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Escola Suíça de Psiquiatria – parte I

Meu prezado leitor psi, nos seis anos de Pós-Graduação em Psiquiatria que fiz pela Europa, ouvia com freqüência dos mestres não-suíços da área, dizerem que a Suíça era uma terra de grande hotéis (rede hoteleira ligada às estações de esqui pelos Alpes), de grandes bancos (as famosas contas numeradas) e mais nada. Naturalmente, uma brincadeira de mau gosto para com a psiquiatria que vinha da Suíça.

Entretanto, depois de Eugen (Eugênio) Bleuler a imagem desta psiquiatria mudou totalmente. Bleuler foi professor de psiquiatria de inúmeros psiquiatras e psicanalistas de renome internacional, e, pela sua Clínica de Burghölzli, em Zurique, todos eles passaram como estagiários fazendo suas famosas teses orientadas por E. Bleuler.

O Tratado de Psiquiatria de E. Bleuler é, ainda hoje, uma das melhores peças da área. O suíço Bleuler nasceu um ano depois de Freud, portanto em 1857, e faleceu no mesmo ano que ele, 1939. É bom lembrar que Eugen foi quem batizou, em 1911, o termo esquizofrenia, definindo esta doença de maneira precisa. Entretanto, o conceito de esquizofrenia vem, até hoje, sofrendo tantas revisões, que acabou se transformando na grande incógnita da psiquiatria.

Com Bleuler nasce o debate, que já se tornara clássico sobre o papel dos fatores físicos correlatos na gênese dos distúrbios psíquicos, e que le­vanta uma das questões mais fundamentais em psi­quiatria. A simples conjunção das palavras "psico" e "orgânica", pode ser suficiente para reativá-Io, antecedendo a Filosofia da Mente que só nasceria para valer em 1949/50.

Entretanto, é em uma perspectiva essencialmente clínica que procurarei situar a questão. Com efeito,

qualquer que seja a postura teórica de cada um quanto à respectiva importância dos fatores orgânicos e psíquicos na patogênese dos distúrbios mentais, qualquer clínico psi reconhece o interesse, mas também a dificuldade de um diagnóstico de organicidade cere­bral, notadamente em um estágio precoce de sua evolu­ção, enquanto ela se traduz, freqüentemente, apenas por manifestações psíquicas pouco específicas e enganosas.

Aqui está a imensa oportunidade do profissional psi firmar o valor de sua presença como tal, quando, apenas por sintomas psíquicos, antecipar por meses a instalação de um processo, geralmente grave, de uma doença orgânica, principalmente da neurologia. Desde tumores malignos, passando por processos metabólicos e, por fim, chegando aos transtornos toxi-infecciosos, como, por exemplo, a AIDS.

Em reação às perspectivas organicistas do século XIX, a psiquiatria francesa contemporânea é pou­co dotada de instrumentos conceituais e nosológicos claros e operatórios na clínica, para a abordagem dos estados intermediários situados na fronteira dos domínios distintos da neurologia e da psiquiatria.

Nessa perspectiva, os trabalhos das escolas ale­mãs e anglo-saxônicas se afiguram mais frutíferos, e a noção de síndrome psico-orgânica crônica, tal como foi descrita por Eugen Bleuler em 1916, pareceu-nos a mais apta a iluminar este estudo, na medida em que permite compreender melhor os quadros psiquiátricos amiúde complexos e atípicos que se podem encontrar nos sujeitos que apresentam uma desordem orgânica cerebral.        

Essa reflexão clínica pareceu-me ainda mais digna de interesse na medida em que a riqueza da sinto­matologia psico-orgânica afirma-se ainda mais na prá­tica psiquiátrica atual, que se vê dotada de meios cada vez mais precisos, em especial pelas neuroimagens funcionais, para objetivar até mesmo um leve comprometimento cerebral. Examino, de imediato, como definir a sín­drome psico-orgânica.

Definição da síndrome psico-orgânica crônica

Antes de retomarmos a definição que E. Bleuler deu à síndrome por ele descrita, convém precisar al­gumas das noções atualmente utilizadas quando se aborda o problema dos distúrbios mentais de causa orgânica.

