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O Aborto e a Reação Maníaca

"O aborto e a reação maníaca":

Antes de dar início ao desenvolvimento da temática referente ao aborto, gostaria de chamar a atenção dos leitores quanto ao fato de que em toda a literatura psicanalítica, esse tema não foi tratado de maneira intensa nem por uma relativa quantidade de teóricos da psicanálise.

Tomamos como ponto de referência para o percurso que queremos desenvolver, o importante trabalho de Julio Aray, "O Aborto: um Estudo Psicanalítico". Contextualizando o que eu disse no parágrafo anterior, eu conheço esse trabalho desde os bancos da Universidade. Com muito pouca coisa pude entrar em contato desde então.

Se tomarmos como ponto de partida a observação clínica, poderemos notar que a defesa, reação ou regressão maníaca, acaba se constituindo no maior obstáculo na modificação da personalidade, e que seus mecanismos principais: negação e controle onipotente da realidade psíquica, idealização, identificação projetiva, a maculação do bom objeto interno, o sufocar das emoções, regressão narcisista, etc., estão íntimamente relacionados com a reação terapêutica negativa.

Retrospectivamente, a maioria dos autores como B. Lewin e Melanie Klein insistem em que as defesas maníacas impedem ou pelo menos perturbam a e em conseqüência mantém indefinidamente o analisando em um luto patológico, acompanhado de suas reações psicossomáticas, caracterológicas, ou neuróticas.

No aborto, considerado como um tipo particular de luto, se observa que a defesa maníaca se estabelece sólidamente por uma série de razões inerentes ao aborto em si, assim como pela personalidade prévia do paciente que sofreu o trauma genital, mantendo então aquela defesa, a repressão das intensas ansiedades persecutórias, confusionais e depressivas que encontramos ao depararmo-nos com o inconsciente desses pacientes.

Muito embora a literatura em relação ao aborto seja escassa, ainda podemos encontrar estudos antropológicos, como os de Devereux, Roheim, Frazer,etc. G. Devereux chegou a afirmar que: "O aborto é um fenômeno universal, sendo impossível construir um sistema social onde nenhuma mulher nunca se sentisse, pelo menos impulsionada a abortar".

As angústias inerentes ao processo de aborto se referem tanto aos aspectos danificados ou perdidos do ego corporal e psicológico, como do objeto morto, pois o único luto onde simultânea e concretamente se perdem aspectos do ego corporal e do objeto é no aborto.

Uma primeira consideração a ser feita é sobre as razões que levam uma mulher a engravidar, sem condições de levar o processo a termo e ter que interrompê-lo. Os autores que estudaram esse aspecto da sexualidade feminina, como Helen Deutsch e Marie Langer, coincidem em que é na relação precoce com a mãe onde há que se buscar a gênese do aborto provocado e espontâneo, sendo o conflito edípico, um fator que comum à gênese da neurose, deve ser exaustivamente investigado. O incesto consumado ou fantasiado com o progenitor do sexo oposto desempenha um papel relevante no fenômeno do aborto. Ressaltamos também a existência daquelas gestações que são oriundas das atuações das pacientes.

Um outro autor que se ocupou do tema foi Arieti, o qual afirmou que: "Gestações ilegítimas em mulheres hipomaníacas e doenças venéreas em homens hipomaníacos, são fatos muito freqüentes. León Grinberg, autor de muita produção teórica em psicanálise, afirma: "É comum que os pacientes se angustiem durante as interrupções prolongadas de sua análise(férias, por exemplo). Isso configura uma forma de luto por tudo o que implica a separação do analista, a qual reativa as separações ou lutos experimentados préviamente pelo paciente". A isso temos que considerar que se agrega a angústia e a depressão por perder os aspectos próprios projetados no analista. A análise mostra que o aborto é a resultante de uma relação genital maníaca, onde a desconsideração pelo objeto e toda a série de elementos do juízo de realidade foram subestimados, negados ou distorcidos. É muito freqüente encontrarmos nesse tipo de paciente uma idealização da "atuação" genital, o que vem falar em favor das idéias de Angel Garma, de que na reação maníaca o superego realiza um engano ao ego, impulsionando a paciente a engravidar e a submeter-se ulteriormente a castração genital.

Consideramos que mesmo naqueles casos onde a gravidez parece ter ocorrido acidentalmente, esse fato pode ser entendido como se fosse um "ato falho", isto é, determinado por motivações inconscientes, conectadas estreitamente com a mania. Um outro aspecto a ser considerado é a "negação da morte do feto" nas reações maníacas, o que fica favorecido pela não visão do objeto perdido.

Uma vez que as defesas maníacas fiquem atenuadas, acabam surgindo angústias psicóticas, com uma conotação transferencial-contratransferencial dramática. Ocorre uma íntima conexão entre a mania e a reação terapêutica negativa, que fica evidenciada em uma tendência nesses pacientes, a interromperem a análise prematuramente, como o fizeram com a gestação(atuação maníaca), repetindo a situação traumática sem elaborá-la.

Realizadas essas considerações teóricas, gostaria aquí de proporcionar aos leitores uma ilustração clínica:

Em minha experiência profissional, me recordo especialmente de uma paciente em análise que, ao término de sua sessão de sexta-feira, me comunica que no dia seguinte, portanto sábado(final de semana = separação), faria um aborto por ter engravidado acidentalmente, e uma vez que nem ela nem o namorado queriam um filho naquele momento de suas vidas. Sua próxima sessão ocorreu na terça-feira seguinte, na qual entra, deita-se no divã, e começa a falar "normalmente" como se nada tivesse acontecido. Quero ressaltar que quando digo que "algo havia acontecido", estou me referindo não ao aborto,mas sim a menção ao fato de que ia fazê-lo, a sua fala à respeito. Minha conduta na ocasião foi de interrompê-la passados os minutos iniciais, tocando diretamente no assunto. Depois de alguns instantes de silêncio, me respondeu que realmente havia feito o aborto anunciado na sessão anterior. Podemos observar então, que independentemente do aborto ter ocorrido ou não na realidade, o tema estava abortado da fala. Entendemos que esse aborto do tema na fala, de modo algum era intencional, muito pelo contrário, teria ocorrido algo da ordem de um "curto-circuito", ou mesmo uma "interrupção da comunicação intra-subjetiva", ocasionando fenomenológicamente, uma fala dissociada em suas instâncias geradoras.

Recuperando o primeiro parágrafo deste trabalho, onde eu citei a escassez de literatura em relação a temática do aborto, quero apenas acrescentar mais algumas palavras: da mesma forma que o(a) paciente parece "abortar" a comunicação transferencial, muitas vezes iremos encontrar do lado do analista, contratransferencialmente, um fenômeno da ordem de quase que um "abortamento" de sua vida mental. O resultado disso, do lado do analista, muitas vezes fica evidenciado pela sonolência, uma "lentificação" do pensamento, uma constante busca ao relógio para ver quanto tempo falta para acabar a sessão, etc. Enfim, aqui estamos diante de um excelente exemplo, de que o nível simbólico pode tocar a matéria.


Bibliografia Auxiliar:

Frazer, James George === O Ramo de Ouro.

Aray, Julio === Aborto: um estudo psicanalítico.

Laplanche,Jean & Pontalis, J-B. === O Vocabulário de Psicanálise. = Martins Fontes Editora.

Langer,Marie = Maternidade e Sexo

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