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"Algo sobre a transferência em Lacan"

Históricamente, o tema da transferência vem ocupando a atenção dos pesquisadores e teóricos da psicanálise desde as suas origens. Inicialmente entendida como um produto da própria análise e como  a pior forma de resistência a ela, evolui para a compreensão de que possui a sua origem na neurose, e que contitui-se num importante instrumento para propiciá-la.

Assim, a análise possui a capacidade de detectá-la embora não a crie. Vamos encontrar essa opinião em Freud, desde o “Epílogo de Dora” até o “Compêndio de Psicanálise”. Entendo que podemos utilizar uma metáfora para esse processo, a utilização de um “catalisador” numa reação química. Podemos dizer sem sombra de dúvida, que “o catalisador facilita” a reação, porém não dela participa. Ida Macalpine(1950), sustenta que o fenômeno transferencial é uma resposta às constantes do enquadre analítico, e o define como uma forma especial de adaptação pela via regressiva, às condições de privação sensorial, frustração e assimetria que fazem parte da situação analítica. Daniel Lagache e outros, assim como David Liberman(1976), adotam uma posição mais contemporânea e eclética, ressaltando que existe uma predisposição à transferência, ao mesmo tempo que uma possibilidade de realização, ou seja, os dois elementos intervém. Daniel Lagache apresentou o seu importante trabalho no Congresso de Psicanálise das Línguas Romênicas(1951), onde estava presente também J. Lacan, expondo os seus próprios pontos de vista.

Como ponto de partida de sua exposição, Lacan se refere ao processo analítico como sendo de natureza essencialmente dialética, dialética essa que está referenciada diretamente `a dialética hegeliana. Dessa  maneira, a análise deve ser entendida como sendo um processo onde tese e antítese, conduzem a uma nova síntese, a qual reabre e dá sequência ao processo. Em algumas palavras nos diz Lacan: o paciente oferece a tese com o seu material e nós, frente a esse material, temos que operar uma inversão dialética, propondo uma antítese, que enfrente o analisando com uma verdade da qual tenta se evadir, que seria ao conteúdo latente. Isso leva o processo a um novo desenvolvimento da verdade e o paciente a uma nova tese.”  Na medida em que as coisas ocorrem dessa forma, a transferência não aparece e nem teria porque aparecer. Nesse ponto, nos encontramos com a tese fundamental de J.Lacan : o fenômeno transferencial surge quando, por algum motivo se interrompe o processo dialético”.  Podemos notar que Lacan sempre está perseguindo, uma retificação do sujeito com o real,que ocorre como uma inversão dialética. Ao acompanharmos a evolução da teorização lacaniana, nos deparamos com certeza com a referência de que a interpretação transferencial cumpre uma função que poderíamos chamar de higiênica, na medida em que preserva o analista, porém “não diminui nenhuma propriedade misteriosa da afetividade”.


Algumas Idéias:

Sabemos que nesse tipo de teorização, o estágio do espelho é um momento fundamental de estruturação do ego. Nesse estágio, está implicada uma relação dialética entre a mãe e o filho, onde é possível para este, descobrir o seu ego espelhado nela: “ é em seu reflexo na mãe, onde o sujeito descobre o seu ego, uma vez que a primeira noção de ego é proveniente do outro”. A mãe, na verdade, se constitui no “outro”; enquanto o “Outro” é o pai da situação triangular. O pai, por sua vez, irrompe efetuando o corte nesse vínculo imaginário e narcísico entre a criança e a mãe( relação diádica). Isso leva a criança a colocar-se em um terceiro lugar, configurando o Complexo de Édipo(clássico). A  criança passa então a estar sujeita à ordem simbólica, aceitando o falo como significante que ordena a relação e a diferença entre os sexos.


Ordem Simbólica:

J. Lacan distingue três etapas no Complexo de Édipo:

Na primeira, o pai está situado na condição de um irmão, com os problemas de rivalidade próprios do estágio do espelho, pretendendo ocupar o lugar do desejo da mãe.

Na segunda etapa, o pai fica encarregado, na condição de um porta voz da cultura, de operar a castração. Esta possui um duplo sentido:

= separa a criança da mãe, fazendo-a sentir que não é o pênis da mãe.

= a mãe, de que o filho não é o seu pênis.

Na terceira etapa, encontramos um pai permissivo, doador, facilitando à criança uma identificação vinculada não mais ao superego, mas sim ao ideal do ego. Aquí, estamos naquele momento onde a criança anseia a ser igual ao pai. Chegamos a obtenção de uma mudança de foco extremamente relevante: a criança anseia por ter o falo, ao invéz de ser o falo. É nesta passagem que temos acesso a ordem simbólica, uma vez que Lacan admite, na esteira de  Freud, uma etapa fálica, onde a alternativa fálico X castrado, ou seja, a presença ou a ausência do falo, é o que vai determinar a diferença entre os sexos. Nessa circunstância, o falo se configura como símbolo, como a expressão de uma singularidade que o coloca como sendo o ‘primeiro significante’ . Notemos então, que o pênis como um órgão anatômico, fica substituído pelo falo na condição de símbolo. É exatamente a essa substituição que Lacan denomina a  metáfora paterna ”. Em outras palavras, é a lei que sujeita ao indivíduo a uma ordem simbólica, obrigando-o a aceitar a castração e o valor do falo na condição de símbolo. Dizemos que o indivíduo torna-se sujeito, isto é, se sujeita à cultura.

Isidoro Berenstein(1976), ressaltou por inúmeras vezes que o desenlace do Complexo de Édipo, implica que o filho renuncie a ser o pai, mas não a ser como o pai, que em seu tempo também teve que renunciar a própria mãe, e assim retrospectivamente.


De volta à transferência:

Na conceituação teórica lacaniana, sempre que surge o fenômeno da transferência, isso se deve a alguma falha do analista, o qual se engancha em uma situação imaginária. Lacan é aquele tipo de autor que deprecia intensamente, a ênfase psicanalítica no “aqui e agora”(priorizada no “kleinismo”. Ele entende que a interpretação transferencial não opera por si mesma, mas sim que trata-se de um espelhismo, algo que engana o analista duplamente, uma vez que o mantém no plano imaginário do estágio do espelho, e porque não o deixa operar a inversaõ dialética que se faz necessária. O conceito de realidade para Lacan, está na esteira de Hegel, e é aquela que vemos através de nossa própria percepção estruturada.


A transferência e a sua historicidade:

Em seu relevante trabalho “A direção da cura e os princípios de seu poder”, Lacan já nos diz(1958), que a resistência parte do analista, no sentido de que é sempre ele quem obstrui o processo dialético. Lacan está interessado em reconstruir a vida do paciente através da historicidade, e esse processo sofre uma grande interferência todas as vezes que a transferência transforma o passado em atualidade.

Willy Baranger(1976), em seu trabalho sobre o Complexo de Édipo, ressalta que a função específica do analista parece situar-se em um registro essencialmente paterno(independente do sexo efetivo), já que se situa no próprio limite que separa e define a ordem imaginária e a ordem simbólica. Assim, o analista sempre intervém para quebrar o espelhismo da díade mãe-filho.


O manejo lacaniano da transferência:

Já que a transferência é sempre um fenômeno imaginário, cabe ao analista quebrá-lo, transformando a relação imaginária em uma relação simbólica. Metafóricamente, diremos que esse tipo de tratamento cirúrgico, de corte, não depende do momento em que o tratamento se encontre, mas sim do analista. O não fazê-lo é entendido sempre como sendo um fenômeno contratransferencial.

No discurso que proferiu em Roma, denominado “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise”, Lacan estabelece uma diferenciação entre palavra vazia e palavra plena. Nas palavras do próprio Lacan: “ ali onde a resistência se faz máxima frente ao acesso possível à palavra reveladora, o discurso dá uma volta, faz um desvio em direção à palavra vazia, isto é, à palavra como mediação, como um enganchamento no interlocutor. Se a resistência se cristaliza no sistema especular eu-outro, enquanto o analista considera o ego do paciente como aliado, cai na armadilha especular em que se encontra o próprio paciente, ficando contido nessa relação dual e imaginária.

Para finalizar essas considerações, diremos que fica enunciada a proposição de que a transferência é um espelhismo do qual o analista tem que se separar, para aí sim restaurar a relação dialética retomando a síntese e a antítese. Dessa perspectiva, entendemos que o processo analítico só irá se constituir no instante em que o analista transforma a relação dual em uma relação simbólica, para a qual é necessário que se rompa a relação diádica e ocupe um terceiro lugar, o lugar do código, o lugar do grande Outro.

 

Bibliografia Auxiliar:

 

Willy Baranger: Posição e objeto na obra de Melanie Klein.

Jacques Lacan: O Seminário.

Sigmund Freud: Introdução ao Narcisismo(1914). Obras Completas

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