O termo distúrbios "orgânicos" revela-se com­plexo de analisar e podemos dar-lhe pelo menos duas definições: pode-se tratar seja de distúrbios psíquicos de etiologia orgânica, física, em oposição aos de etio­logia psicogênica, seja de distúrbios acompanhados por lesões cerebrais objetiváveis, em oposição aos dis­túrbios "funcionais" sem alteração cerebral identificá­vel e cuja etiologia não podemos presumir, quer seja orgânica ou psicogênica. Como observa Manfred Bleuler, filho de Eugen, somente esta segunda acepção do termo "distúr­bios orgânicos'" pode, no estágio atual de nossos co­nhecimentos, ser útil no plano clínico.

A noção de síndrome psico-orgânica pode ser definida como o conjunto dos distúrbios mentais correlatos a uma alteração difusa da função do tecido cerebral.

É clássico distinguir, além disso, a síndrome psico-orgânica aguda, quando o processo orgânico evolui de maneira brutal e rápida, e a síndrome psico-­orgânica crônica, em que esse processo é mais lenta­mente evolutivo.

A síndrome psico-orgânica aguda foi inicialmen­te descrita por K. Bonhoeffer, em 1906, que relatou então, sob a denominação "reação aguda de tipo exógeno", o conjunto das manifestações psiquiátricas comuns a diferentes quadros de encefalopatias agudas tóxicas e infecciosas. Essa noção de síndrome psico­-orgânica aguda parece corresponder à de confusão mental, tal como foi descrita por Chaslin em 1895, e que é mais amiúde utilizada na França.

Quanto à síndrome psico-orgânica crônica, que nos interessa mais particularmente, ela foi original­mente descrita por E. Bleuler, em 1916, sob a deno­minação de "síndrome psico-orgânica", M. Bleuler observa, a esse respeito, que E. Bleuler considerou melhor não precisar o caráter crônico dessa sín­drome porque, em sua época, somente as desordens psíquicas associadas com distúrbios difusos e crôni­cos do cérebro eram objeto de estudo aprofundado.

A síndrome psico-orgânica, no sentido estrito de E. Bleuler, é definida como "o con­junto dos distúrbios psíquicos relacionados com le­sões cerebrais crônicas e difusas". Para esse autor, a síndrome associaria distúrbios da memória, do pensa­mento e da afetividade. Assim, ao lado dos distúrbios intelectuais classicamente relacionados com a organi­cidade cerebral, a noção de síndrome psico-orgânica crônica nos conduz a levarmos em consideração toda uma série de distúrbios da afetividade e da personali­dade, de um modo geral, que podem até mesmo apresentar-se de maneira isolada e predominante (distúrbios do humor, do ca­ráter; manifestações neuróticas, psicóticas e pseudo-psicopáticas).

Podemos observar que o termo síndrome psico-orgânica, aguda ou crônica, encontra correspon­dência, na nosologia francesa, com os termos confusão mental e demência. Entretanto, parecem explicar melhor os diferentes quadros apresentados nos estados orgâni­cos, desde as formas clínicas mais atenuadas até as formas mais graves, ao passo que os conceitos franceses não remetem, em sua acepção mais corrente, senão às for­mas extremas desses quadros.

Podemos notar, toda­via, que os termos confusão e demência talvez tenham sido tomados em um sentido menos restritivo por certos autores, e se tornaram agora quase sinônimos das no­ções de síndrome psico-orgânica aguda e crônica; assim, a demência pôde ser definida como uma dete­rioração global do funcionamento mental em seus aspectos cognitivos, afetivos e volitivo-ativos.

Como fizera K. Bonhoeffer para descrever os dis­túrbios característicos das lesões agudas do cérebro, E. Bleuler adotou, para descrever os distúrbios psíqui­cos relacionados com lesões mais crônicas, a noção de síndrome (conjunto sintomático que pode estar liga­do a diferentes etiologias), enquanto numerosos auto­res de sua época, como Kraepelin, tendiam a fazer corresponder a uma causa única uma sintomatologia precisa e particular. Todo o valor dessa noção de síndrome psico-orgânica provém de um fato clíni­co essencial: a semelhança dos quadros neuropsiquiá­tricos, em determinada idade, subtendidos por uma organicidade cerebral crônica e difusa, estando o qua­dro clínico, de algum modo, emancipado da etiologia em causa, que seria apenas um dentre outros fatores responsáveis por variações clínicas no cerne dessa síndrome.

