RedePsi - Psicologia

Colunistas

"As Horas"

Trechos de um romance em uma leitura psicanalítica
(Um psicanalista kohutiano “observa” um livro e um filme, e é
em seguida “observado” (a partir só do filme) por um psicanalista winnicottiano.)

Texto original (em letra normal) de Luiz Fernando Gallego
Citações de “As Horas” (Gallego) em itálico.
Comentários (em vermelho) de Davy Bogomoletz
Comentários finais (em negrito-itálico) de L. F. Gallego

Nossa intenção não é a de discutir um livro em sua totalidade, enredo, desenvolvimento, mas apenas fragmentos particularmente interessantes em uma leitura voltada para a realidade psíquica do ser humano.

"As Horas", de Michael Cunninghan, publicado pela Companhia das Letras em tradução de Beth Vieira, é o terceiro romance do autor lançado no Brasil, sendo os anteriores "Uma Casa no Fim do Mundo" e "Laços de Sangue", os quais trabalharam mais explicitamente o tema das novas estruturas familiares pós-nucleares (ou estruturas familiares não-tradicionais). Pela nova obra Cunningham recebeu prêmios tão importantes como o Pulitzer de 1999, reconhecimento mais do que merecido para aquele que é provavelmente um dos mais sensíveis escritores contemporâneos.

O que vai nos interessar aqui é exatamente esta sensibilidade do autor – através do seu talento em usar as palavras – compor frases que conseguem transmitir os estados psíquicos de seus personagens de ficção com uma verossimilhança tal que permite ao leitor identificar-se com muitas daquelas vivências afetivas – ou pelo menos, reconhecer vivências que já pôde apreender em pessoas reais.

É verdade que pelo menos uma das personagens principais com quem ele trabalha em "As Horas" existiu na realidade antes desta re-elaboração ficcional: a escritora Virginia Woolf, cujo suicídio, de fato ocorrido, abre o livro como um "tema" musical que vai sofrer variações nos diferentes instrumentos – os outros personagens que o romance vai expor. (O livro de Cunningham já é em si mesmo uma "variação" de uma das obras-primas de Woolf, "Mrs. Dalloway", que inicialmente ia se chamar "The Hours".)

Mas é óbvio que a "Virginia Woolf" de Cunningham é uma recriação não necessariamente idêntica à Virginia Woolf que existiu na realidade, embora seja plausível como uma Virginia real, tão verossímil como outras pessoas (nós todos), a ponto de podermos identificar (ou nos identificarmos com) as experiências psíquicas pelas quais a personagem passa. Por exemplo, a incomodada admiração que a instável Virginia sente em relação à sua cozinheira, Nelly:

Nelly é ela mesma, sempre ela mesma; sempre grande e corada, majestosa, indignada, como se tivesse vivido a vida toda numa era de glórias e moderação que terminou para todo o sempre uns dez minutos antes de você entrar no aposento [onde Nelly se encontra] (…) Como é que se lembra de ser, como é que consegue, todos os dias e todas as horas, ser tão exatamente a mesma?

O psicanalista que já tenha atendido pessoas com uma vivência de si-mesmas (self) frágil, certamente já terá acompanhado como tais pessoas podem aspirar ser como outros selves que parecem tão seguros e imutavelmente sólidos (mesmo que tais características muitas vezes não passem de manifestações de uma rigidez bruta e cristalizada). A capacidade do autor em colocar verbalmente vivências tão sutis é admirável, embora ele considere (através da personagem "Virginia Woolf") que o livro que se tem na cabeça é sempre melhor do que aquele que se consegue por no papel. (Talvez como muitas vezes nos seja difícil transformar em palavras certos sentimentos próprios, e às vezes mais difícil ainda, aqueles afetos que supomos ter captado em nossos analisandos dentro da intersubjetividade da relação). Aqui vemos claramente como a personalidade regida pelo falso self – que se sabe falso – inveja um aparente “self verdadeiro”, embora essa aparência, como diz você, não passe muitas vezes de “manifestação de uma rigidez bruta e cristalizada”. Mas deve ser por isso que o escravo tanto inveja o poder do senhor, no mito de hegel. O falso self, destituído de vontade própria, incapaz da espontaneidade que transforme a si e aos outros, sentindo-se necessariamente (somente) “ele mesmo”, ou seja, um nada escravo das circunstâncias e do papel que atribui a si mesmo desempenhar, como se fosse uma personalidade verdadeira, é irremediavelmente miserável, a não ser que a tomada do poder por ele realizada seja tão cabal e definitiva, que o verdadeiro self ali soterrado não mais “apite”, e nesse caso temos uma figura como a do criado (anthony hopkins, genial) em “vestígios do dia”. A personagem nelly, neste filme, com sua solidez (rigidez) e sua obediência contidamente insubordinada (o falso self é, por natureza, submisso), está mais para “o criado” (outro ator genial, dirk bogard) que para o criado de “vestígios do dia”, e não é à toa que faz a “virginia” se sentir tão o contrário desse Como é que (ELA) se lembra de ser, como é que consegue, todos os dias e todas as horas, ser tão exatamente a mesma?”

Muito bem lembrados os personagens mordomo e criado desses outros filmes.

Não sei se cunningham leu winnicott, mas tenho certeza de que winnicott leu virginia woolf. Já eu, fiquei c/ impressão que ele leu Kohut. Isso deve se dever à capacidade de apreender a alma humana que os grandes psicanalistas descrevem para nós aprendermos (com um “e” só) enquanto os grandes artistas aprEEndem (com dois “e’s”) intuitivamente. Kohut dizia que os artistas descrevem antes os estados d’alma que os psicanalistas descrevem depois. Aliás, fiquei com a impressão de que agora sim, (nunca li virginia woolf, mas vou correr para ler) consegui compreender de onde winnicott tirou tantas das suas idéias, tão espantosamente diferentes de tudo que escreveram klein e freud, seus dois grandes mestres. Eu diria que winnicott (falso self não lhe faltava) foi estudando a psicanálise clássica enquanto tramava, em segredo, um dia tornar-se capaz de basear a sua psicanálise muito mais nas descrições da alma humana feitas por virginia woolf que no que ele aprendeu com klein e freud.

Há outro trecho em que "Virginia" fala de quando realiza (e em seguida de quando falha) o talento do escritor em captar estados etéreos e verbalizá-los:

...Sente dentro de si um segundo eu quase indescritível, ou, melhor dizendo, um eu paralelo, mais puro. Se tivesse religião, chamaria isso de alma. É mais do que a soma de seu intelecto e de suas emoções, é mais do que a soma de suas experiências, embora corra pelos três(…) É uma faculdade interior que reconhece os mistérios animados do mundo porque feita da mesma substância, e, quando está com sorte, Virginia consegue escrever diretamente, fazendo uso dessa faculdade. O verdadeiro self imaturo em ação. (…) Um dia pode apanhar a caneta e segui-la com a mão que se move pelo papel; num outro, pode pegar a caneta e descobrir que é apenas ela mesma, (a auto-consciência, uma das características do falso self – e neste caso, a expressão significa: “ela não é ela mesma” – há aí uma clivagem entre o eu-observador – um falso sujeito, porque apenas observa, “filma”, não tem o poder do desejo – e o eu-observado, outro falso sujeito, porque está destituído do poder pelo self falso) uma mulher segurando uma caneta, com medo e incerta, sem a mínima idéia de onde começar ou do que escrever. Repito: teria cunningham lido winnicott? Não sei – mas de uma coisa eu sei: winnicott certamente leu virginia woolf. Ele era (quando jovem) integrante do famoso ‘grupo de bloomsbury’ (uma história que ainda hei de desencavar), do qual woolf fazia parte.

E era uma turma mutcho loca… Os Strachey (James e Alix, que editara o Freud em inglês da Standard Edition), Carrington (vc viu o filme com a Emma Thompson?), a Vita Sackeville-West que foi amante da Virginia Woolf, etc etc…

Nosso primeiro grifo busca chamar atenção daquilo que se pode conceituar como um momento em que conseguimos ser empáticos com "aquilo que é inerentemente estranho ao próprio self" (Freud, 1921), enquanto o segundo grifo pontua como, em ensimesmamento, tal faculdade não se realiza. Eu, seguindo winnicott, diria: o primeiro grifo descreve um momento de integração (quando se desfaz momentaneamente o que você chama de splitting horizontal), em que o self verdadeiro assume o poder e se expressa livremente (prova disso é a frase: “não vou mais matar a personagem. Mas agora preciso decidir a que outra personagem matar,” dita pelo personagem virginia lá pelas tantas. O falso self jamais teria essa “coragem”.) O segundo, como já disse, mostra um momento em que o self falso retoma o seu poder (ele tem 70% do “mando do jogo”, como se diz em futebol, e por isso a personalidade de virginia woolf é tão periclitante.)

A necessidade de encontrarmos empatia por parte das pessoas que nos cercam aparece mais explicitamente em outra personagem, quando está refletindo sobre alguém com quem tem dificuldades: …dá vontade de convidá-la a entrar dentro de sua cabeça uns dias para sentir suas preocupações, dores, o medo sem nome… enquanto os efeitos da falta de empatia em alguém carente de um espelho que refletisse (reconhecesse) suas possibilidades adequadamente, encontra-se em outra passagem, quando um enorme esforço artesanal de uma terceira personagem é comentado como "uma gracinha": Ela produziu algo que ficou uma gracinha, quando esperava (é constrangedor, mas verdadeiro) produzir alguma coisa bela. Sim, o espelho, o espelho que lacan descobriu e winnicott levou às últimas conseqüências. A criança só existe porque se vê refletida no rosto da mãe, e (mais adiante isto ficará ainda mais pertinente) quando o rosto da mãe nada reflete, como no caso de mrs. Brown e seu filho futuro poeta, a “cola” de que você fala adiante não adere, fica faltando.

Uma pergunta: o mérito de ter falado em espelho em primeiro lugar não é do Winnicott? Eu ouvi dizer que o Lacan se interessou pelos trabalhos de Winnicott por este aspecto. Kohut também fala do selfobjeto especular. Três autores com todas as suas diferenças devem ter acertado em algo comum a todos nós… (Não, gallego. Lacan falou primeiro na fase do espelho, mas foi winnicott que, inspirado por esse artigo, vinculou depois o “espelho” ao rosto da mãe.)

Chamo a atenção para a perspicácia do autor em colocar, entre parênteses, a vergonha constrangida da personagem frente ao seu self grandioso (que aspira à realização do belo), tal como Heinz Kohut (1971) discute no diagrama 3 de "Análise do Self" a "barreira de recalcamento" das necessidades narcísicas arcaicas não satisfeitas (e recalcadas num splitting horizontal), relacionadas à vivência de rejeição, pela mãe, do narcisismo independente da criança. É aqui que entra o “espelho”, e a formulação de kohut me parece inteiramente compatível com winnicott. Aqui e em outras formulações (Enquanto o splitting vertical do self dá vazão a que a grandiosidade infantil seja exibida abertamente, porque relacionada ao uso narcísico que a mãe terá feito do desempenho de seu filho.) Muito interessante, isto.

Quanto à necessidade de "objetos capazes de funcionar a serviço de necessidades do self" (minha tradução conceitual para o termo selfobject cunhado por Kohut), esta é radicalizada em outro momento do livro, tal como o próprio Kohut fez, ao dizer que o ser humano precisa dos outros desde que nasce (física e psiquicamente incompleto) até a hora em que, ao morrer, precisa segurar a mão de alguém: …será que é você que um dia vai segurar minha mão e presenciar literalmente meu último suspiro, enquanto todos os demais ensaiam, secretamente os discursos que farão no serviço religioso? (Kohut mesmo [1977] já buscara na literatura de Eugene O'Neill uma formulação brutalmente verdadeira: "O homem nasce quebrado; ele vive com remendos; a graça de Deus é a cola". Que bela descrição do que winnicott chama de ‘integração’, só possível – como eu disse acima – se houver o rosto da mãe refletindo (e “totalizando”) o filho.)

Esta "cola" advém muitas vezes de outras pessoas que funcionam como selfobjetos propiciadores de que possamos expressar potenciais que tenhamos mas que estejam ainda apenas virtuais. Em "As Horas", pode-se ler sobre a mesma personagem que almejava o belo e realizou "uma gracinha":

Com o marido presente, fica mais nervosa mas com menos medo. Sabe como agir. Sozinha com [o filho] sente-se às vezes sem que nada a prenda – ele é tão ele mesmo. Quer porque quer com tamanha avidez isso ou aquilo. Chora por motivos misteriosos, tem exigências indecifráveis, lhe faz a corte, implora coisas, ignora sua existência. Parece, quase sempre, estar esperando para ver o que ela fará em seguida. Ela sabe, ou pelo menos suspeita, que outras mães de crianças pequenas devem possuir um mesmo conjunto de regras e, mais a propósito, um constante lado mãe para guiá-las ao longo dos dias passados a sós com uma criança. Quando o marido está, consegue controlar melhor as coisas. Ela vê que ele a vê e sabe, quase por instinto, como tratar o menino com firmeza e bondade, com um descuido maternal e afetuoso que parece fácil. Sozinha com o filho, entretanto, perde o senso de direção. Nem sempre se lembra de como uma mãe deve agir. Como por vezes acontece, no encontro imediato com o filho recém nascido, a mãe falso self (não total) redescobre em si mesma o self verdadeiro, agora identificado no bebê. A onipotência (que o falso self veio destronar) volta a funcionar e se encarrega de permitir a essa mãe intuir as necessidades egóicas do bebê. Assim, a mãe falso self gera um bebê regido por um self mais verdadeiro que o dela, que posteriormente ela não conseguirá “administrar”. O filho, no caso, o poeta richard brown, é um perfeito retrato de um self verdadeiro amputado em algum momento de seu desenvolvimento. Continua verdadeiro, mas continua imaturo. E a mãe, “curada” da preocupação materna primária, em que ela sabia intuitivamente muito bem o que fazer, agora não consegue mais empatizar com o filho, pois o self falso tem isso como característica: não há contato intuitivo entre ele e o outro, apenas um contato intelectual (“saber – ou não – o que fazer”). Só que isto significa que “Ela vê que ele a vê e sabe, quase por instinto, como tratar o menino com firmeza e bondade, com um descuido maternal e afetuoso que parece fácil” Não é verdade, é apenas o funcionamento mais “amarrado” do falso self que, na presença do marido, “funciona”, “cumpre o seu dever”. E quando o autor diz: “ela vê que ele a vê”, revela-se aí toda a tragédia do falso self: o marido a “vê”, isto é, projeta sobre ela um personagem que ele criou (“uma moça tímida, misteriosa, discreta” – isto é, um self frágil que não se posiciona claramente na vida, e que ele toma por “misteriosa, discreta”), como ele a descreve em sua memória, recordando os dias da guerra em que sonhava voltar e casar-se com ela), e ela, por não ter ainda a coragem de largar tudo e ir procurar a si mesma, obriga-se a funcionar direito, para corresponder à imagem que ele dela faz. (foi assim que interpretei a expressão “Ela vê que ele a vê” – como se se referisse ao marido. Se a expressão se refere ao filho, não faria muito sentido, pois se é o filho que a vê nessas horas, por que ela não consegue lidar com ele quando o marido não está por perto?)

No meu entendimento a frase “Ela vê que ele a vê” sugere um esboço de relação da mulher com o marido na função de selfobjeto especular que “estrutura” uma função materna precária que emerge de dentro dela. Sozinha, ela não consegue nem “fazer” nada (“funcionar”) como mãe nem como nada. Procura estruturar-se nos livros, talvez.

Kohut tem uma frase terrível sobre os cuidados parentais: “Não importa o que os pais “fazem”. Importa o que os pais SÃO.”

É evidente que esta mãe não consegue ser suficientemente boa na relação dual com seu filho (frase final do trecho acima), embora possa se estruturar, ganhar forma, em função do olhar continente do marido (primeiro grifo). Na verdade, perto do marido o seu falso self se “organiza”, “dá um jeito em si mesmo”, “toma juízo” e “funciona”. Mas quando o marido não está… O marido, então, funciona como um outro tipo de “objeto estruturador” (diferente do que entendi ser o selfobjeto) O selfobjeto é mais uma FUNÇÃO que o self ainda não desenvolveu. À medida que a relação self – selfobjeto vai sendo internalizada, como corolário, vai se criando uma estrutura nova no self, uma capacidade de SER que não é por mera identificação: a internalização não é também introjeção de um objeto como na teoria kleiniana. É uma internalização de função. E que é “metabolizada” de acordo com as características do projeto nuclear de cada self (“projeto nuclear do self” é um conceito que se aproxima da noção de self verdadeiro) E Kohut ainda fez questão de chamar de “internalização transmutadora” para acentuar que não é uma imitação, mas algo que sofre uma transmutação e provoca uma transmutação. Os franceses preferiram chamar de “internalization mutative”, aproximando a idéia da ‘interpretação mutativa’, UM “outro” diante do qual é preciso “ser alguém”, e isto, no caso da personagem, significa desempenhar o papel de quem ela deveria “realmente” ser (as aspas em “realmente” ficam por conta do fato de que essa é “missão” que o falso self atribui a si mesmo.) Neste caso, discordo da primeira parte da primeira frase. A meu ver, é só na relação dual (primária, inicial) com o filho que ela conseguiu ser uma boa mãe, talvez até boa demais, pois era o seu próprio self verdadeiro imaturo que estava em funcionamento. Quando chega a hora de substituir a preocupação materna primária (“uma fase de doença esquizóide”, segundo winnicott, que dá e passa assim que o bebê começa a “virar gente”) pela preocupação da mãe comum, ela não sabe mais o que fazer, porque fora do momento de onipotência esquizóide ela é um falso self que só sabe funcionar a partir do modelo mental, que jamais consegue empatizar com a naturalidade do bebê. Não é à toa, pois que richard fica marcado por essa parada no desenvolvimento, e passa o resto da vida em busca do ser (self) perfeito que ele desejava tornar-se, capaz de escrever a obra perfeita que ele jamais conseguiu produzir (segundo ele mesmo, no filme).

Os desencontros entre esta mãe e este filho redundam numa fragilização do menino expressa numa comovente cena em que ela pede sua "ajuda" (na verdade, o filho se oferece primeiro para ajudar, numa flagrante tentativa de adaptar-se à mãe, para tentar de algum modo encontrá-la) para fazerem, juntos, um bolo: Ele compreende que deve despejar a farinha na tigela, mas pode ser que tenha entendido mal as instruções e estrague tudo; pode ser que ao deixar cair a farinha cause alguma catástrofe maior, desestabilize algum equilíbrio precário. Quer olhar para o rosto da mãe, mas não consegue tirar os olhos do medidor [onde está a farinha] "Vire a caneca", ela diz. Ele vira, com um movimento apressado, temeroso. A farinha hesita por uma fração de segundo, depois cai.. Cai solidamente, num monte que repete, de longe, a forma do medidor. Uma nuvem maior se ergue, quase lhe toca o rosto, depois some. (…) "Opa", diz a mãe. Ele olha aterrorizado para ela. (o terror de desagradar, e assim perder). Os olhos se enchem de lágrimas. Ela suspira. Por que ele é assim tão delicado(…)? Por que ela tem que ser tão cuidadosa com ele? (…) "Não, não, diz ela, …você fez certinho.” Ele sorri entre lágrimas, de repente orgulhoso de si, quase insanamente aliviado. Tudo certo, então; não foi preciso mais nada além de um punhado de palavras suaves, um pouco de incentivo. Ela suspira. Com delicadeza, toca no cabelo do filho. É deveras impressionante, no filme, o desempenho do menino (richard, o poeta aidético – símbolo dos males dos novos tempos e das “novas patologias”, como as chamam?… Se richard está no livro de woolf (”As Horas” do Michael Cunnigham é uma paráfrase de “Mrs. Dalloway” da Virginia Woolf onde Clarissa Dalloway vai dar uma festa e sai para comprar flores. Seu marido é Richard Dalloway e eles têm uma filha mocinha. Ela beijou (ou foi beijada) por uma Sally na adolescência e guarda esta lembrança como um tesouro. Um psiquiatra chegará atrasado na sua festa porque um paciente se matou: Septimus, um ex-combatente na I Guerra, um poeta que nunca escreveu nada publicado, e que se jogou de uma janela enquanto Clarissa Dalloway comprava flores. À tarde, ela recebe a visita inesperada de Peter, um ex-(ainda)apaixonado por ela que está se divorciando e talvez alimente ilusões sobe reatar com Clarissa Dalloway.

Em “As Horas”, uma homônima Clarissa (no filme interpretada pela Meryl Streep) de sobrenome Vaughn, vive com uma mulher chamada Sally, tem uma filha mocinha nascida de inseminação artificial e beijou o Richard Brown na juventude. Ele a chama de Clarissa Dalloway ou de Mrs. Dalloway, o apelido “colou” e ela colou nele, nunca se afastou dele, por mais que tenham prosseguido suas vidas afetivas com parceiros do mesmo sexo: ela com Sally, ele com o Louis, dentre outros. Ela vai dar uma festa para ele e sai para comprar flores; Louis a visita inesperadamente no meio da tarde. Richard se joga pela janela. A estrutura se repete nas outras histórias: Mrs. Brown recebe a visita da vizinha, Virginia a visita da irmã com os sobrinhos, repete-se o tema das flores e do beijo. No filme, Laura Brown pensa em se matar, “opta pela vida”, mas foge; Virginia acaba se matando quase 20 anos depois de ter escrito “Mrs. Dalolway”) certamente ele não tinha aids, mas talvez sífilis, ou tuberculose. Se foi “inventado” por cunningham, é de tirar o chapéu, principalmente pelo que dele conta você – gallego – logo adiante.) Mas o menino, no filme, é demais. Dá para ver como ele teme horrivelmente a mãe, além de adorá-la. Como ele faz o possível para adaptar-se a ela, já que ela não sabe mais adaptar-se a ele, ele a busca intensamente, como se temesse perdê-la (como de fato a perde, adiante, mas como, mais “de fato” ainda, já a tinha perdido, no desencontro inevitável com o falso self dela), ele passa com os olhos o pavor de não se ver no rosto dela, ele está sempre ali, como ela diz, mas não é como ela diz que ele está sempre ali, e sim ele está sempre ali talvez na esperança de em algum momento captar uma chispa de amor vindo dela (ser visto = ser amado, como diz newman, no livro sobre winnicott que acabei de traduzir para a imago). Ele se agarra a esse “delicado toque no seu cabelo”, como diz o autor, como se fosse o cordão que liga o astronauta flutuando no espaço à nave “mãe”. Ele bebe os seus gestos, não perde nada de seus movimentos, pois ele sabe que, como diz aquele outro filme, a mãe, na maior parte do tempo, “não está ali”, e ele não pode desperdiçar os pequenos instantes em que, que sorte, ela está. Não é à toa que ele sai correndo atrás dela, quando ela vai embora da casa da babá, de carro, para ir se suicidar no hotel. Ele “sabe”, naquele momento, como só as crianças podem “saber”, que não a verá novamente. Nessa cena, ele faz algo que winnicott menciona, en passant: “a menina que não sabe guardar segredo não conseguirá ter filhos, e o menino que não consegue fazer um carrinho entrar no túnel não conseguirá fazer filhos”. O menino brinca (kleinianamente, desta vez, não winnicottianamente, pois está angustiadíssimo, e portanto não se trata de um verdadeiro brincar): ele constrói um túnel sobre uma ponte (que lembra muito as “pontes de madison”, outra obra prima do gênero, com a mesma meryl streep e o muy surpreendente clint eastwood), e faz o carrinho (mesmo modelo que o da mãe, ái cultura inútil…) Passar por dentro dele, sinal de masculinidade prestes a aflorar, mas em seguida destrói o túnel e faz o carrinho cair no abismo…

Uma beleza, tua leitura da angústia do menino e todo este parágrafo acima.

Sobre esta personagem, a mãe, o leitor já fôra informado anteriormente que ela tem dificuldade em sair da cama pela manhã, enfrentar a rotina caseira, perpassada por uma sensação meio onírica, como se estivesse nos bastidores, próxima da hora de entrar em cena e atuar numa peça para a qual não está adequadamente vestida e para a qual não ensaiou como devia. Nunca vi uma descrição mais precisa do falso self consciente de si, isto é, tanto da própria existência quanto da própria falsidade. E winnicott tem uma descrição muito engraçada, pelo lado do avesso, de um colega de quarto na escola (mas talvez fosse ele mesmo, que segundo brett kahr era aparentemente um tanto maníaco na época, talvez para afastar a depressão de ter sido expulso de casa e posto no “colégio interno” das nossas infâncias assombradas…) Que pulava da cama de manhã, dava bom dia para o sol (ou para a chuva), fazia um bocado de ginástica, cantando o tempo todo, e fazendo o seu colega, melancólico assumido, sentir-se ainda mais miserável em sua miséria…) O autor ajuda o leitor a compreender que ela gosta de imaginar (é um dos seus segredos mais cuidadosamente guardados) que ela também possui algum brilho, só um tiquinho, embora saiba que com certeza a maioria das pessoas anda pela vida com semelhantes suspeitas esperançosas crispadas como pequenos punhos, lá no íntimo, sem jamais divulgá-las. (Mais um possível exemplo de manifestação de um self grandioso recalcado e carente de espelhamento que o valide, e por conseguinte, não o deixe envergonhado de possuir – ou desejar possuir – "algum brilho".) Aqui, winnicott diria: mais um exemplo da consciência incipiente que o falso self tem de que existe um outro self, mais verdadeiro, que funcionaria bem melhor que ele, e seria realmente criativo (outra das características do self verdadeiro) se fosse possível colocá-lo em funcionamento, embora seja um self imaturo, não inteiramente confiável.

Tais vivências de incompletude subjetiva, carentes de "cola", muitas vezes tomam outros caminhos, como no caso de um outro personagem do livro que parece tentar se colocar, ele mesmo, no papel de "cola", para si e para os outros, vivendo um sistema ilusório do self onde o self grandioso arcaico permanece na adultidade e investe de libido narcísica aqueles com quem convive:

…as pessoas se sentem enaltecidas, crescidas, em sua presença. Ele não é um daqueles egotistas que miniaturizam os outros. É o tipo oposto, impelido pela grandiosidade, e se insiste numa versão sua mais engraçada e estranha, mais excêntrica e profunda do que você imagina, fica quase impossível não acreditar, pelo menos na presença dele, que ele é o único que enxerga a verdadeira essência, que pesa as verdadeiras qualidades e que aprecia você de uma forma muito mais completa do que qualquer outra pessoa jamais o fez. É só depois de conhecê-lo melhor que se começa a perceber que para ele, você é uma personagem essencialmente fictícia, alguém por ele investido de capacidades quase ilimitadas, não porque essa seja sua verdadeira natureza, mas sim porque ele precisa viver num mundo povoado por figuras extremas e poderosas. Algumas pessoas romperam relações com ele para não ter de continuar como figurantes do poema épico que ele não pára de compor na cabeça; QUE MARAVILHA! outros, no entanto, sentem prazer no sentido de hipérbole que ele traz para suas vidas, acabam dependendo dela, da mesma forma como dependem de café para acordá-las de manhã e de um ou dois drinques para adormecer à noite. (O negrito se refere à necessidade de selfobjetos idealizados.) Que beleza de formulação. Os personagens mencionados são, pelo que deduzo, o poeta richard brown, do qual é preciso afastar-se inteiramente para poder respirar a liberdade – como diz o seu ex-amante – e a clarissa dallaway (A personagem de As Horas é Clarissa Vaughn, apelidada de Clarisa Dalloway por Richard Brown. Mas vc está certo: é ele que “idealiza” os outros para se sentir cercado de gente “poderosa”: inicialmente, os outros se sentem espelhados de modo grandioso e adoram, mas com o tempo… só Clarissa Vaughn fica ao lado dele.) Que permanece “colada” (nos dois sentidos do termo) nele e por ele, e por isso “só se sente real na presença dele”… Embora seja a menos prejudicada das 3 mulheres de “As Horas”, Clarissa Vaughn também apresenta questões na estrutura de self, como vc percebeu.

Outros personagens, no entanto, buscam a "cola" na construção do que talvez possa ser compreendido como falso self, até intuído pelo próprio self em alguns momentos, mas tão difícil de ser enfrentado e abdicado: …toda a sua dor e solidão, todo o andaime precário no qual elas se sustentam é fruto pura e simplesmente de fingir… se for embora será feliz, ou melhor que feliz. Será ela mesma. Sente-se por alguns instantes magnificamente só, com tudo pela frente. Depois a sensação continua seu caminho, como um trem que pára numa pequena estação do interior, deixa-se ficar alguns momentos, depois segue adiante some de vista. E esta é a sra. Brown, (ex)-mãe do poeta! Et pour cause, como dizem os chineses… Poderia ser, mas acho que este parágrafo no livro se refere a Clarissa Vaughn e à sua relação com Sally (pouco explorada no filme) que é a de um antigo casamento que se mantém mais por conveniência, acomodação, submissão. Esta personagem também tem aspectos de imaturidade no self verdadeiro, para dizer o mínimo, embora aparente ser a mais integrada socialmente falando. De qualquer modo, ela teve uma relação mais verdadeira com Richard Brown no passado, e isso talvez a sustente.

Em outro trecho, há uma outra alusão a esta construção psíquica, com um certo alívio pelo fato de ser uma vivência compartilhável: São ambas mulheres atormentadas e abençoadas, cheias de segredos partilhados, empenhando-se sempre. Uma e outra fazendo-se passar por alguém. Estão extenuadas e cercadas; assumiram uma tarefa tão imensa… Aqui sim, o autor fala explicitamente do falso self. A vida, para este, é um trabalho. Uma tarefa a desempenhar. Um papel a representar. As duas mulheres, no caso (serão a mãe do poeta e a sua amiga, a que vai ser operada? (SIM, aqui vc acertou na mosca) são isso mesmo, duas pessoas que funcionam deliberadamente como “esposas”, e essa é a “peça” na qual elas representam o seu papel – para o qual não estão preparadas nem vestidas adequadamente. E a sra. Brown diz: “eles (os maridos) nos merecem”, quase dizendo “merecem o nosso sacrifício”!

Esta vivência de poder compartilhar algo lembra outro sistema ilusório do self descrito por Kohut, referente às vivências alter-ego, tão necessárias à transformação a) de um narcisismo arcaico em um narcisismo maduro, e b) de uma vivência de solidão extrema – equivalente ao sentimento de sermos eternos estrangeiros – em seres sociáveis e capazes de funcionarmos também como selfobjetos empáticos para com os selves daqueles com quem convivemos. No livro que estamos citando, há, como nos outros do autor (especialmente em "Uma Casa no Fim do Mundo", que ainda é o meu preferido), momentos de grande emoção ligados à revelação, a uma descoberta epifânica sobre a felicidade compartilhada, e é com este grande momento de "AS HORAS" que termino:

Talvez não haja nada, nunca, que se possa equiparar à lembrança de ter sido jovem junto com alguém. (grifo meu) (…) Tinha parecido o começo da felicidade, e Clarissa ainda se choca, trinta anos depois, quando percebe que era a felicidade: que a experiência toda repousa num beijo e num passeio, na expectativa de um jantar e de um livro. O jantar já foi esquecido; Lessing [a autora do livro] foi há muito suplantada por outros escritores; e até mesmo o sexo foi ardente mas canhestro, insatisfatório, mais gentil que passional. O que continua iluminado na mente de Clarissa, mais de três décadas depois, é um beijo ao entardecer, num trecho de grama seca, e um passeio em volta do lago, com mosquitos zumbindo no ar que escurecia aos poucos. Permanece intacta aquela perfeição singular, perfeita em parte porque parecia, tão claramente na época, prometer mais. Agora sabe: aquele foi o momento, bem ali. Não houve outro. E a isso winnicott chamaria, com um nome maravilhoso, de “momento de ilusão” – um encontro, um “momento sagrado” (quando acontece na terapia). O self verdadeiro escondido, nesse momento, faz contato com alguém real “lá fora”, ou alguém real faz contato com o self verdadeiro. E podemos dizer que esse poeta, o único personagem masculino verdadeiro self do livro (masculino mas homossexual, verdadeiro mas fragmentado, verdadeiro mas imaturo, verdadeiro mas incapaz de se relacionar com pessoas reais – talvez porque nelas não pode confiar, tendo sido tão miseravelmente decepcionado pela mãe), é ele o farol que certa vez brilhou na escuridão da vida de clarissa (quase xará da lispector…), indicando uma costa, talvez um porto, para ela que vagava à deriva no alto mar da vida – eterna noite sem estrelas (“sentimento de sermos eternos estrangeiros”, como diz kohut, ou você) em que vive o falso self, sempre às voltas com o papel a desempenhar e sempre com a sensação de estar inutilmente no teatro errado… Nada a acrescentar: você falou e disse!

Davy: Agora que terminei de comentar os seus comentários, alguns comentários meus “independentes”. (E daqui para a frente dispenso as letras vermelhas):

Todas essas descrições me fazem lembrar da Missa em Si Menor de Bach (sugiro também o Kyrie da “Grande Missa em Dó Menor, K. 427” de Mozart, inconcluída como seu Réquiem), da qual não compreendo as palavras, mas na qual depreendo a tragicidade da existência humana comunicada por uma sublime e aterradora lamentação – em tom menor. E me lembro também da música que Don Mclean compôs para Van Gaugh, na qual o personagem “luta para alcançar a sanidade”, ao mesmo tempo em que tenta “fazer com que os outros alcancem a liberdade”.

Do filme só tenho mais duas coisas a dizer. Há nele uma magnífica “aula” sobre o que Winnicott chama de “ser” e “fazer”. O falso self, por exemplo, “faz”, mas não “é”. Por isso o seu fazer é inútil, é fútil, não se sente realmente produtivo, porque esse fazer não parte da espontaneidade (proibida ao falso self), que mora no ser, e dá origem à criatividade (primária – aquela de que o autor diz que “ela produziu algo que ficou uma gracinha, quando esperava (é constrangedor, mas verdadeiro) produzir alguma coisa bela.” Aqui vemos o verdadeiro self imaturo (infantil) esperando ser reconhecido como ele próprio se vê – o eu ideal, aquele que parou de se desenvolver quando o espelho quebrou.) As pessoas em busca do ser (aquelas cujo desenvolvimento foi até certo ponto, mas parou antes do tempo) podem até fazer muitas coisas, mas estas servem apenas para passar o tempo e preparar-se para o momento em que finalmente o encontrem. Lamentavelmente, porém, e por isso a terapia dessas pessoas é tão difícil, o ser não pode ser encontrado, inclusive porque já está lá desde o início: ele pode apenas ser visto (a posteriori) entrando novamente em ação, como disse Jorge Semprun sobre a liberdade: “liberdade é sabermos por que agimos de determinado modo”!… E é vital que nessa hora esteja lá alguém capaz de ver, reconhecer e legitimar essa invenção/descoberta! Em geral, nós, psicoterapeutas, porque as pessoas comuns geralmente estão ocupadas demais procurando o seu própria ser para dar atenção ao ser alheio.

O livro (e o filme) conta uma história trágica, a tragédia de não encontrar esse ser misteriosamente oculto, o que impede de encontrar em seguida o famoso “outro”, sem o qual a vida nada vale (e é assim que se sente o falso self), não importando que “truques” (defesas) o indivíduo empregue para afugentar de si mesmo essa horrorosa sensação e justificar para si mesmo a forma de vida que “escolheu”, como se tivesse alguma liberdade de fazer verdadeiras escolhas. A sra. Brown faz uma escolha. E que escolha! Não mata a si própria, mas “mata” o filho, e depois segreda para Clarissa que de certa forma “matou” também o marido e a filha (“morreram ambos de câncer, ainda jovens”). A filha que ela estava esperando quando quase se matou morreu atropelada; e o marido de câncer no fígado, rapidinho, nos anos 50/60.

Talvez seja esta a verdadeira tradução do que Freud quis dizer, quando falou de “transformar a miséria histérica em infelicidade comum”, pois a vida é, no mínimo, um drama, mesmo para o self verdadeiro bem maduro, mas a vida do falso self que não consegue re-fazer-se é a tragédia, é o sentimento de impotência ante uma existência sentida como “escoando entre os dedos”, “jogada fora”. A vida do fazer vazio do ser é trágica, embora pareça até cômica, e a vida dos que, enquanto fazem, buscam desesperadamente esse ser é no mínimo dilacerante. Disse minha mulher, depois do filme (Liana Velazquez, também psicóloga), que a situação vivida pelo personagem da sra. Brown (enquanto estava casada) é muito, mas muito real, pois um número enorme de mulheres vive exatamente daquele modo, tendo que fazer tudo certo mas com a sensação permanente de que no fundo está tudo errado, e sem chance alguma de corrigir seja lá o que for. Mas claro, muitas mulheres (a maioria? Todas, com honrosíssimas exceções?) tornam-se “esposas” e em seguida mães sem terem tido a menor chance de completar o seu próprio desenvolvimento emocional na infância, e muitas vezes se vêem obrigadas a desistir de si mesmas em função daqueles de quem elas precisam cuidar. Não é à toa que tantas mulheres nomeiam um ou mais de seus filhos “aquele/a que cuidará dela”, e nesse caso, a tragédia é passada adiante. “E la nave và…”

Última observação: os três beijos femininos do filme ao mesmo tempo revelam o essencial e o escondem. Revelam o essencial porque todos os três beijos (e mais o quarto, o de Clarissa e Richard) são muito especiais: é neles que podemos ver com clareza todo o tremendo anseio que essas mulheres têm pela verdadeira intimidade (e portanto legitimidade) que um dia viveram (na primeira infância) e depois perderam. (Mas Virginia Woolf não era Winnicott, e portanto não saberia dizer nada sobre essa perda inicial de contato íntimo – que Winnicott desenvolveu e transformou em coluna mestra da sua psicopatologia.) Mas esse essencial é escondido no momento em que é revelado, pois a sua conotação homossexual (adulta) faz (provavelmente para a maioria dos espectadores) perder de vista, por seu “escândalo” “lésbico”, o que realmente importa. É o único ponto em que eu faria uma “crítica” ao filme, no caso de esses beijos não estarem presentes em nenhum dos dois livros. Aqui vc se engana: tanto em Mrs. Dalloway da V. Woolf como em “As Horas” há beijos entre mulheres no dia em que transcorre a ação das histórias. V.Woolf teria tido casos bissexuais e Michael Cunnigham deve ser homossexual pela presença do tema em seus outros 2 romances, bem como o tema da AIDS. Para ele, a insatisfação de Mrs. Brown é também a insatisfação com o desejo do marido por ela, mas acho que ele acaba transcendendo este aspecto para algo mas amplo do que a repressão homossexual em 1950.

Tiro o chapéu três vezes para Virginia Woolf, para Michael Cunningham e para Stephen Daldry. Aliás, jogo o chapéu para o alto.

E é isso. E eu, tiro o chapéu para você. Que tal organizar esta confusão e publicarmos em conjunto em alguma revista de psicanálise?

Abrações
Gallego

Referências Bibliográficas

Gallego:
CUNNINGHAM, M. (1998), As Horas, São Paulo: Cia. das Letras, 2003

FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVIII

KOHUT, H. (1971) Análise do Self. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

________ (1977) A Restauração do Self. Rio de Janeiro, Imago, 1988.

Davy:
WINNICOTT, D.W. – O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1974 (Há uma re-tradução minha, de 2001, ainda não publicada.)

__________________ – O restante de sua obra, onde quer que esteja publicada.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter