposição de apenas dois e não mais “sociais selves” antagônicos é bastante teórica. Nunca alguém será determinado por apenas dois “significant others”. Mas isso não é o mais importante. O que importa saber aqui é que, na doutrina de G.H. Mead, antagonismo de “social selves” (ou de “significant others”) leva à perda.
Na concepção de Sullivan, o antagonismo pode ser mantido. Mais ainda: na sua doutrina, o antagonismo pertence à vida comum, diária, não-neurótica. Ainda não dissemos como isso se dá. O assunto é tema deste artigo. Sullivan distingue três maneiras de experimentar e de ter contato. Os termos são: prototaxe, sintaxe, parataxe.

Prototaxe

A palavra, de origem grega, significa literalmente: primeira colocação. É chamada primeira, porque toda criança começa com ela a sua vida, mas também porque todas as expe­riências e relações humanas têm uma prototaxe por base. Em toda experiência prototáxica, a pessoa constitui uma unidade com o que experimenta. A empatia primordial é um exemplo de prototaxe. A criança forma uma unidade com a mãe. A mãe, a seu modo, forma uma unidade com a criança. Semelhante base sensitiva – ba­se de unidade – existe em qualquer acontecimento ou situa­ção íntima. Ir para casa tem por base a relação prototáxica com a própria casa. Sair de casa é uma partida real, por motivo de uma relação prototáxica com o fora. A chegada no estrangeiro; ver palmeiras, vinhas, olivais, ver o oceano, ver a neve caindo, ver e ouvir relâmpagos e trovões, entrar em uma gruta, mergulhar em um rio, escalar uma montanha, sentir areia, lama, argila, rocha, tudo isso – e muitas outras coisas – está carregado "basicamente" de prototaxe. A mulher é para o homem, e o homem para a mulher, uma experiência prototáxica, que serve de base para tudo o que acontece entre homem e mulher. O nu é uma experiência prototáxica. O vestuário e o gesto originam-se de uma relação prototáxica.

A mística apóia-se em uma relação prototáxica.
Característico de qualquer experiência prototáxica é que ela se processa sem palavras e dificilmente pode ser expressa por meio delas.

Sintaxe

Sintaxe, também uma palavra grega, significa: colocação em conjunto. Entende-se por isso: toda experiência ou relação fundada e mantida por laços racionais, isto é, por palavras, verbalmente. Ensinar é o exemplo mais marcante de sin­taxe. Mas ensinar deixa de ser sintaxe, quando a relação entre professor e aluno é ameaçada por um conflito de autoridade, pois aí nasce uma terceira forma de relação, que Sullivan chamou de parataxe.

Parataxe

A palavra grega significa: colocação lado a lado. Na maneira paratáxica ou concomitante de relacionar-se são mantidas lado a lado: formas diferentes, até antagônicas, que levam, portanto, à contradição de relações. O termo parataxe, que ocupa um lugar importante na antropologia de Sullivan, pre­tende indicar que conservar relações contraditórias – signi­ficant others contraditórios – dentro de uma única existência, pertence às possibilidades humanas. Cumpre até verificar-se que a parataxe faz parte da realidade diária, normal.

Para esclarecer a última afirmação, expondo, ao mesmo tempo, em que consiste precisamente a parataxe, um exem­plo concreto será melhor do que um arrazoado teórico. Utilizo o exemplo de Sullivan publicado em 1938 na revista Psychiatry, ano I. Tomo a liberdade de fazer algumas pe­quenas mudanças.

Exemplo de parataxe

O acontecimento passa-se com um casal abastado de meia­-idade. O homem é diretor de uma fábrica, comerciante empreendedor, que, além disso, alcançou uma boa repu­tação, graças a diversas funções paralelas. A mulher é uma mãe dedicada, acolhedora, esposa amorosa, dona de diver­sas outras qualidades. Dedica-se à música, toca bem piano, gosta de visitar museus, aprecia exposições e organiza, de vez em quando, reuniões culturais à noite. Foi quem iniciou, literalmente, o esposo no terreno da arte e da cultura. Quando contraíram matrimônio, ele ignorava totalmente esses domínios. Guiado pela esposa, aprendeu muita coisa. Agora distingue Beethoven de Bach e Corot de Dali; co­meçou até uma pequena coleção de quadros. Deve-se obser­var, porém, que o interesse da esposa pela fábrica, por indústria, economia e política – assuntos que falam a ele ­- nunca despertou nela, que permaneceu ignorante com res­peito a essas coisas e não fala nisso. O homem conformou-se com a situação. – Um casal feliz, o qual, todavia, vez por outra, incorre em incidentes pouco agradáveis. O seguinte serve de exemplo:

O homem chega do trabalho. Abraça sua esposa, faz um elogio ao penteado dela, constata com alegria que ainda há tempo para um aperitivo, deixa-se cair numa poltrona, toma o jornal e diz à esposa, quando esta coloca um cálice ao seu lado, que almoçara aquela tarde com um colega conhecido também por ela. A mulher ouve a notícia, silencia um mo­mento, e diz: "Quantas vezes vai encontrar-se ainda com esse sujeito?" – deixando bem claro que não gosta nem um pouco do tal colega, o que seu esposo não desconhece. Ela tem suas razões. O colega é um comerciante afortunado, mas muito limitado. Interessam-lhe apenas os seus negócios. Para dizer a verdade, não se importa, nem um pouco sequer, com a cultura. A esposa de que estamos falando despreza-o, o que deixa transparecer na observação por demais ríspida. O que aconteceu com o esposo, após a observação dela, valeria a pena ser filmado. Aqui, porém, devemos conten­tar-nos com a descrição.

Com um movimento brusco, ele levanta os olhos do jornal, fixa a mulher atentamente, enrubesce, enrijece os músculos faciais, amassa o jornal no lugar onde suas mãos se encon­tram – tudo isso em um instante. Depois, vagarosamente, abaixa os olhos, seu rosto se relaxa, empalidece um pouco e diz com voz baixa e ligeiramente rouca: "De vez em quando." Cala-se. A mulher retira-se. O homem tenta en­contrar a coluna que estava lendo, mas o jornal não o prende mais. Após uns dez minutos, levanta-se, espregui­ça-se, boceja e diz à mulher que vem entrando: "Sinto-me cansado; hoje vou deitar cedo", lembrando-se, porém, ao mesmo tempo, que o dia todo sentira-se bem. Ao jantar, não tem apetite. O que aconteceu? A resposta inclui não pouco da psicologia das relações humanas normais e, além disso, quase toda a doutrina das neuroses. Vejamos. Ela, a esposa dedicada, deixou escapar a pergunta: "Quantas vezes vai encontrar-se ainda com esse sujeito? A pergunta revela seu desprezo para com o colega do marido, sim, mas manifesta também desprezo para com o próprio marido, para com a fábrica, a indústria, a economia, a política etc., negócios a que ele reserva, digamos, noventa por cento de sua vida. Ele, o marido, vive em duplicidade.

Em primeiro lugar: Dez por cento do seu tempo e interesse é para poder distinguir Corot de Dali e Beethoven de Bach; para lidar à vontade com os amantes da cultura; para com­prar, de vez em quando, com amor e certa ingenuidade, um quadro precioso; para saber-se casado com uma mulher inteligente, atraente, dedicada e "da alta sociedade". Tudo isso com seriedade e verdade.

Em segundo lugar: Noventa por cento de seu tempo e inte­resse é reservado para ser o homem que dirige uma fábrica; que entende de salários e preços, de sindicatos e bolsas; que adquiriu por aptidão e trabalho uma boa fortuna; que não se interessa nem um pouco por Corot, Dali, Beethoven, Bach ou qualquer outro nome ilustre desse ramo. Esse sujeito, que sua esposa mencionava, era noventa por cento do seu marido mesmo. Tudo isso com seriedade e verdade. Noventa por cento daquele sujeito era ele. Ele mesmo.

Aqui temos a verdadeira mãe das ilusões, a origem sempre fecunda de preconceitos, que invalida quase todos os nossos esforços para entender o outro.

É óbvio que esse self, em sentido psicológico, não é sempre o mesmo. Cada pessoa tem, no mínimo, dois "selves" (geral­mente muito mais) que poderiam ser denominados:

1. O self habitual. O self público ou manifesto. É o homem do exemplo, dentro de casa, que sabe dis­tinguir Corot de Dali, Beethoven de Bach e assim por diante. Aquele "self" que diz a todos que o de­sejam ouvir, que é casado com a mulher mais dedi­cada e mais inteligente, a melhor do mundo.

2. O self não-habitual. O self oculto ou latente. É o homem do exemplo, ainda dentro de casa, que foi evocado por sua esposa: "Quantas vezes vai encon­trar-se ainda com esse sujeito?" O homem que almo­çara prazerosamente com o colega.

O self não-habitual ocupa um lugar maior na vida total do homem desse exemplo do que o self habitual. Eu diria no­venta por cento, o que apenas quer dizer: muito mais do que o lugar, avaliado em dez por cento, ocupado pelo "self" habitual. Mas os algarismos enganam; e as palavras também. Na fábrica o segundo "self", que foi chamado não-habitual, é o self habitual. Em casa, é justamente o contrário. Em casa, a parte chamada não-habitual é realmente não-habi­tual; geralmente até está ausente. Não tem vez. Não se deixa ouvir. Está de lado, visto que o homem não consegue total­mente deixar de ser diretor da fábrica. Isso se evidenciou no incidente mencionado.
Para evitar confusão de palavras, teria sido melhor falar em self-fábrica e self-casa. Os termos self habitual e self não­-habitual, porém, foram escolhidos de propósito, para tornar claro que o oculto, o latente, isto é, em terminologia antiga, a pessoa inconsciente, somente é inconsciente em um deter­minado contexto, em determinado ambiente. Em outro ambiente, o consciente do primeiro ambiente pode tornar-se inconsciente.

O inconsciente, para quem quiser manter esse termo, não existe fora de qualquer contexto. O inconsciente é inconsciente dentro de um determinado contexto, dentro de uma determinada relação. Em uma outra re­lação ou em outro contexto, o mesmo inconsciente é consciente. E vice-versa.
Vejamos agora, mais de perto, o incidente do casal, porém de um ponto de vista fisiológico.

O incidente visto mais de perto, sob o ponto de vista fisiológico

Quando a mulher, após um momento de silêncio, disse: "Quantas vezes vai encontrar-se ainda com esse sujeito?", o homem levantou os olhos do jornal com um movimento brusco. Fixou a mulher atentamente, enrijeceu os músculos em torno da boca e enrubesceu um pouco. Sua respiração falhou e sentiu uma sensação de sufocamento – houve real contração dos músculos da garganta. A contração muscular deslocou-se ao longo do esôfago, causou uma cãibra no piloro, e esse espasmo, por sua vez, causou um peristaltismo anormal desde o intestino delgado até o reto do cólon. Se fosse possível fazer uma observação microscópica das diver­sas funções internas do organismo durante o incidente, notar-se-ia, com certeza, que diversas glândulas também mostravam anomalias. Apresentar-se-ia o seguinte quadro clínico: as glândulas salivares parando sua função; as glân­dulas mucosas do intestino grosso intensificando sua função; as cápsulas supra-renais lançando maior quantidade de seus hormônios na corrente sanguínea; o sistema vascular, rece­bendo uma modificação tal, que poderia causar um aumento de pressão. Enfim, a fisiologia do homem foi totalmente transformada por uma única pergunta da esposa.
Vejamos o que aconteceu depois.

O olhar forte e agressivo do homem mudou-se, devagarzinho, no olhar de costume, em­bora um pouco flácido. Os lábios tensos se relaxaram, dei­xando a marca de um leve cansaço. O rubro do rosto foi substituído por uma ligeira palidez. A respiração voltou, mas ficou um pouco mais ligeira do que anormal. A sensa­ção de sufocamento não se afastou o suficiente para poder dizer sem rouquidão: "De vez em quando." Será que a es­posa notou? Quem sabe ela tenha perguntado: "Está res­friado?" Talvez ele tenha respondido: "A garganta está um pouco inflamada." Seja como for, aos poucos a fisiologia restabeleceu-se. Um processo que durou diversas horas. Isso se comprovou pelo cansaço que o homem sentia e que não o deixou à noite, bem como pela falta de apetite. Poderia ter-se queixado de dores, dor de cabeça, dor nas costas, que são queixas famosas em consternações desse gênero. Impo­tência poderia ter-se apresentado naquela noite. Um sonho, e podemos imaginar de que espécie.
A pergunta que se apresenta, e que exige uma resposta, é: Qual é a natureza do cansaço, da falta de apetite, da dor etc.? Eis a resposta, segundo Sullivan:

A natureza de uma queixa de origem psíquica. A natureza do sintoma

Quando o homem do exemplo levantou os olhos brusca­mente para a esposa, seu olhar estava carregado de agres­sividade. Naquele momento de agressividade, ele era totalmente: diretor de sua fábrica, amigo do colega com quem almoçara, isto é, a pessoa não-habitual, oculta, latente em casa. A pessoa latente tornou-se patente por um mo­mento. Mas isso não ficou assim, e nem podia ficar, se o homem quisesse manter a situação habitual em casa, seu matrimônio. Assim, voltou atrás, para seu estado habitual em casa. Mandou seu self-fábrica para fora. Forçou uma reviravolta. Aliás, essa não lhe custou muito, realizando-se quase por si mesma, pois se encontrava em casa. Estava sentado em uma poltrona, com um aperitivo ao lado, colocado aí por uma pessoa dedicada. Não tinha outra saída. Por isso, a reviravolta deu certo, mas não totalmente. Ficou cansado. Seu cansaço provou que sua pessoa não-habitual em casa não se afastara totalmente. Se o homem não tivesse sentido o cansaço (nem a sonolência etc.); se, portanto, tivesse ficado completamente igual ao estado antes da observação da es­posa, teria praticamente esquecido sua pergunta. Ou, se lhe perguntasse qual fora a pergunta da esposa, de boa fé teria suavizado a mesma no sentido de:

"Vocês se encontram muitas vezes?" O não-habitual, que por um momento fora em casa, teria se tornado novamente não­-habitual – inconsciente, reprimido, na terminologia clássica. Teria mandado o diretor, que não tinha que ser em casa, com tudo o que lhe pertencia, de volta para sua fábrica. Mas isso não aconteceu com o homem do exemplo. Manteve ambos. Tornou-se novamente o esposo e continuou o diretor em casa. Esse artifício, ele o conseguiu, transformando a agressão do não-habitual, que fora por um momento em casa, no cansaço do habitual em casa. O diretor foi-se em­bora, mas deixou sua influência em forma de cansaço no esposo.
Em síntese.

É possível manter dois "social selves" antagô­nicos, contanto que manifestações características de um dos dois, as quais servem assim de prova e são, por essa razão, perturbativas, sejam mudadas em não-características, neu­tralizantes, tornando-se manifestações que distraem (ou enganam) o outro.

O sintoma

Até aqui tudo é ainda normal. O incidente ocorrido com o casal pertence ao grande grupo de eventos que ocorrem com pessoas psiquicamente normais, não-neuróticas. É apenas um exemplo. Mas é claro que o raciocínio, usado na explicação, pode ser usado imediatamente para a explicação de incidentes anormais, neuróticos. Aqui deve ser suficiente demonstrar isso, com uma nova definição do sintoma neuró­tico. O sintoma neurótico, assim é a nova descrição, é o preço que o sujeito paga pela manutenção de (no mínimo) dois "social selves" extraordinariamente antagônicos, que são por isso levados a seriíssimas contradições. Ou, com outras palavras: o sintoma neurótico é o preço que o indivíduo paga pela manutenção de (no mínimo) dois signíficant others antagônicos, irreconciliáveis, inimicíssimos.

O preço, que o homem do exemplo teve que pagar para manter em sua casa os dois signifícant others antagônicos, sua esposa e seu colega, foi o cansaço.

De que maneira o paciente pode livrar-se do sintoma, isto é, da duplicidade, do antagonismo hostil entre os signíficant others? Há uma só resposta. Mudando o sentido dos signifi­cant others de tal modo que deixem de ser inimigos um do outro. Na vida concreta, isso quer dizer que os significant others – da pessoa em questão – devem aprender a se entenderem mutuamente. Vale a pena examinarmos isso um pouco mais de perto.

Parataxe e psicoterapia

Suponhamos que o homem do exemplo tenha que assimilar incidentes da mesma natureza, cada vez mais numerosos e mais violentos. Conseqüentemente, poderá abandonar o campo da normalidade e ir parar na patologia. O cansaço incidental poderá transformar-se em cansaço permanente. O cansaço permanente poderá intensificar-se tanto que o trabalho se torne impossível. Ou então, desenvolver-se uma dor de cabeça contínua, para a qual não existe remédio, ou uma dor contínua, nas costas, que leva à invalidez, ou uma insônia permanente, que estraga toda a vida, ou uma falta de apetite permanente – ou uma impotência contínua, que não pode deixar de causar grandes preocupações. – É claro, ha­vendo tais – sintomas, que deve ser levada em consideração a possibilidade de tratar-se de uma doença corporal, da presença, o que provavelmente sempre ocorrerá, de uma base constitucional e sensitiva, de existir um defeito físico em si insignificante, mas que serve de "corpo de delito". Aqui, porém, apoiamo-nos na suposição de que os sintomas são a conseqüência de um antagonismo, levado até o extremo, de dois significant others, que o homem – agora paciente ­mantém: sua esposa e seu colega. O que o homem deverá fazer?

Chega com sua queixa ao clínico geral. Este faz perguntas, mas a nenhuma delas o paciente dá uma resposta relevante. O motivo é porque o paciente está diante do clínico assim como habitualmente – em casa. O profissional não chega a ver o diretor. Este será mostrado pelo paciente ao seu colega, em cuja presença poderá ficar livre do cansaço, como que por um toque mágico. Isso, aliás, não precisará impressioná-lo, visto que naquele momento será dominado pela agressivi­dade.

O clínico geral examina o paciente, mas não encontra nada. Envia-o a um especialista, endocrinologista ou neurologista, mas também esses não encontram nada. Finalmente, o mé­dico manda o paciente a um psicoterapeuta. O paciente vai sem muita convicção. Não espera muito do psicoterapeuta. Ele só está cansado.

O psicoterapeuta faz muitas perguntas, mas também não encontra nada. O matrimônio está bom, diz o indivíduo can­sado, está até excelente. O paciente fala a verdade. Seu cansaço é a prova dessa verdade, é o preço da manutenção da fábrica e da esposa. Poderia falar diferentemente do ma­trimônio, mas só se não estivesse cansado. Acha-se diante do psicoterapeuta com o sintoma cansaço. Como é que o psi­coterapeuta ficará
sabendo o que seu paciente tem?

Primeiro esta observação.

O psicoterapeuta nunca ficará sabendo o que o paciente tem, enquanto este mantiver sepa­radas as duas significant persons, ambas na sua forma anta­gônica, hostil. Com outras palavras: se o paciente mantiver fora do consultório do psicoterapeuta o diretor duro e explo­sivo, o homem de agressão que ele é e fica sendo, o psicote­rapeuta nunca saberá o que é que aflige o homem, quando se queixa de cansaço.
Em segundo lugar.

O psicoterapeuta também não ficará sa­bendo o que seu paciente tem, se este relegar definitiva­mente um dos dois signifícant others antagônicos e inimi­císsimos. No caso de nosso paciente, isso significa:

1. Se o paciente afastasse de sua vida, definitiva­mente, a significant person que é seu colega (com todo o seu círculo de conhecidos sem cultura), seu cansaço desapareceria sem que o psicoterapeuta che­gasse a entender algo do restabelecimento do pacien­te. Só que o paciente, "de modo inexplicável", deixa­ria de ser, na psicoterapia, o diretor. O matrimônio continuaria excelente, como o era antes do trata­mento, de acordo com a opinião sincera do paciente, comunicada no início.

2. O paciente poderia fazer desaparecer de sua vida a outra significant person, que é a esposa (e todo o círculo de seus conhecidos cultos). Também nesse caso, seu cansaço desapareceria, sem que o psicote­rapeuta soubesse o por quê. O matrimônio, porém, teria fracassado "de modo inexplicável". A direção da fábrica continuaria tão comercial como era antes do tratamento, conforme a opinião do paciente, silenciada no início.
Suponhamos que nenhuma dessas possibilidades se realizem, e nosso ponto de partida seja o fato de que o paciente está fazendo um tratamento psicoterapêutico, por causa de um cansaço que não se baseia em nenhum defeito físico ou fisio­lógico. Para o psicoterapeuta, isso significa que o paciente vive em parataxe; só não é claro, para ele, qual seja a para­taxe. O paciente, porém, não poderá evitar que, vez por outra, seu concomitante se manifeste. Isso acontecerá no ato falho e no sonho. Sonho e ato falho são (podem ser) manifestações diretas de um concomitante significante paratáxico. A tarefa do psicoterapeuta é discernir tais mani­festações. A finalidade do tratamento é que também o pa­ciente, a seu modo, aprenda a discernir essas manifestações e, principalmente, a utilizá-Ias.

O que nesse processo, ainda sempre com respeito ao mesmo paciente, acontece com o matrimônio, não se pode prever. Tampouco está claro o que acontecerá com o paciente como diretor. Será necessário que também a mulher fale com o psicoterapeuta, e até mais do que uma vez. Será necessário que homem e mulher juntos falem com ele. Será necessário que nasça uma outra relação entre o casal. Será necessário que nasça outra relação entre a mulher e o colega, esses dois significant others.

Não há dúvida de que se obteve o melhor resultado, quando o homem perde o cansaço, sabe manter seu matrimônio e continua diretor da fábrica. Se continua ou não a comprar, de vez em quando, um quadro precioso, ainda não se sabe. Que sua esposa pode continuar a permitir-se o luxo de não saber absolutamente nada sobre o trabalho de seu marido, está fora de cogitação. Se o casal mudar nesse sentido, se o homem, conseqüentemente, não é mais aborrecido por "sig­nificant persons" hostis, então poderá surgir o momento em que a mulher convide o colega do esposo para uma refeição. Eis que ela oferece um aperitivo a ambos e diz: "Vocês se encontram muitas vezes?"

* * *

Comparando-se a explicação paratáxica do conflito humano geral e do conflito neurótico, dada neste breve artigo, com a explicação que figura no esquema consciente-inconsciente de Freud, evidenciam-se três pontos de diferença, que se relacionam entre si.

1. A explicação de Freud é simples; a de Sullivan não

Freud interpreta o conflito como um conflito subjetivo ou intrapsíquico, isto é, como um conflito entre campos subjetivos, separados e dominados por princípios diferentes, que existem dentro do sujeito. Sullivan interpreta o conflito, neu­rótico ou não, como um conflito entre pessoas reais, domi­nadas por princípios ou leis que não são diferentes. Parece ser mais difícil dar uma descrição concludente dos eventos humanos, mantendo-se a realidade perceptível e acessível, do que tomando como ponto de partida campos inconscientes e inacessíveis existentes no indivíduo. O paradoxo é apa­rente e será eliminado, lembrando-se que os campos incons­cientes foram providos, arbitrariamente, com tais qualidades, que a explicação do conflito surge harmoniosamente dos mesmos.

2. A explicação de Freud é dada como devendo aceitar-se; na explicação de Sullivan cada um é convidado a julgar

A explicação de Freud termina cedo ou tarde (em geral cedo) no inconsciente, isto é, em uma camada da personalidade que se subtrai ao controle (o processo primário sirva de exemplo). Deve-se aceitar a explicação – com a leve ameaça de que a rejeição demonstre uma falha de natureza neuró­tica. A explicação de Sullivan não termina no incontrolável e pode ser seguida, palavra por palavra, de modo crítico. O leitor psi é como que convidado a dar, cada vez de novo, sua aprovação. Se isto não lhe for possível, então a explicação falhou – supondo que o leitor psi saiba julgar inteligentemente e inclua no seu julgamento a leitura dos escritos de Sullivan. Poder-se-ia dizer: a explicação de Sullivan não é autoritária; a explicação de Freud é paternalista. Afinal, a explicação de Freud originou-se em uma época paternalista. Isso conduz ao ponto 3.

3. A diferença entre a explicação de Freud e a de Sullivan é, principalmente, uma diferença entre dois períodos históricos

A explicação de Freud pertence aos decênios em torno de 1900. A explicação de Sullivan é de quarenta anos mais tarde, e está também de acordo com a vida de quarenta anos depois. A explicação de Freud deve ter sido conve­niente para seu tempo. É de crer-se que a geração de Freud, mais do que a geração de Sullivan, vivia a partir do desco­nhecido e, por isso mesmo, terá tido mais inclinação a aceitar opiniões "desconhecidas e pré-moldadas".

Em nossa época, a vivência a partir de uma profundidade desconhecida torna-se cada vez menor. Isso se evidencia, mais uma vez, na explanação de Sullivan. Poder-se-ia per­guntar se a explicação de Sullivan ainda pertence à psico­logia profunda. Freqüentemente, encontramos nela restos de verdadeira psicologia profunda. Sua doutrina como tal, porém, não segue a índole dessa psicologia..
Sullivan encerra a era da psicologia profunda.

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