Não obstante, é ainda verdadeiro que sua coesão variará conforme a extensão clínica maior ou menor, segundo os autores, que lhe dermos. E, veremos que é possível opor esquematicamente os defensores de uma concepção mais "restritiva" da síndrome, cuja coesão estrutural é nitidamente afirmada (ainda que em torno de um conceito como o de "demência"), e os partidários de uma concepção mais "extensiva", que, ao que parece, leva mais fielmente em conta sua diversidade clínica, mas a faz perder sua coesão a ponto de podermos legitimamente tentar distinguir diferentes síndromes psico-orgânicas.

É essa a concepção adotada pelo sistema diag­nóstico das DSM, proposto pela Associação Nor­te-Americana de Psiquiatria, que distingue as síndromes demenciais e confusionais, a síndrome amnésica e as alucinações orgânicas, as síndromes deli­rantes orgânicas e afetivas orgânicas, os distúrbios orgâ­nicos da personalidade, as intoxicações e síndromes de abstinência, assim como as síndromes psico-orgânicas atípicas, podendo cada uma dessas síndromes intervir em contextos etiológicos diversos.

Todavia, os dados que autorizam tal fragmenta­ção da síndrome psico-orgânica parecem ainda sufici­entemente aleatórios para que o quadro descrito por E. Bleuler, que foi desconhecido com demasiada fre­qüência, seja sempre atual na clínica psiquiátrica. É à descrição dessa síndrome que nos ateremos a segur.

Descrição da Síndrome Psico-Orgânica Crônica

I. Estudo Clínico da Síndrome Psico-Orgânica Crônica

Levando em conta o enorme número de trabalhos consagrados a esse assunto, não pudemos considerar aqui uma resenha exaustiva da literatura e nos ative­mos, antes, a reconstruir o quadro clínico da síndro­me psico-orgânica, recenseando os diferentes ele­mentos sintomáticos descritos e tentando sublinhar aqueles que parecem, para os diferentes autores consultados, ser os mais fundamentais nessa síndro­me. Examinaremos sucessivamente:

– os distúrbios da atividade intelectual

– os distúrbios da vigilância e da consciência

– os distúrbios afetivos e os distúrbios da perso­nalidade ­

– os distúrbios psicomotores e comportamentais

– os sinais físicos associados.

1. Os Distúrbios da Atividade Intelectual

Os distúrbios cognitivos representam os sintomas psí­quicos mais classicamente descritos nos quadros de organicidade cerebral que constituem a deterioração mental e a demência.

A. Distúrbios da atenção

O enfraquecimento da atenção é assinalado por nume­rosos autores. Consiste na dispersão da atenção espontânea e na ine­ficácia da atenção voluntária, com aumento da "fatiga­bilidade" intelectual e dificuldade de concentração. É freqüentemente encontrado na síndrome psico-orgâ­nica crônica e resulta de diferentes fatores presentes nessa síndrome: confusão e enfraquecimento intelec­tual, mas também fatores afetivos, como a ansiedade.

Todavia, não é específico dessa síndrome, pois diversos distúrbios afetivos, como a depressão, ou o delírio, podem gerá-Io; nesses casos, o déficit da aten­ção relaciona-se, sobretudo com um decréscimo do in­teresse do sujeito pela realidade exterior.           

Mais específica da organicidade parece ser a alte­ração da atenção em sua função antecipatória, que normalmente permite o desenrolar da atividade men­tal e dá à ideação suas possibilidades de modificação, variação e "fluidez". A aderência e a tendência à per­severação, características da organicidade cerebral, como veremos, são expressão dessa difi­culdade de focalizar a atenção, mas também de des­prender-se de um dado atual para considerar o futuro imediato.

B. Os distúrbios da memória

Os distúrbios mnésicos, assinalados em todos os tra­balhos dedicados à síndrome psico-orgânica crônica, são notáveis por sua freqüência e precocidade, e são considerados um dos sinais cardinais dessa síndrome, chegando até, para alguns autores, a constituir uma síndrome psico-orgânica específica. Classica­mente, distinguimos as amnésias e os outros distúr­bios da memória (paramnésias e ecmnésias).

a. As amnésias

Descrevemos as amnésias ante­rógradas ou de fixação e de memorização (classica­mente chamadas síndrome de Korsakoff), nas quais o sujeito esquece à medida que se dão suas experiências.

