RedePsi - Psicologia

Dicionário

Actéon (2)

Podia-se supor que agora Cadmo fosse verdadeiramente feliz. Sua cidade de Tebas fora construída. Havia contraído núpcias com Harmonia, filha de Vênus e Marte. Tinha quatro filhas, que se chamavam Ino, Agave, Autonoé e SemeIe. Elas, por sua vez, tiveram filhos que começaram a crescer para se tornarem homens e mulheres. Assim, tudo indicava que Cadmo e Harmonia eram felizes. Contudo, deve-se sempre esperar até o fim, e ninguém pode ser considerado feliz enquanto não es­tiver morto e sepultado.

A primeira razão para a tristeza que se abateu sobre Cadmo e Harmonia em meio a toda essa ventura foi o destino de seu neto Actéon, filho de Autonoé. Nasceram-lhe chifres de veado na cabeça e seus próprios cães de caça beberam o sangue do dono. Se ponderarmos sobre o fato concluiremos que isso deveu-se exclusivamente à falta de sorte, não que ele tivesse feito algo errado. Nada há de errado em cometer-se um engano.

Actéon estivera caçando em uma montanha, e todo o solo encontrava-se manchado com sangue dos animais selvagens que abatera. Era meio-dia e o Sol estava a pino, tornando todas as sombras muito curtas. O jovem Actéon, com palavras delicadas, gritou para seus companheiros que vagueavam por entre as moitas e matagais:

– Amigos, todas as nossas redes e lanças estão molhadas de sangue. Basta por hoje o que já fizemos. Quando amanhã a aurora trouxer de volta a claridade em seu resplandecente carro, recomeçaremos nossas caçadas. Agora Febo se encontra no centro do céu e seus raios parecem rachar o solo. Vamos descansar e apanhar nossas redes amarradas.

Seus companheiros obedeceram e interromperam as ati­vidades.

Havia um vale na floresta, todo coberto de pinheiros e ciprestes pontiagudos. Denominava-se Gargafie e era consa­grado à deusa caçadora Diana. Na extremidade oposta do vale existia uma caverna sombria, não construída especialmente, mas que a natureza fizera com que parecesse uma obra de arte, pois continha uma abóbada natural aberta na rocha primitiva. De um lado vinha o ruído de uma fonte cintilante que borba­rejava da terra e formava uma piscina com margens relvosas. E nessa piscina, quando estava cansada de caçar, Diana costu­mava banhar seu corpo virginal na água transparente.

Nesse dia também, lá estava ela. À ninfa que lhe servia de escudeira ela entregou sua azagaia, a aljava e o arco afrou­xado para segurar. Outra ninfa sustentou no braço o traje que a deusa retirou. Duas outras removeram-lhe as sandálias. Outra, de cabelos soltos, prendeu em um coque as madeixas que caíam pelos ombros de Diana, e outras ninfas encheram seus jarros com água para o banho da deusa.

No instante em que Diana banhava-se na piscina habitual, o neto de Cadmo, tendo interrompido a caçada, pôs-se a va­guear a esmo pela mata desconhecida e chegou ao bosque te sa­grado de Diana. Foi o destino que o conduziu até lá.

Assim que espiou no interior da caverna, toda resplen­dente com o borrifo da fonte, as ninfas despidas, vendo um homem, puseram-se a bater no peito com as mãos e encheram toda a caverna com seus gritos atemorizados. Reuniram-se em torno de Diana tentando encobri-Ia com os próprios corpos, porém a deusa era mais alta que todas, de modo que sua cabeça e ombros apareciam acima delas. Postada ali nua e exposta, ela fez as nuvens enrubescerem, e os raios oblíquos de Sol que as atravessaram eram avermelhados como a aurora. Com as ninfas à sua volta, ela olhou para trás como se procurasse as flechas. Entretanto, a única arma de que dispunha era a água, e, apanhando um pouco desta nas mãos, atirou-a ao rosto e à cabeça do jovem. Em seguida pronunciou palavras profetizando a sina que logo desabaria sobre ele.

– Agora – declarou ela -, diz, se puderes, como me viste nua!

Foi tudo que disse, mas, enquanto falava, fez nascerem chifres na cabeça que ensopara com água; esticou-lhe o pescoço e tornou suas orelhas pontudas; no lugar das mãos deu-lhe cascos; transformou-lhe os braços em longas patas, e cobriu seu corpo com um couro malhado. Fez, também, com que ele ficasse amedrontado. O herói Actéon saiu em disparada, e, enquanto o fazia, assustou-se por estar correndo tão rápido.

Quando chegou a uma lagoa e viu refletido seu rosto modifica­do e os chifres na água, tentou dizer: "Oh, como sou infeliz!", porém descobriu que não conseguia pronunciar as palavras. Ele gemeu (era sua única maneira de falar). Lágrimas rolaram­-lhe pelas faces, embora estas não fossem suas verdadeiras faces. Apenas o cérebro e os sentimentos mantinham-se inalterados. Que deveria fazer? Regressar ao palácio real ou esconder-se na floresta? Sentiu vergonha de voltar para casa, mas, também, temeroso de permanecer onde se achava.

Enquanto ponderava sobre o que fazer, seus cães o viram. Primeiro vieram Pata Negra e Rastejador, o de faro aguçado, ladrando para os outros. Rastejador era um cão de caça cre­tense e Pata Negra nascera em Esparta. Então, velozes como o vento, surgiram os outros, Glutão, Gazela e Montanhês, todos cães de Arcádia, o vigoroso Matador de Corço, Caçador, Tufão, o veloz Voador e Perseguidor. Ainda havia Guarda Florestal, que acabara de ser ferido por um javali, Garganta que era me­tade lobo, e mais de vinte outros ferozes e fortes cães latindo. Toda a matilha, ávida por caça, veio correndo por sobre as rochas e pelo terreno acidentado, arremessando-se através das moitas, como se surgissem do nada.

Actéon viu-se perseguido sobre o mesmo solo onde ele próprio tantas vezes caçara animais. Fugia dos seus cães, por ele próprio treinados, e esforçou-se por gritar "Eu sou Actéon, tendes de me reconhecer. Sou o vosso dono." No entanto, por mais que quisesse, foi incapaz de falar.

Um cão chamado Fuligem foi o primeiro a cravar-lhe os dentes nas costas: depois veio o Gritão e atrás dele o Mon­tanhês que saltou em seu ombro e aí ficou dependurado. Estes haviam saído à retaguarda dos demais, porém tomaram um atalho pelas montanhas e chegaram à frente. Enquanto agarra­vam-se firmemente ao dono, os outros cravaram-lhe as presas no corpo. Logo não sobrava mais espaço em sua pele para novos ferimentos. Ele gemia alto, produzindo um som que, embora não fosse propriamente humano, também não era o som emiti­do por um veado comum. Ele encheu todos os espinhaços das montanhas que tão bem conhecia com seus berros dolorosos, e, pondo-se de joelhos, como alguém que pedisse um favor, olhou silenciosamente em volta para seus perseguidores, pa­recendo prestes a estender os braços para clamar por miseri­córdia.

Mas seus jovens amigos, desconhecendo a realidade dos fatos, continuaram açulando os cães como sempre o faziam. Todos eles olhavam em volta à procura de Actéon e chamavam­-no vez ou outra, sem imaginar que ele se encontrava tão pró­ximo. Ao escutar seu nome, o veado voltava-Ihes a cabeça, mas eles apenas diziam que era uma pena Actéon não estar ali, que estava demorando muito a chegar para ver o espetáculo daquele animal acuado. Na verdade, ele bem que preferiria não estar ali, mas estava. Teria sido muito melhor poder ficar a observar seus cães em vez de sentir-Ihes os dentes selvagens. No entanto, eles o rodeavam, enterrando os focinhos em sua carne, a despedaçarem o próprio dono pensando que o faziam com um veado. Somente quando expirou, todo coberto de chagas, a ira de Diana, a deusa arqueira, aplacou-se.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter