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Interpretações da mecânica quântica – parte XI

(continuação)

Quando o Argumento EPR se apresenta em forma neu­tra, aparecem cinco opções, das quais uma, ao me­nos, deve ser adotada:

1. Ou a lógica clássica não rege o raciocínio correto, e é falsa;

2. Ou a mecâni­ca quântica não é correta, e deve fazer predições que se demonstram falsas;

3. Ou devemos abandonar o realismo fraco e adotar forçosamente uma postura positivista extremada;

4. Ou a mecânica quântica não é uma teoria com­pleta, existindo na realidade qualidades ocultas;

5. Ou os sistemas físicos nem sempre são separáveis, existindo efeitos instantâneos a distancia.

Das diferentes alter­nativas surgem várias correntes e tentativas de interpre­tação da mecânica quântica que apresento agora.

Vejamos a opção de abandonar a lógica clássica como o conjunto de regras que rege o raciocínio correto. Para isso, é necessário determinar quais são as modificações mínimas que requer a lógica clássica a fim de, com estas novas regras de raciocínio, poder afirmar FMQ, REA, COM e SEP sem contradição. A estrutura da lógica clássica, estudada em grande detalhe pelos matemáticos, pode formalizar-se com duas relações binárias (que envolvem pares de proposições):
a disjunção v (se lê "ou") e a conjunção Λ (se lê "e"), e a negação ¬.

Dadas várias proposições a, b, c, d, que podem ser verdadeiras (V) ou falsas (F), é possível construir novas proposições do tipo

¬ a, a v b, a /\ b, c /\ (a V b), a Λ ¬ (b v ¬ [a v c]) etc.

Dados os valores de verdade V ou F das proposições envolvidas, é possível determinar o valor de verdade, V ou F, de qualquer proposição composta. Existem distintas tentativas de mo­dificar a lógica clássica para resolver algumas dificuldades da mecânica quântica que resultaram nas denomina­das "lógicas quânticas".

Várias destas tentativas consistem em poder assinalar a qualquer proposição outras possibili­dades, além de verdadeira (V) ou falsa (F). Em uma delas (Reichenbach) introduz-se o valor indeterminado (I) como alternativa adicional. Este sistema possui, também três tipos de negação em vez de uma.

As mencionadas tentativas de lógicas polivalentes, com muitos valores de verdade em contraposição com as bi­valentes, têm raízes na Antigüidade, quando se anali­saram as dificuldades em assinalar valores de verdade a fra­ses do tipo "amanhã choverá".

Consideremos uma proprie­dade de um sistema quântico, por exemplo, X = 5m.

Se o estado do sistema é tal que dita propriedade é POP, en­tão a proposição "o sistema tem X = 5m" é V, se a mesma é PONP, será F e se a propriedade é uma PP, a pro­posição será I. A proposta de Fevrier incorpora V e F o valor absolutamente falso (A). Von Weizsäcker propõe não três, mas infinitos valores de verdade distribuídos continuamente entre V e F. Outras modificações pro­postas à lógica clássica (Birchoff, Von Neumann) man­têm valores bivalentes de verdade, mas substituem as leis distributivas da lógica clássica:

a v (b Λ c) = (a v b) Λ (a v c) e a Λ (b v c) = (a Λ b) v (a Λ c)
por outra lei cha­mada "identidade modular". Finalmente, o último sistema de lógica quântica que menciono é a modificação de Mittelstaedt à lógica operativa de Lorenzen, que consiste em um diálogo entre um proponente e um oponente baseado em regras bem definidas. A verdade ou falsidade de uma proposição é determinada pelo ven­cedor no diálogo, o proponente ou o oponente.

O estudo detalhado das lógicas quânticas é muito in­teressante, mas escapa das metas destes artigos. Seu valor reside em que, através do mesmo, consegue-se uma profunda análise da estrutura da mecânica quântica, antes que na possibilidade concreta de substituir a lógica clássica. Todos os sistemas lógicos propostos foram criticados por alguma ou outra falha técnica, coisa não tão gra­ve, porque, em princípio, ditas falhas são subsanáveis com modificações na estrutura da proposta. Des­taquemos, ainda, que, em cada caso, a mecânica quân­tica assume um papel importante, por exemplo, na deter­minação de valores de verdade para as proposições, de modo que a lógica fica subordinada à mecânica quân­tica, contrariamente à crença de que a lógica está por cima de todas as ciências.