Existe uma espécie de tempo de permanência, ao cabo do qual tudo é apagado. São acompanhadas por de­sorientação no tempo presente e em lugares novos, pela impossibilidade de evocação e recordação de fatos recentes, e às vezes por confabulação e falso re­conhecimento. Quando o distúrbio cessa, deixa atrás de si uma lacuna amnésica, um buraco na memória, que afeta o período de suspensão da memória. Esses distúrbios são freqüentemente encontrados no grupo que J. Barbizet denomina de "amnésia axial", relacionados com o ataque ao circuito hipocampo-mamilo-tálamo-cingular por diferentes agentes (infecciosos, vasculares, tumorais, traumáti­cos, tóxicos e carenciais).   

Podem-se igualmente observar amnésias retrógra­das ou de evocação, que comportam um esquecimen­to progressivo das lembranças adquiridas, indo desde as mais recentes às mais antigas, remontando no tempo. Sua origem seria, sobretudo cortical – "amné­sia cortical" de J. Barbizet. Essa des­truição do estoque mnésico é acompanhada por dis­túrbios de fixação, pela dificuldade de formar novas associações. Entretanto, na maioria das vezes, são as formas mistas retroanterógradas, afetando simultaneamente a fixação e a evocação, que se observam. Estas são particularmente sintomáticas dos estados psico-orgânicos e pré-demenciais e podem ser quanti­ficadas por provas psicométricas.

Todavia, se são muito evocadores de ataque or­gânico, os distúrbios mnésicos podem ser também observados em sujeitos com estruturas cerebrais in­tactas, e muitos pacientes que relatam distúrbios mnésicos sofrem, de fato, de distúrbios puramente afetivos (amnésias psicogênicas, em particular nos es­tados "assim chamados" neuróticos). De modo mais genérico, todos os distúrbios afetivos podem reduzir a eficiência mnésica do sujeito (em particular pela diminuição do interesse e da atenção). Esse rebaixamento da eficiência pode ser muito difícil de distinguir de uma amnésia orgâni­ca, e os distúrbios mnésicos, ainda que sejam muito evocadores de organicidade, são amiúde insuficientes para confirmá-Ia.

b. Outros distúrbios da memória que não os amnésicos

O ataque à memória em sua estrutura promove uma enorme variedade de distúrbios que têm em comum uma alteração do "tempo vivido". São eles, em particular:

– As paramnésias, em que se misturam o presen­te e o passado, o real e o imaginário na percepção. Elas produzem no doente um sentimento de estra­nheza, de nunca visto (jamais vu), podendo chegar à desrealiza­ção, nos casos em que o presente é demasiadamente separado do passado; ou, ao contrário, quando o pre­sente é patologicamente ligado ao passado, há uma ilusão do já visto (déjà vu), de já vivido. Esses estados são encontrados em certos distúrbios orgânicos cere­brais, notadamente durante os estados oniróides e cre­pusculares da epilepsia temporal, como veremos. Todavia, tais distúrbios podem existir igual­mente em sujeitos psicastênicos e, sobretudo, são di­ficilmente diferenciáveis das experiências paranóides.

– As ecmnésias, que consistem na revivescência do passado, intensa e prolongada, pouco criticada pelo doente, que pode adaptar seu comportamento à situa­ção desse passado por ele experimentado. Esse sinto­ma é encontrado nos estados orgânicos, mas também no início das esquizofrenias tardias e no decurso de estados neuróticos.

C. Os distúrbios da orientação

Trata-se de um sinal considerado característico da sín­drome psico-orgânica crônica pela maioria dos autores. Pode tratar-se de uma perda da orientação temporal e espacial, mas também da orientação alo­psíquica (impossibilidade de identificar os outros, acompanhada por um sentimento de perplexidade e de falso reconhecimento) e até autopsíquica (impossi­bilidade de identificar a si próprio). Essa desorienta­ção, na síndrome psico-orgânica, pode estar relaciona­da seja com um enfraquecimento cognitivo, com a impossibilidade de mover-se corretamente nos esque­mas temporoespaciais, seja com um distúrbio da vigi­lância no quadro de uma síndrome confusional, mas também com os distúrbios mnésicos, ou ainda com uma topo-agnosia, por comprometimento têmporo­-parieto-occipital direito.        

Muitos autores fazem da presença desse sinal um critério diferencial importante em favor da organici­dade cerebral. Cabe assinalar, entretanto, que ele é freqüentemente tardio e só evoca o diagnóstico no caso de lesões já evoluídas. Além disso, os sujeitos que sofrem de distúrbios puramente afetivos podem mostrar um desempenho precário nos testes que visam a precisar a qualidade de sua orientação tempo­roespacial.

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