A cibernética de Wiener
A Cibernética é definida como "todo o campo da teoria do comando e da comunicação, tanto na máquina como no animal". Deve-se notar que a palavra "comando" traduz muito precariamente o termo "controle", que figura no texto original. Aliás, é realmente em torno desta palavra que gravitam as dúvidas e as controvérsias provocadas pelas idéias de Wiener.
Mais de metade da obra de Wiener é consagrada a uma exposição das teorias de física matemática, quase todas pouco conhecidas na Europa, e em cujo desenvolvimento N. Wiener e seus discípulos haviam contribuído grandemente. São elas: a mecânica estatística de Gibbs, a teoria das séries temporais – em que a contribuição do próprio Wiener é particularmente importante – e a teoria dita "da informação", de Shannon. Estas teorias eram acompanhadas de críticas à mecânica clássica que as faziam aparecer como a forma na qual deveria inevitavelmente ser moldada a futura concepção das máquinas. Elas expressavam-se, ora através de uma linguagem de divulgação, tendo em vista os leitores de certa cultura geral, ora por meio de uma complicada linguagem matemática. Deviam, portanto, atrair os matemáticos, em busca de interpretações em termos de física ou de técnicas extraídas de teorias concebidas pela pura abstração, bem como os leitores menos informados, dispostos a confiar em um autor cujos raciocínios lhes eram impenetráveis.
Os capítulos seguintes são destinados à descrição das semelhanças existentes entre estas noções e noções referentes à psicologia, à fisiologia, à psiquiatria e à sociologia. O título de cada um dos capítulos diz bem claramente qual é o seu objetivo: "As máquinas de calcular e o sistema nervoso" ; "A Gestalt e os universais"; "A cibernética e a psicopatologia"; "Informação, linguagem e sociedade" .
Um tema tão vasto não se expõe em alguns capítulos. Este livro não poderia conter o desenvolvimento "da" teoria do comando e da comunicação "no animal", mas apenas um delineamento dos contornos "do campo inteiro" desta teoria, exemplos mostrando que era racional criar este "campo" e, portanto, a cibernética.
Era agrupar em um mesmo vocábulo doutrinas bem estabelecidas que, em seus setores respectivos, já haviam sido experimentadas.
Estas teorias haviam tido um desenvolvimento normal através dos esforços de especialistas e, posteriormente, encontrado aplicações novas, muitas vezes espetaculares: a pilotagem automática dos aviões, o telecomando de foguetes, a teoria da medida de uma grandeza física, de Denis Gabor e Léon Brillouin.
– Estrutura em circuitos fechados de elementos do sistema nervoso humano e das memórias de certas máquinas de calcular, para concluir que os circuitos do sistema nervoso são a sede da memória;
– Estrutura do assoalho do IV ventrículo do cérebro e de um aparelho próprio a reconhecer a forma das letras quaisquer que sejam o aspecto e as dimensões, para descobrir a maneira pela qual seria criada a noção de "forma" no cérebro (analogia von Bonin – Mac Cullogh);
– Curas obtidas por eletrochoques e reparação de máquina de calcular através de impulsos enviados ao acaso, para concluir pela similaridade entre os circuitos de máquinas de calcular e os circuitos do cérebro.
Novas analogias entre mecanismos eletrônicos e estruturas cerebrais foram assinaladas, no decorrer do Congresso de 1951 sobre: "As máquinas de calcular e o pensamento humano". Neste Congresso estavam reunidos quase todos os cientistas, de várias disciplinas, que haviam colaborado com Wiener em sua primeira elaboração da cibernética. Ao mesmo tempo, Mac Cullogh e W. Pitts definiam um sistema de elementos mecânicos capaz de realizar as operações de raciocínio, com um simbolismo muito aproximado ao da teoria matemática das redes elétricas. Mais tarde, Mac Cullogh e seus alunos procuraram determinar experimentalmente se a transmissão nervosa verificava a teoria da informação de Shannon. Ainda, Grey Walter e Ross Ashby construíam, um deles suas "tartarugas", o outro o homeostato, enquanto Mac Kay procurava estender a teoria da informação aos fenômenos psicológicos e Mandelbrot ao estudo da estrutura das linguagens. Finalmente, asssociam-se à cibernética as formas de organização do trabalho, geralmente conhecidas com o nome de "automação", cujas repercussões sociais são profundas.
Foi a noção de retroalimentação que mais freqüentemente possibilitou esta confusão. A retroalimentação é um conceito bem preciso na técnica da regulagem de máquinas; tendo aplicado a um sistema mecânico certas ações físicas calculadas de modo a obter um efeito desejado e tendo a imperfeição dos cálculos ou das construções materiais permitido obter somente um efeito aproximado, mede-se o desvio entre o efeito desejado e o efeito obtido, calcula-se quais as modificações que devem sofrer as ações físicas aplicadas ao sistema para corrigir este desvio e faz-se atuar o próprio sistema na execução desta correção sobre si mesmo. Pode-se descobrir "retroalimentações" em quase todos os comportamentos, tanto físicos como psicológicos, dos seres vivos.
E chegou-se mesmo a descobrir "retroalimentações" no comportamento da divindade (!).
Os engenheiros e principalmente os especialistas em máquinas automáticas encontraram, na primeira parte do livro de Wiener, a confirmação de uma evolução no sentido de maior abstração ao expor a sua técnica e tentaram, ou reduzir a cibernética a uma teoria dos mecanismos automáticos, ou, negando sua originalidade, exigir que se ativesse ao termo clássico de "automatismo". No caso geral, eles também adotaram uma posição semelhante em relação ao termo "automação" .
As opiniões dos biólogos são menos uniformes. A pobreza dos mecanismos produzidos pelo homem em confronto com os que a anatomia descobriu nos seres vivos e a multiplicidade de "retroalimentações" já caracterizadas na fisiologia dos órgãos vivos fizeram-nos receber com reservas, quando não com ceticismo, as ofertas que fazia a mecânica abstrata de explicar os fenômenos da vida. Paralelamente, uma interpretação demasiado restrita das idéias de ordem filosófica que se acreditava descobrir na obra de Wiener levou certos biologistas a pensar que os ciberneticistas pretendiam ser o pensamento, em sua totalidade, apenas o resultado do funcionamento de sistemas mecânicos; e outros biologistas encontraram na cibernética elementos novos para o afirmar. Um antigo debate foi, desta forma, reanimado sob uma terminologia nova e livros inteiros foram escritos para provar, ora por parte da mecânica, ora da psicologia – uma psicologia impregnada de metafísica – que era impossível, construir um mecanismo dotado de imaginação criadora.
É bem verdade que a confusão involuntária que se faz, principalmente nas obras de divulgação – às vezes conscientemente, para fins publicitários – entre "servo-mecanismos" e "cérebro mecânico" pode induzir ao erro. Entretanto, outros biólogos construíam modelos mecânicos de certos comportamentos dos seres vivos – comportamentos psicossomáticos como no homeostato de Ross Ashby, comportamentos sociais, como nos animais artificiais de Grey Walter – e colocavam seus trabalhos, de espírito essencialmente biológico, sob a égide da cibernética.
Por outro lado, a extensão de comportamentos mecanizáveis ao pensamento puro ou ao pensamento místico, encontrou sempre oposição unânime.
Além disso, os exemplos e os argumentos de Wiener eram colocados em dúvida ou refutados uns atrás dos outros. Os neurologistas não puderam repetir as experiências descritas por N. Wiener, e a narração que apresentava a analogia MacCullogh – Von Bonin iria ser considerada apócrifa. A aplicação da teoria da informação à demonstração de que o sistema de numeração binária é o mais vantajoso não conseguia fazer a necessária distinção entre a operação de memorização de uma seqüência de números inteiros, em que o sistema binário permite uma enorme redução do material necessário (60 por cento em relação ao sistema decimal), e a operação de simbolização de um número isolado, em que o sistema binário é o menos maleável. Quanto à crítica da mecânica clássica, que teria conduzido principalmente aos brinquedos caracterizados pelos robôs de relojoaria de Vaucanson e seus contemporâneos, ela esfacela-se frente à descoberta feita por Liaigre, na literatura da época, de que Vaucanson construíra seus autômatos para estudos de biologia - como o fazem os mais ciberneticistas dos biólogos contemporâneos: Grey Walter, Ross Ashby, Sauvan e outros – e frente à constatação de que as coisas cuja propriedade a maioria de nossos contemporâneos atribuía à cibernética não passavam de grandes bonecos com servo-mecanismos, como o que conduzia os visitantes através da Feira de Paris, ou o grupo de músicos que há pouco animava o chá das cinco de uma Grande Loja. Para completar, a segunda obra de Wiener sobre a cibernética: The human use of human beings (O uso feito pelo homem dos seres humanos) não trazia a edificação racional que a primeira prometia sem realizar.
O leitor psi curioso ou apaixonado, que se dispuser a ler alguns milhares de obras e artigos escritos até o presente sobre cibernética (não incluindo os artigos aparecidos na grande imprensa, cotidiana ou semanal) deverá, portanto, manter-se em guarda contra os entusiasmos ou as críticas excessivas.
A organização de uma "Associação Internacional de Cibernética" sancionou os debates; deram-lhe por objetivo a organização e a coordenação dos estudos de cibernética, dentro do espírito de objetividade que caracteriza as sociedades científicas de todos os países. Cerca de mil membros inscritos em um ano, repartidos por trinta e dois países, dão prova de que a cibernética é considerada coisa séria e de que acreditam em sua utilidade.
Em setembro de 1957, reuniu-se um simpósio em Zurique, sob a presidência de Gonseth, com o objetivo de estudar as relações entre "Cibernética e conhecimento".
Em julho de 1962, outro simpósio de confrontação de teorias tinha lugar em Royaumont, sob o patrocínio da Sociedade de Colóquios Filosóficos Internacionais e com a colaboração de Associação Internacional de Cibernética, sobre "A informação nas Ciências". Neste encontrava-se N. Wiener, ladeado de cientistas e filósofos de numerosos países.
Finalmente, em 1963, criou-se a "Associação de Pedagogia Cibernética" e a "Sociedade Francesa de Cibernética".
Estes estudos doutrinários mostram a preocupação de pensadores do mundo inteiro em definir precisamente a natureza deste ser novo que Norbert Wiener engendrou, há vinte anos, num impulso de imaginação criadora. Mostram, também, a vitalidade das idéias ligadas a ele e a preocupação de tirar proveito delas.