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“Agora que faço eu da vida sem você”: breve consideração sobre paixão e desamparo

Acredito que a poesia de Florbela Espanca, assim como as esculturas de Camille Claudel, descrevam com detalhes o olhar da paixão. Como Florbela nos metaforiza esse estado de alma e de espírito que acaba constituindo-se em uma forma de olhar o mundo? As figuras de linguagem por ela utilizadas são de uma intensidade que se coadunam com o termo paixão e com o título da poesia – Fanatismo -, a hipérbole vai sendo construída em gradação até o verso final, no qual o “Eu Lírico” declara ser o ser amado um” Deus, princípio e fim”. A escultura Abandono, de Camille Claudel, completa essa imagem. O abandono do ser apaixonado ao ser amado, sentido como “princípio e fim” de tudo, fica marcado no braço deste ser amado abandonado no ombro do ser amante e no enlace de dois corpos que se fundem e se confundem como sendo um único.
Freud situa a questão da paixão como um desinvestimento libidinal narcísico do sujeito em si e um investimento dessa mesma libido, de forma maciça, no outro, ou no objeto amado, elevando-o, assim, ao nível de um ideal. Há, com a idealização, a produção de um fascínio e de uma atratibilidade irresistível do objeto amado por sobre aquele que ama. Na poesia, esse estado de transbordamento da libido fica evidente quando o “Eu Lírico” descreve-se como “cego” por somente enxergar o ser amado; quando este coloca o ser amado como a única razão do seu viver e de este ser toda a sua vida. Tal estado é descrito pela poetiza como um enlouquecimento, no qual tempo e espaço param de ter sentido, instaurando uma regressão a que Freud denomina de estado de onipotência infantil. O terceto final do soneto florbeliano retrata bem esse estado: “E, olhos postos em ti, digo de rastros:/“Ah! Podem voar mundos, morrer astros”,/Que tu és como Deus: Princípio e Fim!…””

Freud caracteriza esse estado de paixão, em seu artigo “Psicologia de grupo e a análise do ego”, como um estado no qual o olhar da paixão reduz o eu a uma modéstia e uma despretensão cada vez mais acentuada e, conseqüentemente, o objeto se torna “cada vez mais sublime, precioso”, obtendo ao final a posse de “todo o auto-amor do ego”, tendo como decorrência natural, inclusive, o auto-sacrifício. Como bem enfatiza Freud, na paixão “o objeto, por assim dizer, consumiu o ego”. Desta forma, as funções do ideal do eu deixam de funcionar. Para Freud, o estar apaixonado é um estado diferente do estar amando: o estar apaixonado inclui fascinação e servidão; no estar amando “o ego enriqueceu-se com as propriedades do objeto, introjetou o objeto em si próprio.”; no estar apaixonado, o ego “empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu seu constituinte mais importante pelo objeto.” Referente à paixão podemos dizer que há um investimento exclusivo no objeto, não deixando margem para que qualquer outro objeto tome o seu lugar.

Na poesia de Florbela, essa cegueira do eu em relação ao outro e a perda do princípio da realidade que o ideal de ego instaura a partir da censura interna fica evidenciada na seguinte estrofe: “Não vejo nada assim enlouquecida. /Passo no mundo, meu Amor, a ler/ No misterioso livro do teu ser/ A mesma história tantas vezes lida!”. O que importa para o “Eu Lírico”, aqui, é o outro e o olhar do outro, o corpo do outro e o desejo do outro, sentido como se fossem ele mesmo.

Claramente a poetiza metaforiza esse processo de idealização da paixão ao utilizar o enlouquecimento como imagem. O mundo passa ser algo misterioso, onde o outro possui o deciframento, e essa história não é de agora, é algo “tantas vezes lida”, ou seja, é algo que advém de uma pré-história desse “Eu Lírico”, advém de sua tenra infância, na qual o eu ideal estava sendo constituído a partir da sua identificação primária com a mãe e seu olhar. Na paixão se re-vive o estado narcísico primário e a sensação de completude. O outro é esse espelho que nos informa: “eu te vejo assim”. O ser apaixonado se vê no outro, mas o que ele vê é algo misto entre o conhecido e o estranho. O eu ideal é sucedâneo desse olhar do outro/eu especular materno. É este olhar que nos constitui porque nos espelha. Quando nos apaixonamos, o “ele” vira sinônimo de “mim” mesmo. O ser apaixonado, ao colocar o ideal no outro, recupera essa sensação de completude, de onipotência a partir do outro. Estranho deslocamento, posto que a onipotência não é mais dele e sim daquele que ele ama e a ele devota todo o seu amor. A questão, assinalada por Pierra Auligneir, de Thânatos ser mais presente na paixão do que Eros é cabalmente aqui representada no verso final do terceto – “pois que tu és como um Deus: princípio e fim”. Assim, paixão estaria ligada à morte, à morte de um eu diferenciado ou constituído como tendo “vida” própria. Mas quando o outro não mais quer se responsabilizar por esse “enlouquecimento”, o que advém?

Gostaria, nesse instante, de olhar a paixão sob outra ótica, a ótica da relação de objeto postulada por Winnicott e a questão do objeto subjetivo. Se virmos o ser apaixonado como um bebê, totalmente identificado com o objeto de seu amor, tendo criado seu objeto para o seu prazer de forma totalmente onipotente, podemos tentar entender o ser apaixonado como estabelecendo uma relação de objeto com o outro e sendo, esse outro, um objeto subjetivo para ele. Na paixão, o eu não pode usar o objeto porque o objeto está fundido com ele, não existe como um terceiro. Ele é subjetivamente concebido. O que existe é uma relação amado-amante, uma imagem na qual o jogador pula com a bola que este joga para cima, em um mesmo movimento. Ocorre o eclipse do mundo e inaugura-se um outro tempo, o da comunicação passional. Efetua-se o que Assoun denomina de fenômeno de deslumbramento erótico. O desejo do ser apaixonado é ser atendido em todas as suas necessidades, igual ao bebê; é ter “suas necessidades adaptadas e reconhecidas”. Cabe ao outro perceber, antes dele, o que deve ser feito!

O conceito de“objeto sobrevivente” postulado por Jan Abram é interessante para o estudo da paixão. O objeto sobrevivente é o objeto necessário de ser construído pelo sujeito para que este possa alcançar o status de poder olhar para a vida de forma criativa e objetiva, ou seja, para que possa usar o objeto e ter em si objetos objetivamente percebidos. Quando o objeto subjetivo é abruptamente passado para objeto objetivamente percebido, o sujeito acaba por possuir em si não o objeto sobrevivente, e, sim, um objeto não sobrevivente que sobrepuja o objeto sobrevivente não desenvolvido. Há a quebra da ilusão e a passagem abrupta para a desilusão (ou realidade), e o desamparo, mascarado e ocultado pela onipotência e perfeição narcísica posta pelo eu no objeto, se apresenta de forma inquestionável. Assim, o objeto que antes sombreava o eu, ofusca-o com sua realidade e singularidade, se introduz, intrusivamente, em um momento ainda não propício para tanto. O que resta ao ser apaixonado, que se vê diante do outro que não mais o quer, é o objeto não sobrevivente. O objeto introduz, no espaço da paixão, a questão da crueldade e do desamparo. O que não era visto, passa a sê-lo.

A escultura de Camille Claudel, “A Suplicante”, imageticamente nos demonstra o desespero da procura de uma pessoa, que antes possuía o embraçar em um movimento sim-bólico, e, de repente, se vê diante de uma falta sentida por ela como quase que irremediável. Há uma súplica a espera de ser ouvida, quem sabe, e uma espera de ser preenchido o vazio dos braços a esmo estendidos em um movimento dia-bólico, em espasmo. Se retornarmos a Freud , em “Mal estar na civilização”, veremos que ele nos adverte quanto ao sofrimento que o amor traz para o ser humano, pois quando este amor é correspondido, o sofrimento está presente de forma latente, mas quando não correspondido ou quando perdido, estamos mais desamparados e infelizes ainda.

Os versos buarquianos, na poesia Atrás da Porta, demonstram esta conseqüência da perda abrupta do objeto amado. A crueldade do objeto (olhar de adeus) imposta ao eu (quando olhaste bem nos olhos meus) traz a ele sofrimento: o objeto diz “não” quando o eu quer ouvir, como sempre, “sim”. Dessa forma o desespero se encena e atua como um exacerbado direito desse eu ferido e narcísico, tal qual um bebê que grita e esperneia quando não é atendido em seus desejos de forma plena. A solidão do “Eu Lírico” fica evidente nos verbos utilizados como expressão desse desamparo sofrido “na pele” (eu te estranhei, me debrucei sobre o teu corpo e duvidei). Surge, para além do desamparo, o estranhamento do objeto passional, ele não é mais o mesmo e este eu tentará fazê-lo retornar a sê-lo.

Os atos que decorrem dessa descoberta abrupta são atos de desespero, que demarcam o absoluto desamparo no qual o “Eu Lírico” se encontra frente à perda do eu ideal projetado no outro (me arrastei, e te arranhei, e me agarrei nos teus cabelos, no teu peito, teu pijama,nos teus pés ao pé da cama). O desamparo que surge, na perda do objeto passional, advém da consciência repentina que o eu toma de si mesmo. Antes do desamparo, do teatro de dores que o ser seduzido e abandonado expõe a partir e através de seu corpo e de seus atos em direção ao objeto perdido, há a angústia de já ter passado por uma perda igual muito antes desta, revivida neste momento. (Sem carinho, sem coberta, no tapete atrás da porta, reclamei baixinho)

Assoun enfatiza o trauma escópico que o eclipsar do outro constitui e re-encena como revivescência de um outro eclipse, o materno, quando esta, não mais seduzida pelo bebê, desvia seu olhar deste. “Nesta ocasião o infans fica sem voz, medusado pela dor, entre o silêncio, espasmo do soluço, por isso percebemos a instauração do terremoto corporal no qual ele "realiza" a ausência do outro”. Este autor correlaciona esse trauma e drama escópico de origem com o drama encenado pelo amante que perde o amado, em que perder de vista o objeto passional é perder-se de igual forma ou da pior forma possível. Se o ser apaixonado foi abandonado antes de o processo de apaixonamento ter acabado ou se transformado em amor ou em desamor: fica a este ser a opção de vivenciar a morte da paixão. Vivência dolorosa e mortífera na maioria das vezes. (XX)

Quando se rompe a ilusão, a fulminação descrita por Assoun, que o tempo passional constrói na fusão de dois corpos/seres, o que surge é um estranhamento: a cena do dueto e da visão única e plena dá lugar à cena do sem voz (afonia) e da dor do olhar. Encolhemo-nos diante do abandono, diante da dor, diante do desamparo. Nosso corpo verga, nossos olhos truvam, nossa voz sucumbe. O mundo fica sem cor, mesmo que cor possua. A imagem de O homem agachado exprime esse momento no qual palavras não conseguem descrever o estado psíquico em que o ser amado, perdido em si, se encontra. O que havia era um diálogo de surdos, um monólogo a duas vozes. Quando uma voz emudece porque se vai, a outra fica ecoando no vazio.

O apaixonado pagou em sua pessoa, fisicamente, para sustentar este amor sem limites. Esse descompasso a dois é marcado por Assoun em uma linda imagem: a paixão se inscreve e se vive, com a mesma intensidade, mas segundo duas modalidades fortemente contrastadas, como se a letra e o ato não “rimassem”. “Letra e ato não rimam”, nunca “rimaram” no apaixonamento, são descompassos. Há o colapso do eu, a sensação de desamparo fica insuportável. Resta ao ser amado, diante do vazio que o objeto passional deixa, a dor e a necessidade de “desencaixar-se” daquilo que antes era parte dele, ou ele assim o via. A poesia “Você não me ensinou a te esquecer” fala dessa perda e deste vazio com precisão mortífera: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer. Você só me ensinou a te querer. O aspecto mortal do apaixonamento advém não do confronto do ser impotente com a ausência ou a falta, mas, como nos alerta Pereira, pela entrega deste ser (…) ao encanto de um olhar que promete satisfazê-lo de modo absoluto.

Recorro mais uma vez à arte para descrever esse momento de perda do objeto, momento de dor e de desespero, que nem sempre sabemos lidar com ele. Fica aqui a voz e o olhar da paixão perdida segundo Inês Pedrosa, escritora portuguesa que nos fala , de forma poética, aquilo que teoricamente, há quase 65 anos atrás, Freud já nos avisava : que a pior dor é a dor da perda do objeto amoroso e o pior desamparo também.

“Eu só queria ver de que material era feito o teu amor por mim. Precisava de escangalhar o teu coração para o fazer encaixar no meu. E agora tenho que o desencaixar outra vez para sair deste limbo. Mas não sei como. Sem o teu coração não consigo amar – não me abandones outra vez. Logo eu, que amava o mundo inteiro, não é ? Amar em abstracto é muito mais ágil do que amar em concreto”.

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