Por mais importantes que sejam os físicos quânticos, não o são tanto como para exigir que todo o mundo aprenda a raciocinar de outra maneira porque assim se solucionam certas dificulda­des de sua teoria. A solução aos problemas deveria passar por uma revisão dos conceitos físicos e não defenestrando a lógica. Muito mais grave, e possivel­mente irremediável é o fato de que as lógicas quânti­cas não são alternativas possíveis à lógica clássica, porque a mesma apresentação e aprendizagem de suas estruturas, a seleção de seus axiomas, as opções entre alternativas etc., se fazem utilizando a lógica clássica que se pretende abolir. Todo sistema axiomático está baseado em postular a verdade inquestionável de seus axiomas, o que implica a falsidade da negação dos mesmos. Mas sim, ainda existe outro valor de verdade indeterminado, negar um axio­ma não necessariamente seria falso. Estes argumentos su­gerem considerar as lógicas quânticas como interessantes cálculos preposicionais com os quais se põem em evidên­cia a estrutura da mecânica quântica, mas não como sistemas lógicos alternativos à lógica clássica. Conside­ramos, então, esta primeira opção, a de negar a lógi­ca clássica, como interessante, mas impossível.

Passo a analisar, brevemente a alternativa de que o formalismo da mecânica quântica seja falso. Isto signi­fica que as predições que se fazem com dito forma­lismo devem, em algum experimento, comprovar-se inco­rretas. Apesar do enorme êxito demonstrado pelo formalismo, não se pode excluir com certeza a possibilidade de que al­guma vez se detecte uma falha. Contudo, durante mais de cinqüenta anos, esta teoria foi submetida a inume­ráveis provas experimentais e nunca se detectou nenhuma inconsistência interna nela. Seria muito difícil de explicar como é possível que uma teoria essencialmente falsa, pôde passar a todas as provas às que foi submetida a mecânica quântica. Portanto, consi­deramos esta alternativa como possível, mas altamente improvável.
Poucos meses depois da aparição do experimento EPR, Niels Bohr publicou outro, que leva o mesmo título no qual se opôs à conclusão à qual haviam chegado os pri­meiros.

Bohr analisou uma e outra vez o texto EPR buscan­do alguma falha. É possível que nenhum outro trabalho publi­cado na história da física submeteu-se a um referendo tão minucioso. Contudo, Bohr não encon­trou nenhum erro e somente pôde questionar a validade de uma de suas hipóteses. Bohr optou por negar a postura filosófica realista (fraca) adotada por EPR, ao propor que a mesma não é compatível com o formalismo da mecânica quântica, pois este requer uma interpretação baseada na complementaridade, que implica uma revi­são radical do conceito de realidade. Que Bohr não se aderir a uma postura realista como a descrita no artigo quarto não é estranho, porque a interpretação de Copenhague da mecânica quântica, da qual ele foi o principal gestor, (ao lado de Heisenberg, Born, Jordan e Pauli), está sustentada por uma postura filosófica muito próxima ao positivismo.

Contudo, deve destacar-se que o argumento EPR requer a adoção de um critério mais suave que o proposto no mencionado capítulo, já que só é necessário aceitar uma condição suficiente para a existência de um elemento de realidade física, con­dição que bem pode ser assumida por uma filosofia positivista moderada. Negar esse critério coloca Bohr em uma postura extrema. Há um amplo debate entre os histo­riadores e filósofos da ciência no qual se discute se Bohr pode ser considerado positivista ou não.

Sem preten­der entrar na discussão, se pode afirmar que a inter­pretação chamada de Copenhague, implica uma postura positivista ou, ao menos, uma muito próxima a ela, e que al­guns físicos que aderiram a dita interpretação se manifestaram claramente positivistas.

