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“A terceira margem do rio”: entre a tradição e a transgressão – considerações sobre a cibercultura e a leitura.

Inicio minha reflexão sobre a articulação entre a cibercultura e a questão da leitura a partir de registros em papel: uma crônica de Veríssimo. Diz-nos Veríssimo (2007, p.7), falando da questão da televisão e sua relação com aqueles que a assistem, que o que é “admirável mesmo é este gosto nacional pela narrativa, esta reunião em torno de uma fogueira eletrônica para ouvir histórias que no Brasil se repetem mais do que em qualquer outro lugar do mundo. E no horário nobre!”. Ouvir histórias, narrativas, gosto, reunião – palavras que me suscitam imagens de um passado longínquo, no qual a tradição era sentar-se em torno da fogueira e o mais velho da tribo contar as histórias de seu povo, e os mais novos ouvirem-nas… Não há mais fogueiras nem tantas florestas assim. Como nos diz Veríssimo, hoje reunimo-nos diante de uma fogueira eletrônica que resgata o contador de histórias do passado e reúne, em torno de si, pessoas. A casa pára para ver o último capítulo; na rua muitos comentam o enredo e fazem suposições de finais ou continuidades da história que, diariamente, traz mais um pedacinho para a vida de cada um.
Dos contadores de história passamos para a leitura das histórias, agora não mais narradas, mas escritas. Estas passam a se perpetuar no tempo e no espaço.

Mas, hoje em dia, esse tempo e esse espaço ganharam uma outra dimensionalidade e a leitura no papel se articula, ou muitas vezes, é substituída pela leitura no ciberespaço. Interessante, nesse momento, retomarmos um livro de papel, agora “O conto da ilha desconhecida” de Jose Saramago( s/d). Diz-nos o escritor , na voz da personagem , que indaga ao companheiro : “Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós,

Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer,(…)” (p. 40) Tentando responder a essa pergunta dentro do contexto no qual estamos discutindo a questão do ciberespaço e a leitura eu diria que sim, que sem sairmos da ilha, jamais veremos a ilha. Se não admitirmos outros espa
ços para além do espaço conhecido, jamais conseguiremos abrir nossos espaços e ficaremos para sempre ancorados no cais.

O ciberespaço traz para nossa prática docente exatamente esse olhar da ilha a partir de um outro lugar e da construção de um novo espaço que abarca o antigo sem necessariamente o descaracterizar (escrevemos e lemos), mas nos apresenta uma outra forma de pensamento ou uma forma mais próxima da dinâmica deste pensar. Não pensamos em linearidade e igualmente posso dizer que não lemos em linearidade posto que, ao lermos, efetivamente lermos e não somente acompanharmos palavras escritas, colocamos em jogo vários outros registros que se entrecruzam em uma leitura – há dentro de nós, quando pensamos, um hipertexto e há, fora de nós, dentro do ciberespaço, outro hipertexto. A noção de hipertexto segundo Lévy (1999, p. 56), é que este “um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor”. Segundo Soares (2002, p.150), o hipertexto – é “escrito e é lido de forma multilinear, multi-seqüencial, acionando-se links ou nós que vão trazendo telas numa multiplicidade de possibilidades, sem que haja uma ordem predefinida”. Igualmente a mesma autora caracteriza, em contraste com o texto escrito que habitualmente a escola utiliza para leitura, o hipertexto como tendo a dimensão que o leitor lhe der, ou seja, seu início e fim é escolhido pelo leitor-autor de seu texto.

“A tela é uma unidade temporal”. Para Lévy (1999, p. 40-41), “o hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques, obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitor uma de suas faces, depois outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa esquematizada. Ao ritmo regular da página se sucede o movimento perpétuo de dobramento e desdobramento de um texto caleidoscópio”. Para um texto caleidoscópio surge, nesta contemporaneidade, um leitor que aprende a lidar com inúmeras facetas de leitura e de construção de um texto. A leitura linear vai perdendo a “graça” a partir de um certo conhecimento da língua portuguesa e com isso as aulas e trabalhos igualmente ficam sendo percebidos como maçantes, mera obrigação; assim como ler um livro em papel acaba, por não ter o dinamismo deste hipertexto, sendo igualmente “um tédio”.

Surge, então, no meu ver, a necessidade de criarmos, como educadores, a “terceira margem do rio”, ou seja, a construção de um espaço que nem retire da escola a importância do ler “no papel”, do ler linear, nem descaracterize o saber que o aluno já porta quando entra na escola sobre os movimentos do ciberespaço representado na sua maioria pela internet e seus múltiplos recursos. Dessa forma, nessas várias formas de construção podemos ver que é possível leitura e novas tecnologias se articularem. Acredito que contar, aqui, a minha experiência como professora de um curso de pós-graduação a distância possa evidenciar a realidade desta minha afirmação. Sou Professora da Pós-Graduação em Mídias e Tecnologia pelo CCEAD-PUC-Rio (Coordenação Central de Ensino a Distância), no projeto do MEC e, diante do que “ouvi” de meus alunos em suas experiências com novas tecnologias aplicadas em sala de aula, posso afirmar que atitudes simples têm mudado a dinâmica de uma sala de aula e de uma biblioteca.

Relatarei a experiência da Professora Maria Otacilia Pereira de Oliveira[1][i], do Acre, com sua turma nas aulas de filosofia. Ela montou algumas aulas e uma delas foi sobre “O amor, a amizade e a paixão segundo os filósofos”, utilizando os recursos que ela estava aprendendo a partir de uma disciplina ministrada no curso de Mídias e Tecnologia – Design Didático. O objetivo desta aula preparada por ela foi fazer com que os alunos lessem, compreendessem, analisassem e refletissem sobre o que caracteriza fundamentalmente a natureza humana e a importância dos afetos para a constituição da nossa humanidade, mas igualmente foi o de possibilitar aos alunos o acesso à informática como fonte de pesquisa, assim com utilizar a informática para criar uma comunidade no orkut para que estes pudessem trazer, para um outro espaço, já mais lúdico e de domínio dos alunos, as abordagens sobre o tema segundo os filósofos. Igualmente Otacília quis, com a criação desta comunidade, estar colocando em prática, através da comunicação fora do espaço escolar e de sala de aula, o tema da aula, fazendo com que os laços de amizade da turma se consolidassem mais. Suas estratégias para esta aula foram conversar com os alunos sobre o tema e, igualmente, disponibilizar o máximo de informações sobre este trazendo livros, jornais, revistas. Não ficando restrita à sala de aula, Otacília, mesmo com alguma dificuldade em relação a poder utilizar este espaço dentro de sua escola, agendou o laboratório de informática, cadastrou os alunos em um provedor. Depois seus alunos digitaram as informações extraídas das diversas fontes e prepararam slides no power-point para apresentar no fórum da comunidade, já que assim haveria uma divulgação da atividade para a comunidade escolar.

Podemos reparar, com esse breve relato, que nesse espaço criado por Otacília o aluno pode ir do conteúdo da aula e da formalidade da mesma para um outro espaço, que foi a oralidade, a partir da conversa e, depois, para a conversa partilhada para além muros escolares através da comunidade criada pelos alunos. Para efetuar essa atividade, esses alunos tiveram de ler, escrever, linkar, hipertextualizar o conhecimento e igualmente partilhá-lo com a comunidade na qual estavam inseridos ao apresentarem o power-point sobre o estudo feito para todos. Ou seja, Otacília gerou em sua sala, com seus alunos, uma terceira margem e, se pararmos para pensar, uma terceira margem só é possível quando outras duas já existem. Nesse caso, a primeira é o conhecimento do professor e a tradição escolar como um saber; a segunda é o conhecimento dos alunos em outras áreas e em outras habilidades. A terceira foi tecida conjuntamente numa inter-relação entre uma educadora e seus alunos. A terceira margem, igual a um objeto transicional (Winnicott, 1975), é algo que não cabe a nós perguntar quem a criou, ela foi gestada por um lado (educador) e pelo outro (alunos). Nesta terceira margem surge a transgressão criadora de novas idéias, e devemos nos lembrar que somente transgredirmos quando temos como lastro a tradição. Logo leitura e novas tecnologias podem sim “dar samba” e dar certo.

Referências Bibliográficas:

LÉVY, P. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.

SARAMAGO, J. o conto da ilha desconhecida São Paulo: Companhia das Letras, s/d.

SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: Letramento na cibercultura Educ. Soc., Campinas, vol. 23, n. 81, p. 143-160, dez. 2002.

VERÍSSIMO,L.F. Em torno da fogueira, Globo, 27 de setembro de 2007, p. 7.WINICOTT, D.W. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975..

[1] “Iniciei nas séries iniciais bem novinha!! Com 17 anos, apenas com magistério, no PR. Vim morar no Acre, fiz Pedagogia, concurso; fui professora de várias séries e do Magistério. Fiz especialização em Educação Infantil; fui Coordenadora Pedagógica. Hoje estou atuando como professora de Filosofia no Ensino Médio”.

[i] Trabalho e nome da aluna citados com a prévia autorização da mesma em 28/09/2007.

[1] Doutora em Psicologia – PUC-Rio; Mestre em Literatura Brasileira – PUC-Rio; Psicopedagoga– Ceperj/UNICEUB; Professora da Pós-graduação da Educação a Distância no CCEAD – PUC-Rio; Professora de Psicopedagogia – CEPERJ; autora do livro “ Rios sem discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade, Vetor, 2007.

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