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Emoções e Política – Possíveis Relações

Tanto se tem falado do caso, tantas coisas vêm sendo ditas, e refiro-me a comentários de psicanalistas, que acabei formando uma idéia eu próprio. A RedePsi encomendou uma pesquisa de opinião, e eu dei os meus palpites. Poucos dias depois o meu ‘estômago inconsciente’ digeriu e assimilou uma série de idéias novas, e me permitiu formular alguns pensamentos que me ocorriam antes de forma obnubilada. Compartilho com vocês essas reflexões, mais para contribuir que para concluir o debate
Dos anões do orçamento e do 'valerioduto' aos desmandos mais atuais, apenas para demarcar um período específico, a indignação popular, embora muda, vai se avolumando. Por saber que nada pode fazer, o homem do povo engole e finge que esquece. Denega, como se diz. É claro que ele sabe, mas sabe ainda melhor que não poderá agir a partir disso. Ainda assim, a ira se acumula. Cada crime contra o povo ou contra alguém do povo – perpetrado seja por quem for, pelos meios que forem, da maneira que for, provavelmente fica estocado na subconsciência popular – que vai inchando, inchando, até encontrar um vazadouro por onde escoar.A meu ver, o pai e a madrasta da menina morta recentemente forneceram esse vazadouro. A menina – vítima inocente e indefesa de adultos inescrupulosos e violentos – é todos nós. Ou melhor: Nós todos somos ela, de algum modo. O que vejo nessa incrível comoção popular – gente largando o emprego para vigiar mais de perto os passos dos possíveis assassinos, gente fazendo vigília nos lugares por onde eles deverão passar, gente apedrejando veículos que os irão transportar, e assim por diante – é algo que a psicanálise chama de identificação.
Para mim, o povo movido por essa santa ira está pura e simplesmente identificado com a pobre menina. Ela é o seu retrato emocional. Ela é o rosto que eles vêem na figura que os representa durante um sonho. Ela é a sua ‘menina dos olhos', ou a ‘alma de sua alma', como dizem os líricos. Ela é o seu retrato na carteira da identidade interior. Não aquela que exibimos para os outros, aquela que acalentamos e consolamos lá dentro do peito, quando a sentimos sofrer.
O desamparo radical do homem – e não só em seus tempos de infância – está personificado nessa menina. Aqueles que dela deveriam cuidar – com todo o peso que Heidegger deu a esse verbo – a mataram. Melhor: a assassinaram. Não foi a sangue frio, está bem. Não, não foi um crime premeditado e friamente consumado. OK. Mas e se foi a sangue quente é melhor? Por que? A famosa legítima defesa, coisas que fazemos quando o sangue ferve porque nos vemos perante uma ameaça mortal, só merece esse nome nessa circunstância específica. Se a ameaça não é mortal, a defesa que leva a matar não é legítima. E se a ameaça é, na verdade, nenhuma, então nem se trata de defesa. É ataque mesmo, e por isso assassinato.
A brutalidade se justifica diante de uma outra brutalidade. Mas que brutalidade é possível a uma criança, a uma menina, a uma pequena menina de seis anos de idade? Que justificativa apresentaria o casal suspeito para esse ato tão violento? Não, não há justificativa. Nenhuma. Conclusão: eles não ‘mataram' a menina. Eles a assassinaram.
Na versão original da Bíblia, a sabedoria antiga já tinha decidido que há diferença entre os dois atos. Nos Dez Mandamentos da Bíblia Hebraica, o Velho Testamento, originalmente não está escrito, como ficou nas traduções posteriores para as várias línguas, ‘Não matarás' – lo taharóg. Está escrito ‘Não assassinarás' – lo tirtzáh. Explícita e inequivocamente.
Assassinar, então, é tirar a vida sem motivo, sem justificativa, sem explicação redentora. É permitido, na versão original da Bíblia, matar um assassino que vem nos matar: ‘Aquele que acorda para te matar, madruga e mata-o,' seria uma das traduções possíveis do versículo. Mas como poderia essa menina matar alguém? Como poderia ela ser sequer suspeita de desejar tal coisa? Que ameaça ela teria representado para aquele pai e para aquela madrasta, a ponto de eles se verem compelidos a adiantar-se e matá-la?
Essas considerações parecem gratuitas, mas não são. Tenho certeza de que no imaginário popular essa questão foi intensamente debatida, e a conclusão não poderia ser outra: quem fez isso não é humano, é monstruoso. No mínimo é um monstro. Despejar tamanha raiva sobre uma frágil e indefesa criança é algo ante o que até os bandidos mais empedernidos recuam horrorizados. Principalmente se a criança em questão for alguém de sua própria família. (As exceções a isto – e ocorrem – apenas confirmam a regra.)
O que o povo deve ter sentido nesse episódio é que aqueles que foram capazes de perpetrar um crime desse tipo seriam capazes de fazer qualquer outra coisa com qualquer outra pessoa. São seres movidos por aquilo que, desde cedo, a maioria absoluta de nós aprende a controlar, no melhor dos casos, ou a reprimir, no pior. Estou falando daquilo que chamamos ‘onipotência'. A maioria de nós chega ao fim da infância com a consciência bem clara de que não se deve deixar a onipotência solta – ela é muito perigosa, ou para si ou para os outros. As experiências mais tardias do final da infância mostram a todos nós que não devemos nos permitir tudo e qualquer coisa. Muitas vezes porque já estamos acostumados a ver no mundo externo um lugar razoável, onde dá para viver e que não vale a pena estragar, e às vezes porque vemos no mundo externo um lugar terrivelmente vingativo, ao qual não se deve provocar. Seja como for, poucas são as pessoas que deixam de aprender essa lição. Isso, já dizia Freud, nos deixa um tanto chateados, porque nos sentimos tolhidos e saudosos da liberdade (quer dizer, da impunidade) da primeira infância. Mas como sabemos, por vermos crianças pequenas, que afinal elas não podem fazer um mal tão grande, nos consolamos com a perda dessa incrível liberdade, porque era liberdade para quase nada.
Mas algumas pessoas não são assim. Algumas não exatamente aprenderam essa lição, apenas fingiram tê-la aprendido. Elas agem a partir da onipotência sempre que não há ninguém olhando. Esses são os bandidos. E há outros que levam tal coisa aos extremos da total ausência de limites. Nós os chamamos de ‘loucos furiosos'. E há também aqueles que cometem crimes como esse de agora. Como conceituá-los? Não sei. Ao menos não no momento. O que sei é que o povo – a gente simples que vive por aí – e que é a maioria, sente na carne que ali houve algo fora do comum. Ali a capacidade de agir onipotentemente foi além dos limites suportáveis. Alguém ali fez algo que nenhum ser humano se atreveria a fazer – assassinar uma criança totalmente indefesa, principalmente porque confiava naqueles que o fizeram. Não foi só um ato de suprema crueldade. Foi também um ato de suprema covardia. Judas tornou-se tristemente famoso exatamente por isso: porque entregou à morte alguém que nele confiava. O casal suspeito do assassinato aparentemente fez algo do mesmo gênero, só que neste caso agora ainda por cima tratava-se de uma criança pequena.
Por isso eu disse, um pouco antes: O desamparo radical do homem está personificado nessa menina. E todos os que se sentem desamparados, de um ou de outro modo, por uma ou por outra razão, seja por maus tratos recebidos da família, seja por maus tratos cometidos pelas autoridades, certamente viram nela um ícone, uma imagem fortemente marcada de seu próprio sentimento de desamparo.
Claro, ninguém está consciente desse fenômeno. E não estou procurando ‘interpretar' o sentimento popular. Minha intenção é apenas identificá-lo, e entendê-lo. Esse casal acusado do crime, se for condenado, certamente pagará por muitos outros crimes – aqueles cometidos por parentes, ou os cometidos por vizinhos, ou por desconhecidos, ou mesmo os que mencionei no início – os crimes cometidos pelos próprios governantes. A relação entre um homem do povo e seus governantes é semelhante à que existe entre uma criança e sua família, ou entre ela e adultos desconhecidos: trata-se de uma relação assimétrica, onde um lado detém um poder absolutamente maior que o do outro. A vítima nada pode fazer contra o criminoso. Nem sequer há a possibilidade de que a situação se modifique e um dia vítima e algoz se vejam frente a frente, ou ambos desarmados ou agora com a arma na mão da vítima anterior. Não, nem essa hipótese é possível. (Na Itália de Mussolini isso aconteceu, e na Romênia de Ceacescu também, mas novamente, são exceções que confirmam a regra.) O que temos, então, é uma situação de desamparo radical. O casal, nesse caso, esse estranho casal, na verdade não tão estranho assim, está recebendo sobre sua cabeça a santa ira de uma multidão de ex- ou recém-desamparados, que nada puderam fazer contra quem os agrediu antes, nem nada podem fazer contra quem os agride agora. Mas contra o casal, sim, é possível fazer alguma coisa. Enquanto estiverem presos, ao menos. E se forem soltos, eu não apostaria na sua sobrevivência: eles se verão caçados por um grande número de adultos sedentos por vingar a criança desamparada que foram, um dia, ou de cidadãos espezinhados, mais recentemente, agora que têm a chance de fazê-lo. E não, não estou nem por um momento temendo, ao dizer tais coisas, pela segurança do casal. A não ser que se comprove terem sido outros os perpetradores do crime, e que fique claro que as suspeitas contra eles são infundadas, o que posso dizer, quanto à possibilidade de, se forem soltos, virem a ser atacados por multidões furiosas, é: Bem feito! Quem mandou serem como são? O limite da onipotência é a catástrofe, vocês não sabiam? Pois fiquem sabendo agora. E a impunidade, felizmente, não é algo tão fácil de alcançar. (E de novo, apesar das exceções que confirmam a regra.)

Mas o que dizer, então, dos outros que ficaram impunes? Os parentes, os molestadores em geral, os funcionários públicos que, parafraseando o general Lott, agem na vida pública como se estivessem na privada? Eu não sei. Mas gostaria de saber. E gostaria de descobrir, um dia, que o povo não tem memória tão curta quanto parece, e que nem todas as suas mágoas são esvaziadas na cabeça dos bodes expiatórios ocasionais, por mais que estes tenham merecido a parte que lhes coube nisso tudo.

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