A base filosófica da interpretação de Copenhague da mecânica quân­tica é o Princípio de Complementaridade de Bohr, cuja apresentação precisa e clara não é tarefa fácil. Einstein, que o negava, reconheceu não haver conseguido formar uma idéia não-ambígua do mesmo, e Von Weizsäcker, que o de­fendia, acreditou finalmente entendê-Io depois de una análi­se minuciosa de todos os escritos de Bohr, mas este o desaprovou. Possivelmente a melhor aproximação surge de uma frase do próprio Bohr na qual manifesta que a uti­lização de um conjunto de conceitos clássicos (por exem­plo, posição espacial e temporal) na descrição de um sistema quântico exclui a utilização de outro conjun­to (impulso e energia) que é "complementar". A lin­guagem que os físicos usam para comunicar os resultados dos experimentos contém conceitos "clássicos". São os únicos que se conhece. Esta linguagem é a única que se tem, mas não é adequada para os sistemas quânti­cos, ainda que seja para os aparatos experimentais, que são aparatos clássicos. Por este motivo, se propõe nesta interpretação, que devemos limitar-nos exclusivamen­te a construir frases sobre os aparatos experimentais com que se observam os sistemas quânticos. Assim, estas frases, devido às inevitáveis interações entre o apa­rato e o sistema, não se referem ao sistema individualmen­te, mas que se aplicam ao conjunto aparato-sistema. Tal li­mitação supõe, então, que a mecânica quântica não se aplica ao sistema em si, mas que se ocupa dos resulta­dos experimentais do complexo sistema-aparato. Diferen­tes arranjos experimentais com o mesmo sistema implicam frases que não podem ser tomadas simultaneamente.

São descrições complementares que não podem pen­sar-se juntas. Complementam-se, mas se excluem. Não se pode unir em uma só imagem a informação obtida de diferentes experimentos em um sistema físico. Estas considerações levam Bohr a dizer que é falso crer que a meta da física é descobrir como é a nature­za, pois, em verdade, só se ocupa do que se pode dizer acerca desta, duvidando, assim de que a realidade da natureza seja conhecível. A palavra "realidade", diz Bohr, é uma palavra que há que se aprender a usar correta­mente. A descrição da natureza que faz a física não é, para Bohr, um reconhecimento da realidade do fenômeno, senão uma descrição das relações entre diferentes aspectos de nossa experiência. Heisenberg afirma, extremando o pensamento de Bohr, que a meta única da física é predizer os resultados experimentais excluindo da linguagem toda menção da realidade.

O princípio de complementaridade transcendeu a mecânica quântica para ser aplicado em outras áreas do conhecimento, tomando assim matizes filosóficos. Por exem­plo, na biologia se pode considerar que a perspecti­va físico-química é uma visão complementar de outra, "vitalista". Ambas são necessárias para uma concepção to­tal da matéria vivente, mas se excluem mutuamente: para estudar os processos físicos e químicos de uma célu­la é necessário matá-la. (O pai de N. Bohr era biólogo e se opôs às teorias de Darwin, assumindo posturas vitalistas). Em uma aplicação do princípio de comple­mentaridade da teologia se propôs que ciência e religião são duas aproximações complementares da verdade. Também foi vinculado à lingüística, à sociologia etc.

Franco Selleri utiliza um esquema de M.C. Escher para ilustrar graficamente a complementaridade. Trata-se de uma composição na qual se vêem peixes e aves que se complementam em uma imagem, mas se opõem ao ser, uns o espaço vazio entre os outros.

Ao limitar-se a relacionar resultados experimentais e predições sem pretender interpretar a realidade, a in­terpretação de Copenhague não enfrenta os problemas mencionados com a medição nem os relacionados com as interpretações ontológicas ou gnoseológicas das pro­babilidades, daí seu enorme êxito. Nela, a mecânica quântica é completa, não tem sentido falar de separa­bilidade nem dos elementos da realidade física. O princí­pio de complementaridade, cuja manifestação no for­malismo se encontra no princípio de incerteza, salva toda dificuldade. Explica-se, então, a aceitação gene­ralizada desta interpretação, exceto por alguns que puderam permanecer críticos, possivelmente protegidos pela fama que possuíam, tais como Einstein, Planck, Ehrenfest, Schrödinger e De Broglie. Hoje, contudo, já não alcançariam calar a necessidade dos físicos de sa­ber "como é a natureza" e de pensar nos sistemas fí­sicos com características próprias, reais e conhecíveis. Não estamos dispostos a abandonar a realidade, ainda que devamos modificar a imagem que fazemos dela. Portanto, podemos qualificar esta alternativa de aban­donar o realismo como possível, mas indesejável.

Passemos à alternativa que implica a não completude da mecânica quântica. Já mencionamos que esta foi a opção que tomaram EPR ao elaborar seu argumento; ainda que devido a evoluções pos­teriores, é possível que nem Einstein, nem Bohr conservaram hoje as mesmas convicções originais. O argumento EPR gerou atividade na busca de uma teoria com variáveis ocultas. Nela se supõe a existência de algu­ma característica relevante no sistema físico para a qual não existe nenhuma forma de fixar experimentalmente seu valor numérico, ou de medi-la. Por isso, a denominação de "oculta". O estado do sistema, junto com o valor da ou das variáveis ocultas, determinam univocamente o valor que assumem todos os observáveis. Isto significa que co­nhecendo o estado e conhecendo o valor das variáveis ocultas, todas as propriedades são POP ou PONP e nenhuma é PP. As PP aparecem somente devido ao desconhecimen­to do valor das variáveis ocultas. Por exemplo, consideremos o caso, analisado em artigo anterior, de um elétron com o spin orientado a 45 graus. Esta orientação determina o estado do sistema. Suponhamos um grande número de sistemas idênticos nos quais medi­mos a orientação do spin na direção vertical. Já vimos que aproximadamente 85% das vezes esta me­dição resulta em 1/2 (para cima) e os 15% restantes em -1/2 (para baixo). Em uma teoria com variáveis ocultas se supõe que todos estes sistemas não são idênticos, mas que se diferenciam no valor das variáveis ocultas, que são as responsáveis de que em alguns casos se meça "para cima" e em outros, "para baixo"; se conhecêssemos o valor destas variáveis poderíamos predizer com certeza que valor resultaria em cada caso. As probabilidades aqui são gnoseológicas ao dever-se exclusivamente à nossa ignorância do valor das variáveis ocultas.

Em forma si­milar, se certa propriedade de posição de uma partícula, por exemplo, X = 5m, é uma PP e lhe associamos uma proba­bilidade, por exemplo, de 10% quando o estado foi fi­xado pelo conhecimento do impulso, a teoria com variáveis ocultas supõe que existe, para a partícula, alguma característica desconhecida que determina exatamente em que casos a medição da posição resulta em X = 5m e em quais, não. A probabilidade que se lhe associa à posição é manifestação do desconhecimento que temos do valor da variável oculta.

O grande atrativo destas teorias reside em que são de­terministas, tal como é a mecânica clássica. Por outro lado, perdem seu encanto ante quem pensam que a na­tureza deve ser conhecível (ainda que reconheçam que es­tamos longe de conhecê-la bem), ao ter que aceitar a existência de características essenciais e relevantes no sistema físico para as quais não existe nenhuma forma de fixá-las ou medi-las experimentalmente, ou seja, que devem permanecer ocultas. Esta consideração é importante para diferenciar a não-completude da mecânica quân­tica de outras teorias não completas, por exemplo, a ter­modinâmica ou a mecânica estatística, ou a sociologia, em ciências humanas. Nelas se tomou a decisão de ignorar o valor de algumas variáveis individuais para ob­ter uma descrição estatística do sistema. Contudo, estas variáveis ignoradas são conhecíveis. O peso e a altura de um indivíduo são perfeitamente conhecíveis, mas se os ignorarmos em uma sondagem de opinião sobre suas simpatias políticas. Se a mecânica quântica não é comple­ta, não se deve a que elegemos ignorar, por simplici­dade, alguma característica do sistema, mas à existência de características relevantes, porém não conhecíveis na realidade. Von Neumann, que foi um matemático genial, trouxe fundamentais aportes ao desenvolvimento da estrutura matemática da mecânica quântica. Demonstrou um impor­tante teorema que proíbe a possibilidade de que haja teo­rias com variáveis ocultas compatíveis com o formalismo da mecânica quântica. Quando este teorema parecia pôr ponto final ao debate, David Bohm, omitindo a proibição, desenvolveu uma teoria com variáveis ocultas que era perfeita­mente coerente. Esta aparente contradição criou algo de confusão que já tentamos esclarecer.

O que o teorema proíbe é desenvolver uma teoria com variáveis ocultas que reproduza, quando estas variáveis são promedia­das, exatamente, o formalismo da mecânica quânti­ca, mas não proíbe inventar uma teoria que tenha variáveis ocultas e que faça as mesmas predições que as que se podem obter com o formalismo da mecâni­ca quântica.

Dois formalismos distintos podem fazer as mesmas predições experimentais. Em conseqüência hoje é possível tentar desenvolver uma teoria com variáveis ocultas e existem vários exemplos, que, se bem algo artificiais, são matematicamente intocáveis.

Vere­mos em continuação, contudo, que as variáveis ocul­tas, além de representar alguma qualidade não-conhecível do sistema, devem ser não-locais, introduzindo inespe­radamente a não-separabilidade. Isto significa que não é suficiente considerar a mecânica quântica não-completa, mas que, além disso, deve ser não-separável, o que nos con­duz à última alternativa levantada pelo argumento EPR.

O sistema físico utilizado para demonstrar o argumento EPR consiste em duas partículas das quais nos interes­sa sua posição e impulso. D. Bohm idealizou uma demonstração do mesmo argumento utilizando, também duas partículas, mas destas nos interessam as projeções do spin em alguma direção em vez de suas posições e impulsos. O argumento é essencialmente o mesmo, assim como seus in­gredientes. Porém, a versão apresentada por Bohm é mais rica porque se podem fazer participar mais observáveis.

Para cada partícula há somente um observável de posição, mas podemos pensar em infinitos observáveis de projeção do spin ao eleger as infinitas diferentes direções de projeção. Esta diferença se torna importante quan­do tentamos construir algum arranjo experimental que nos ajude a decidir entre as alternativas levantadas pelo argumento EPR. A versão inicial do argumento EPR não pode ser estendida para um experimento, mas a versão de Bohm sim. Este caminho "da mente ao labo­ratório" foi assinalado pelas desigualdades de Bell e foi recorrido por Aspect, quem realizou os primeiros experi­mentos que indicaram que a realidade deve possuir, em certos casos, a estranha propriedade de ser não-separável.

Não apresentarei em detalhe as desigualda­des de Bell. Limito-me a descrever os sistemas físicos a que se aplicam e os ingredientes que participam em sua de­dução. Suponhamos duas partículas, como no sistema usado para o argumento EPR, que provêm da des­integração de outra com impulso angular conhecido (zero, por exemplo).

O processo de desintegração não pode modificar o spin total do sistema, pelo que as duas partículas têm seu spin orientado de forma tal que se somem para produzir exatamente o spin da partícu­la inicial. Ambas as partículas são submetidas à observação da projeção de seu spin em certas direções que podemos eleger convenientemente.

Neste caso, o postulado da separabilidade significa que a probabili­dade de observar a projeção do spin em certa direção para uma partícula é independente da direção em que se observa o spin da outra partícula. Suponha­mos não um par de partículas, mas um grande número de pares. Para este conjunto de pares podemos conside­rar diferentes direções de observação e medir "corre­lações", assim: o número de vezes que medimos o s­pin de uma partícula em certa direção quando se mediu o spin da outra em certa outra direção. Com­binando tais correlações se obtém uma quantidade que, segundo demonstrou Bell, não pode ser maior que 2. Se a simbolizamos com ∆Bell, este importante resultado se ex­pressa: ∆Bell ≤ 2. Os ingredientes que Bell utilizou para chegar ao mesmo foram o realismo, por postular que o spin das partículas existe independente de sua obser­vação, a existência de variáveis ocultas e da separabili­dade, ao supor que o valor destas variáveis para uma partícula permanece inalterado ante qualquer ação na outra partícula. Notemos que para chegar a este resulta­do não se utilizou o formalismo da mecânica quân­tica e que a quantidade ∆Bell pode ser medida em um la­boratório.

Análises posteriores demonstraram que também é possível deduzir esta desigualdade sem supor a exis­tência de variáveis ocultas, ou seja, somente requerendo realismo e separabilidade. Em conseqüência, o resultado de Bell pode expressar-se:

(REA Λ SEP) → ∆BELL ≤ 2

Por outro lado, a mesma quantidade para a qual Bell en­controu que não pode exceder o valor de 2, também é calculável com o formalismo da mecânica quântica, o que resulta em um valor 40% maior que 2. A situação é crucial: se o resultado predito pela mecânica quântica se confirma experimentalmente, então a desigualdade de Bell, ∆Bell ≤ 2 é violada, indicando que, ao menos uma das hipóteses que participam em sua dedução, o realismo ou a separabilidade, é falsa. A palavra a tem o juiz supremo da física: o experimento. Devemos somente interrogar à natureza. Torna-se fascinante notar que a resposta experimental concerne à vali­dade de um postulado filosófico. Este é o experimento que mencionei vários artigos atrás, que justificava falar de uma filosofia experimental. O experimento foi feito e repetido com diferentes arranjos, por dife­rentes físicos e em diferentes lugares. Os resultados são claros e concludentes: a desigualdade de Bell é violada. Necessariamente devemos abandonar o realismo como base filosófica.

Ou devemos aceitar que a realidade tem a assombrosa característica de ser não-separável em certos casos! Disse também que por múltiplos motivos, em par­ticular, pelas conseqüências subjetivistas e ainda solipsistas que implica, o abandono do realismo é inaceitável para muitos físicos e filósofos. Fica, então, como última alternativa, o abandono da separabilidade irrestrita na realidade física, alternativa que podemos qualificar como assombrosa, mas necessária, se desejamos ser filosoficamen­te realistas.

Nem Bohr e nem Einstein consideraram esta opção, porque no momento histórico no qual eles atuaram ninguém concebia a possibilidade de que a separabilidade não fosse válida. Hoje, à luz da violação experimental das desigualdades de Bell, possivelmente ambos os titãs se uni­riam para adotar a não-separabilidade como a alternativa adequada entre as levantadas pelo argumento EPR.

Haveria sido maravilhoso ver estes dois oponentes ao fim, reunidos: Bohr recusando o positivismo, Einstein reco­nhecendo a completude, e ambos aceitando a não-sepa­rabilidade na realidade física.

Se aceitamos que a não-separabilidade deve ter um pa­pel importante na interpretação da mecânica quân­tica, devemos perguntar-nos como se formaliza este con­ceito na teoria. A não-separabilidade tem que estar incluída no formalismo, posto que a predição que este faz para a quantidade envolvida na desigualdade de Bell concorda com o resultado experimental. A não-­separabilidade está presente no princípio de incerteza, que, lembremos, indica que o produto das incerte­zas associadas a dois observáveis deve ser maior que certa quantidade. Esta última quantidade não se anula em certos es­tados ainda para observáveis que correspondem a caracte­rísticas muito distantes. Por exemplo, na versão original do argumento EPR, se trabalha com um sistema de duas partículas, tal que o produto das incertezas em suas posições não se anula no estado considerado. Se por uma medição modificamos a incerteza na posição de uma das partículas, a incerteza da outra, por mais distante que se encontre, será modificada.

É interessante notar que, se bem o formalismo da mecânica quântica continha a não-separabilidade na ver­são do princípio de incerteza dada por Schrödinger, em 1930, somente na década de sessenta se introduziu o conceito de separabilidade. Em artigo anterior se identificaram as características essenciais da mecânica quântica, entre as que se mencionou a dependência que existe entre os observáveis, a qual transcende a cons­tatada nos sistemas clássicos. A não-separabilidade é jus­tamente uma manifestação desta dependência entre observáveis, quando estes correspondem a qualidades dis­tantes do sistema. Implica, então, certa forma de ação instantânea à distância, porque a medição ou modificação em uma parte do sistema, quando este se encontra em um estado não-separável, imediatamente deve propagar-se a todo o sistema. Esta ação a dis­tância parece entrar em conflito com a relatividade de Einstein, que proíbe a transmissão de matéria ou infor­mação a velocidades maiores que a da luz. Contudo, tal inconveniente não se apresenta aqui, porque o tipo de ação quântica requerida pela não-separabilidade não pode ser usada para transmitir informação, e muito menos matéria. Não é possível construir um telégrafo que envie sinais a velocidade maior que a da luz usando a não-separabilidade quântica. Esta conclusão é impor­tante, porque, a não ser assim, estaríamos frente a uma con­tradição entre dois pilares fundamentais da física: da mecânica quântica e da relatividade.

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