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Rede Globo anuncia a novela “Amor secreto”: reflexões sobre um atendimento de uma criança com síndrome de Asperger

O presente artigo pretende refletir sobre a importância de haver a instituição do espaço potencial como percussor da capacidade de uma criança poder brincar e se expressar através de símbolos. Aqueles que ficam aquém da transicionalidade, ou seja, ficam siderados na dependência absoluta, numa simbiose mãe-filho, acabam não conseguindo se constituir como um sujeito autor de sua própria história, nem como um sujeito cognoscente encarnado, real, relacional e afetado pelo outro e afetante do outro. Esse artigo igualmente quer discutir a importância do manejo clínico em situações nas quais o psicopedagogo é chamado a intervir, não somente na seara clínica, mas, e principalmente, na seara escolar e familiar. Para que essa questão seja discutida, apresento a vocês o atendimento de uma criança portadora de síndrome de Asperger, hoje com 10 anos, iniciado quando ela tinha 5 anos. Ao longo desse tempo foi-se constituindo, entre a criança e eu, um espaço de confiança e sustentação, um espaço que possibilitou o acolhimento não somente dela, mas, também, de sua mãe e irmã, para, hoje em dia, estar somente a criança em atendimento com ela.
Ao poder acolher e suportar esse amálgama familiar, eu consegui, ao longo desses 5 anos, modificar significativamente a dinâmica familiar; mudar o olhar que tinham para esta criança, mudar a forma de a escola se relacionar com ela. Dentre todas essas mudanças, uma, ocorrida há um ano, fez uma diferença marcante, mutativa, na modalidade de aprendizagem e na maneira de ver o mundo desta criança. Há um ano, se instituiu, entre mim e ela, uma história, quando me disse: “titia Vicky a Rede Globo anuncia os próximos capítulos da novela do amor secreto”. A partir desse momento, passaram a povoar a sala de atendimento um saquinho plástico, um boneco de nome bonitinho, um boneco vilão e um beijo entre bonitinho e saquinho, mas, antes de tudo um segredo: dessa história, desses personagens, vividos por sessões seguidas e re-contadas entre os dois, a cada dia de encontro, a mãe desta criança jamais soube da sua existência.

Iniciava-se, assim, uma história sobre uma “história de amor”, a possibilidade de um segredo, a possibilidade de um “fio” ser cortado e de um sujeito psíqui
co advir enquanto tal no lugar de um NÓS eternamente repetido em ecolalia. O que se ratificou na análise deste caso foi a entrada da simbolização, a questão da importância do vínculo para a aprendizagem e a importância da inclusão do outro na vida de uma criança que estaria, talvez, fadada a ficar amalgamada numa dinâmica familiar psicotizante.

 
O INÍCIO – dependência absoluta e agonias impensáveis (2003)

Eu jamais havia tido em minha experiência clínica uma criança com essa Síndrome, mas, numa tarde de atendimento rotineira no CIAP-PUC-Rio, sou chamada ao telefone. Era a diretora de uma escola pública que eu conhecia, pois estava atendendo algumas crianças a seu pedido. A diretora me solicita que receba, para somente “dar uma olhadinha”, um menino que estava no antigo CA porque ele era esquisito, tinha comportamentos anormais, não falava com ninguém direito, andava de quatro pela sala e falava com uma mochila.

Pedi à diretora que me encaminhasse a criança. Fiquei pensando, ao desligar o telefone, como podia uma criança ter passado para essa escola pública, que possui uma prova de entrada muito severa e ter esse tipo de comportamento. Fui estudar a respeito e encontrei algumas coisas sobre “Síndrome de Asperger”. Levanto esta hipótese e a guardo para mim, afinal não conhecera ainda nem mãe, nem filho.

Falo com a psiquiatra da instituição e ela me diz que poderia examinar a criança para confirmar a minha hipótese, que parecia poder ser pertinente, e igualmente ler os exames que esta mãe traria para ela, a partir de exames psiquiátricos. Foi marcada, então, uma entrevista com a psiquiatra.

Uma semana depois chega mãe e filho na sala de espera do CIAP-PUC-Rio. Mãe nervosa, falava alto; filho preso à perna da mãe e ninguém conseguia desatar os dois. A pedido da psiquiatra da instituição, entro no processo para facilitar o exame da psiquiatra e, devagar, vou tentando separar mãe e filho. Digo que a doutora precisava ver o menino sozinho. A mãe reluta, diz que não gosta de se separar do filho. Pergunto a ela se, por acaso, ela não aceitaria que o filho entrasse na sala da psiquiatra e que nós duas ficaríamos no corredor ou numa sala em frente com as duas portas abertas. Ela me diz que poderia ser, mas como ela saberia que o filho não fugira? Como ela saberia que ele não pulara a janela? Eu respondo que teria uma solução, seria colocar um fino barbante de lã que eu tinha na minha caixa de trabalho e ela seguraria uma ponta e o filho a outra. Ela gosta dessa idéia, falo com a psiquiatra, que igualmente concorda e assim fazemos.

Passo o tempo da sessão sem precisar saber do tempo porque a cada 15 minutos essa mãe puxou o barbante…

Igualmente ela aceita sair do corredor para a sala quando, ao perguntá-la em que trabalhava, me informa ser assistente de maternal. Nesse momento falo: “então somos colegas de trabalho!!!!!!”. Ela se sente acolhida e senta-se para conversamos. Ela se apresenta: “Sou Marina e meu filho se chama Marcelo”. Digo a ela, “como lhe disse antes, sou Vicky”.

Falamos primeiro do trabalho que fazíamos com crianças, depois ela começa a contar a sua história; uma triste história de buscas, de desencontros e principalmente de preconceitos. Enquanto ouvia me perguntava: “Meu deus!!! Eu não sei nada sobre isso, como acolher e atender essa criança aqui??”, mas igualmente em mim havia uma certeza, a mãe queria o filho bem, ela buscava há muito tempo uma saída, ela tinha esperanças e eu, acolhendo-as (mãe e esperança), poderia dar um destino melhor, quem sabe, a esse menino… Quem sabe um dia ele não poderia advir como sujeito psíquico e autor de sua própria história de vida?

Apesar de o CIAP não prever atendimento para crianças com síndromes difíceis, resolvi tentar, resolvi acreditar que mesmo nada sabendo sobre essa Síndrome eu saberia lidar com a criança que ali estava, na outra sala. Resolvi acolher a criança e não o rótulo que davam a ela. Apostei na saúde e não nas impossibilidades que poderia Marcelo ter.

Ao longo do tempo do atendimento da psiquiatra com Marcelo, fui avassalada de perguntas: “Doutora, meu filho não é louco, é? Ele não é um bichinho, é? O médico que atendeu Marcelo disse que ele é autista, ele não é isso, não é? Ele será sempre assim, diferente?” Marcelo foi rejeitado na creche e disse para mãe “poxa eu devo ser muito mau, os meninos não querem brincar comigo”. Diante do que jamais ouvira nos meus atendimentos de pais, diante do que nunca estudara com profundidade – autismo -, eu tentava acolher a dor daquela mãe.

Quando acaba o atendimento de Marcelo com a psiquiatra, ele irrompe pela nossa sala, abraça a mãe e diz: “Eu amo mamãe!” Marina olha para mim e diz “Nós gostamos de você, titia Vicky, nós viremos na próxima sessão para você poder entender o que ele tem”. Eu digo: “Marina eu não conheço o Marcelo, será que não seria bom sermos apresentados para ver se ele gosta de mim?” Ela vira-se para mim e fala com firmeza: “Nós gostamos de você”. Marcelo, jamais me encarando, com gestos sociais estereotipados, não se separando de sua mochila, estende a mão para mim e diz: “Muito prazer, Marcelo. Nós gostamos de você, titia Vicky”. Mãe e filho falam igual, uma fala infantilizada e ambos, mãe e filho, sorriem o tempo todo.

A partir dessa tarde eu passei a ter, uma vez por semana, esse menino e sua mãe juntos na sala de atendimento e um desafio: como lidar com algo que eu não conhecia, como entrar nesse NÓS que me excluía? Como entrar nos nós que enodavam a afetividade e o relacionamento de Marcelo com o mundo, já que ele não apresentava, aparentemente, nenhum grande comprometimento cognitivo?

A primeira sessão com Marcelo foi mais fácil do que imaginei. Ele entrou com facilidade, a mãe permaneceu no corredor. Ele possuía tiques, fala estereotipada e totalmente voltada para o seu mundo, onde não havia a menor forma de entrarmos em contato. Não olhava nos olhos em momento algum, o olhar vagava entre alguma coisa que o interessava e o teto, a janela…. me atravessava, lá eu não era ninguém naquele momento. Dizia frases como “se eu morrer vou para panqueca”. Suas regras em qualquer jogo (e sempre era o mesmo jogo, o peteleco) eram arbitrárias, advindas de seu mundo. Gritava Brooklin!!!!!!!!!!!!!!! Eu associei esses gritos a coisas boas na sessão e, um dia, perguntei a ele se era isso; ele disse É, é gol!!!!!

O MEIO – construções e dependência relativa – o símbolo começa a ter entrada (2004-2005)

Ao longo de 2003/2004 fiz um trabalho com as professoras de Marcelo para que elas entendessem que o tempo dele era diferente. Consegui fazer com que ele pudesse ter um tempo maior para execução de trabalhos e provas, retirando Marcelo das aulas que não gostava para continuar a prova ou trabalho. Ele foi gradualmente ganhando um ritmo de escrita melhor, ela não era mais aglutinada de forma que se tornava ilegível. Conversava com a mãe para que reforçasse em casa a coordenação motora fina de Marcelo, e isso era feito no período em que ele ficava com a mãe na creche onde esta trabalhava.

Igualmente ensinei a Marcelo a empurrar quem o batesse, a ter de comer na hora do recreio, a como comer, a falar para a professora quando gozassem dele ou não permitissem ele participar de brincadeiras. Treinávamos isso com a mão esquerda e direita, treinávamos isso ele me empurrando, enfim minha sala de atendimento era o mundo dele e nele ele crescia e aprendia a se proteger.

Em 2004 resolvi atender ao pedido de Marina para eu conversar com ela, já que esse pedido já tinha aparecido ao longo de 2003 e ela só aceitava a “titia Vicky” para conversar. Assim, além de Marcelo, passei a ouvir Marina toda semana, tentando, nesse momento, diminuir a angústia dessa mãe, fazê-la ver Marcelo não como o louco que disseram que ele era, e sim como uma criança normal, mas especial. Apostei na mudança de olhar desta família para Marcelo. E como a família se resumia a Marina, Marcelo, um pai que poucas vezes eu vi e a irmã, Flávia, fui acolhendo quem eu pude e ouvindo as histórias que me contavam, enquanto os atendimentos de Marcelo iam acontecendo em um outro dia e horário.

Durante 2003, o brincar de Marcelo era dele com ele mesmo… girava bolinhas de gude, girava dados… Mas nesse tempo, no início de 2004, eu iniciei uma brincadeira de reconhecimento do seu corpo, ou seja, primeiro desenhei a mão direita e a esquerda em um papel.

Ele jogava peteleco, sendo um time a mão direita e a outro a esquerda. Eu era somente “nada” ou no máximo uma espectadora, nunca chamada a participar. No fundo eu era um objeto subjetivo, parte do mundo onipotente de Marcelo, servia a ele da forma que ele me demandava. “titia Vicky, Marcelo quer futebol”. “titia Vicky, Marcelo quer as balisas”. Quando desenhei suas mãos no papel eu disse: “Marcelo, são então dois times, não é? Logo, agora temos o time da mão direita e o da mão esquerda”.

Passei um longo tempo vendo mão direita e esquerda jogarem e uma ganhava a outra não e tudo isso era relatado em todos os detalhes para a mãe na saída da sessão.

Um dia perguntei a ele qual mão era maior, a minha ou a dele? Ele disse “Marcelo”. Eu respondi, “será”? Aí peguei a tinta guache e pintei a mão de Marcelo e a minha, cada uma com uma cor. Ele estampou suas mãos nas minhas e se espantou de as minhas ficarem marcadas em parte na dele. Nesse momento ele se questionou “Marcelo, titia Vicky?” Iniciei, então, uma brincadeira de fazer carimbo. Marcamos as mãos no papel e, a partir desse dia, brincar às vezes de carimbo por um tempo de 5 a 10 minutos era algo como uma quebra de rotina entre a bolinha de gude que rodava ou era arremessada para a parede e uma tinha de bater na outra e somente Marcelo podia detectar a regra ou quem ganhava, em um amálgama de bolinhas que em nada se diferenciavam.

Ao longo de 2005, Marcelo se modificou. Parou de somente brincar com peteleco e começou a brincar de jogo de botão, sendo o chão da sala o campo, depois a mesa da sala. Íamos criando espaços de brincar. Nesse momento ele descobriu uma caixa com brinquedos de madeira e começou a brincar com ela. As figuras semi-estruturadas passaram a ser a platéia do jogo de botão.

Devagar eu passei a ser a torcida ou da mão direita, ou da esquerda. Tinha de fazer com que pedacinhos de madeira ou bonecos de madeira fossem essa platéia e depois fossem a torcida. E a torcida faz barulho e eu sou a torcida inteira!!! Eu gritava, vaiava e, se me esquecia de que lado estava o gol, Marcelo dizia: “titia Vicky, platéia”.

Com a questão do futebol, passei a pedir a Marcelo que escrevesse o placar. A princípio ele não gostou, detestava escrever, então eu escrevia uma letra, ele outra; depois ele passou a escrever com letra bastão porque o que ele detestava era escrever em letra cursiva. Ainda dentro da brincadeira de futebol, eu passei a ser também o juiz, mas claro que quem me dizia quem ia ganhar, se havia pênalti ou não era Marcelo. Já tínhamos saído do peteleco e agora eu já era para ele um rudimento de objeto transicional: algo começou a mudar em Marcelo.

A defesa do jogo de botão de Marcelo, igual a sua letra cursiva, era aglutinada, não havia defesa, o gol, na verdade ficava totalmente aberto nas laterais. Marcelo não tinha defesas, a que ele possuía era o estado autístico, o desligar-se quando o mundo o invadia com barulhos que não entendia.

Ao gostar de brincar de carimbo igualmente Marcelo se aproxima das tintas e de vez em quando desenha. Mais uma vez inicia-se aqui uma conquista, Marcelo estava passando do não reconhecimento de si para uma descoberta do corpo e mais tarde para o desenho, base necessária para o signo fazer sentido e o escrever igualmente assim o fazer para ele.

Apesar de seus desenhos não serem freqüentes, houve um período em que Marcelo repetiu um mesmo desenho de diversas formas, mas nesse repetir algo emerge para ele e ele se assombra: O outro lado do papel. Fazendo um desenho com tinta em cima de um desenho com lápis, do outro lado da folha ele vê estampado seu desenho no outro desenho e diz: “Tem dois desenhos, mas um de um lado e outro do outro, como assim?” Acredito que nesse momento Marcelo pode perceber, por momentos, algo das diferenciações (um lado e outro lado) e perceber que algumas vezes o inusitado pode aparecer, mas não nos avassalar.

Logo após esse período de desenhos de bandeiras do Brasil, Marcelo faz, pela primeira vez, para mim, uma brincadeira de adivinhar. Ele desenha uma série de linhas e me pergunta: “titia Vicky o que você está vendo?”. Eu olho, olho e somente consigo ver um dragão e digo isso a ele. Marcelo ri seu riso estereotipado, mas no fundo desse riso há algo diferente. Responde-me: “titia Vicky, titia Vicky, bobinha”. Inverte o desenho e diz: “Um homem”, colocando um ponto no círculo que havia no desenho. Rimos juntos e eu digo a ele: “Marcelo, desta vez você me surpreendeu!!!!”

No segundo semestre de 2005 um sentimento aparece – a raiva. Jamais Marcelo nomeou ou exprimiu sentimentos, a não ser o “eu amo titia Vicky”, ou o deixar-me abraçá-lo ou ele me abraçar. Nada além disso. Se perguntava como tinha sido o dia dele, ele dizia “bom”; se perguntava se tinha tido algum problema na escola, ele dizia “não, foi bom”. A raiva aparece em uma sessão, quando eu o venço no jogo de botão. Ele diz “Tô com raiva de você titia Vicky, você está roubando. Assim não vale”. Ele desarruma todo o time com as mão acabando com a brincadeira. Nessa sessão pergunto a Marcelo “Quando você fica com raiva você se desarruma como seu time, mas depois que você pode dizer que está com raiva, você melhora, né?” Ele responde “É”. Também pergunto: “Esse seu tom de raiva é tom de escândalo?” – o colégio tinha dito para mim que ele fazia escândalo, mas ele me dissera que não, que ele sempre falava baixo. Ele responde, “É”.

Com Marcelo o suportar o silêncio era um movimento habitual. Tanto minha fala para com ele, assim como minhas perguntas, tinham de ser muito poucas. As respostas de Marcelo a elas se resumiam sempre a monossílabos ou a curtas frases. Ele não gosta até hoje de perguntas, diz “você está enchendo a sala de palavras”, ou “você está enchendo minha cabeça de questões”.

Outra brincadeira que aparece é o brincar de saco come peças. Marcelo espalhava muitos brinquedos e para guardar eu iniciei a brincadeira de saco que come as peças – ele tinha de acertar os brinquedos no saco até tudo ficar arrumado. Esse saco devia fazer nhamnhhame e falar com voz infantil. Marcelo pedia para que o saco tivesse voz fina, depois grossa e que chorasse quando não ganhava comida. Eu sou tudo isso nesse momento e em todos os outros momentos, eu sou o saquinho comedor – nesse momento de um rudimento de objeto transicional passo a existir no mundo de Marcelo como um objeto transicional, ele já distingue no brincar o eu do não eu. Abre-se o espaço potencial de criação.

Ao longo do tempo, o saquinho comedor, que ficava do outro lado da mesa de atendimento para comer todas as pecinhas, passou a ser um saquinho que tinha boca (a abertura do saco, onde minha mão se encaixava) e falava “ eu amo você”, dava beijos em Marcelo e em mim. Eu, com meu braço, a representava, ou melhor era a própria saquinho.

Outra conquista de Marcelo acontece mais para o fim do ano quando, vendo o jogo peteleco, percebe, pela primeira vez, que há pinos de duas cores. Diz “tá tudo misturado titia Vicky”. Explico a ele que não estão misturados, que são dois times, cada um com sua cor – vermelha e verde. Nesse momento o peteleco virou um brinquedo com regras e, pela primeira vez, Marcelo jogou sabendo que havia dois times e ele não era os dois times ao mesmo tempo. Inicia-se aqui o brincar compartilhado.

Em um certo momento, perto do fim do ano de 2005, Marcelo resgata o saco comedor e assim iniciamos um diálogo de “eu amo você”. Interessante percebermos que aqui, o “eu amo você” passa a não ser seguido do “mamãe” ou do “titia Vicky”, agora essa enunciação era entre ele e um saquinho, ou melhor, uma saquinho apaixonada. Inicia-se a fase do enamoramento. Ele abraça o meu braço-saco e diz “Você não pode não gostar de minha psicóloga. Ela te ama”. Eu, nesse momento, ganho uma função, sou a psicóloga-psicopedagoga de Marcelo, ganho um lugar de amor – a saquinho não pode não gostar de mim já que eu cuido e gosto de Marcelo. Aqui não mais há a figura materna inicial, amalgamada. Entrei nesse lugar para, como um objeto transicional, iniciar o processo de constituição de um tempo de espera, de um acalmador e de substituições possíveis.

A partir desse momento sempre há o futebol, uma disputa entre dois jogadores pelo olhar e beijo de saquinho. Iniciamos um processo de escrever no quadro mais uma vez, só que agora não mais placares e sim frases. Escrevemos o que cada um quer dizer para o outro. Escrevo “eu amo você” Ele escreve “Eu amo muito você”. Eu escrevo: “Eu adoro você”. Ele escreve “Eu gosto muito de você”. O escrever passa a ser, nessa época, um brinquedo também, a partir da relação saquinho-Marcelo. Nesse momento ele volta-se para o saquinho, para os dois lutadores, volta para o quadro, lê o que escrevi, apaga e toma o quadro todo, dizendo bem alto “EU ADORO VOCÊ”. Depois fica quieto e no fim da sessão me diz: “a rede globo anuncia os próximos capítulos da novela do amor secreto”.

Essa novela passa a ser habitada por um vilão, que quer o amor da saquinho; pelo Bonitinho, que é o namorado da saquinho e pela Saquinho, o antigo saco comedor. Bonitinho leva saquinho-meu braço para passear, para lanchar e sempre luta e vence o grande Vilão.

Diferente de todas as outras vezes, Marcelo, ao sair da sessão, relata somente parte desta à mãe. Da novela do amor secreto Marina nunca veio a saber até hoje. Com a abertura do espaço do brincar, do espaço do surgimento do símbolo rudimentar na triangulação simples que aconteceu nesse tempo todo de atendimento ao longo de 2005, surge a possibilidade de Marcelo guardar com ele algumas coisas boas, ou seja, surge um segredo entre mim e ele, não partilhado com a mãe. Eu, lentamente, passo a ser alguém que ele confia e que ele já vê como diferente dele e da mãe.

HOJE EM DIA: rumo à independência – a inscrição da diferença e de um espaço de guardar coisas e não contar tudo – agonias podem ser faladas – medo, vergonha e mentira (2006,2007)

Em 2006 Marcelo muda de ambiente. Foi difícil para ele aceitar a mudança. Eu saíra do CIAP-PUC-Rio porque meu doutorado terminara. Procurei no espaço da PUC, um local para onde eu poderia levar comigo as crianças que eu atendia e fui acolhida pelo NOAP-PUC-Rio, já que sou psicopedagoga e as crianças que eu atendia no CIAP-PUC-Rio possuíam problemas de aprendizagem. Passo a desenvolver um trabalho com as crianças que chegam para triagem neste espaço e continuo a atender Marcelo.

Neste novo lugar, o que manteve Marcelo calmo foi a presença da caixa de trabalho que ele conhecia e saquinho, bonitinho, os vilões. No NOAP Marcelo inicia uma nova fase de conquistas. Diante de novos brinquedos começa a ousar experimentar novidades como o Jogo da Pizza Maluca ou o dos Dragões comedores (nome dado por ele a um jogo que lá existe).

Marcelo começa a interagir com a história do saquinho e do bonitinho Pergunta-me, “olha quem está aqui titia Vicky? Saquinho”. “titia Vicky você tem ciúmes de mim?” Eu digo que não muito. Nesse momento, o saquinho cai da cadeira onde estava e eu rio e falo: “O saquinho desmaiou porque você disse que eu tinha ciúmes de você !!!” Marcelo ri e, pela primeira vez, seu riso não aparece como totalmente estereotipado, não mais sem significação ou como descarga de tensão, e sim um riso pela situação.

Outras conquistas vão acontecendo. Marcelo começa a encarar-me por segundos nos olhos; começa a saber distinguir certos sentimentos como tristeza e raiva. No meio dessas surpresas que Marcelo vai me oferecendo, uma foi especialmente importante e extremamente marcante. Numa sessão, no fim do ano de 2006, Marcelo pega meu rosto e diz “eu gosto de você titia Vicky”. O que senti nessa hora foi que algo havia mudado em Marcelo, havia alguém lá dentro quando essa frase foi-me dita, muito diferente das outras vezes. Desta vez o vocábulo EU não era um eu repetido em ecolalia, como cópia de uma fala: eu era eu, e ele era ele. Neste dia eu chorei quando ele saiu da sala.

Outro fato marcante deste ano de 2006 foi Marcelo conseguir mentir para a mãe. Isso aconteceu quando Marcelo “falsificou” a assinatura da mãe em um bilhete da escola porque não queria levar bronca, já ele não havia feito o dever de casa. A mentira entra nesse espaço como possibilitadora de um segredo ou um espaço de segredo advir.

Nesse evento também aprende a questão das relações de causa e efeito, porque conversamos, eu e a irmã dele, com ele, sobre o que havia feito e como isso não era algo bom de ser feito. Ao final dessa conversa, Marcelo e Flávia choram (Marcelo nunca havia demonstrado tristeza através do choro). Ele pede desculpas à irmã e eu escrevo para o colégio avisando que havia conversado com ele sobre o que acontecera.Marcelo diz nesse dia: “Eu levo o recado titia Vicky, já sou grande”. Realmente ele estava crescendo, e rápido!

Nesse fim de ano de 2006 Marcelo começou a falar dos medos que ele tem: medo de porta aberta, fantasma, cachorro (pavor) de escuro e coisas terríveis, barulho de ônibus. Medo de que alguém bata nele, que ele caia, de que perca alguma coisa (meus brinquedos, minhas bolas, meus amigos, meus tios, minha avó, minha madrinha, amigos de coração o Mateuzinhos, Daniel, Daniel Barretos e Cleber, papai mamãe e Flávia e de sexta feira 13). Em um outro momento diz que rói unha quando tem medo e vergonha Falar dos medos foi outro avanço. Eu os sabia devido aos relatos da mãe, que em 2006 já não mais era ouvida por mim, e sim por uma colega. Ela aceitara ter outra psicóloga, aceitara que a filha mais velha levasse o Marcelo e passara a trabalhar o dia todo. Assim Marcelo precisou aprender a “se virar” sem a mãe o tempo todo.

Falar dessas agonias impensáveis, dar a ela um sentido e uma voz é diminuir a angústia e abrir um espaço maior para criação, já que elas passam a fazer parte de uma cadeira de significados que podem advir e surgir e serem entendidos. Suportar a distância materna, aceitar mudanças, abrir-se para o mundo é crescer…. Em minha sala de atendimento no NOAP, Marcelo crescia mais um pouco para um vida compartilhada. Eu era agora alguém totalmente diferenciado dele. A letra cursiva vira realidade, grupo de amigos começa a povoar a vida de Marcelo.

Em 2007, outra mudança de setting. Marcelo passa a ser atendido por mim em meu consultório. Não podia mais ir até o NOAP no segundo semestre e, assim, o convido para estar comigo no meu consultório. Marcelo aceita, já estivera lá algumas vezes nas férias da PUC ao longo desse tempo todo de atendimento. Levo comigo a caixa de atendimento. Ao entrar na nova sala ele pergunta pela caixa e, vendo-a, diz “titia Vicky, você trouxe também saquinho?”. Ao abrir a caixa ele vê seu mundo lá dentro: bolinhas de gude, peteleco, saquinho, bonitinho, vilão. Pergunta pelos brinquedos preferidos, eu não os tinha ainda mas prometo comprá-los. O NOAP continuava presente dentro deste menino. Ele me pergunta pela secretária do NOAP, diz sentir saudades dela. Diz que a sala era bonita, mas que ele tinha medo de cair (o consultório fica em um andar alto). Mostro para ele que havia vidro e que havia cortina e ele não veria lá fora e nem eu o deixaria cair porque eu e ele éramos amigos.

Dentro desse novo espaço, mas que continha todos os outros espaços (CIAP e NOAP), Marcelo continua seu movimento de “rumo a independência”. Fala mais sobre a escola e a sua casa. Conta para mim que tocou Carmina Burana na flauta doce e traz a gravação do celular da irmã para eu escutá-lo. O espaço da arte amplia a capacidade de Marcelo se situar no mundo em que vive. Como nos diz Winnicott (1996), quando nos fala dos círculos concêntricos, a criança sai da casa, para a porta da casa e o quintal, depois sai para a rua, para a escola e depois para o mundo, entendendo-se mundo como a comunidade e o espaço da cultura. Esse movimento era claro em Marcelo.

Hoje, Marcelo partilha as regras dos jogos que inventa, aceita que eu acrescente coisas nas regras. Hoje, ele discrimina detalhes dentro de um todo e vê o todo a partir dos detalhes. Sabe dizer se não fez a tarefa escolar porque não quis ou porque não entendeu. Já levou advertência por brigar na escola, já tirou notas baixas e soube me dizer se era porque ele não havia estudado, se era porque o tempo não deu, ou se foi porque ele não entendeu nada.

A brincadeira da Saquinho, Bonitinho e Vilão ganha enredo. Agora a “Rede Globo anuncia, a novela do amor secreto” é uma história e não mais algo vivido por Marcelo como um objeto transicional. Ele agora já pega a Saquinho e imita a voz que eu faço, introduziu um outro vilão, irmão gêmeo na história e criou o “grande amigo cubo gigante”, amigo de Saquinho e Bonitinho. Agora há uma triangulação mais complexa nessa história onde o eixo são Saquinho/Bonitinho e Grande Cubo Gigante e Vilão, Irmão Gêmeo e Bonitinho. Essa complexificação simbólica leva Marcelo a poder entender outros esquemas mais complexos e a possibilidade da interpretação de texto começar a ser possível de ser trabalhada.

Podemos ver, através do relato dessas sessões que Marcelo consegue agora ter uma posição subjetiva, que a simbolização entra em sua vida e que ele começa a advir como um sujeito desejante. Podemos igualmente ver que sonhar sonhos muitas vezes aparentemente impossíveis, lutar quando muitas vezes é mais fácil ceder ou deixar que outros tratem do problema que a nós chega, vencer inimigos muitas vezes aparentemente invencíveis faz do nosso trabalho diário com sintomas, com fracassos a partir da potencialidade escondida, adormecida nessas pessoas, um processo de resiliência frente a tudo aquilo que nos diz “não vá por aí”. O maravilhoso disso tudo, de não aceitarmos o caminho fácil, de não irmos pelo lugar previsto, de aceitarmos o positivo para dele advir as mudanças é que muitas vezes, se não na maioria das vezes, conseguimos mudar certos percursos e darmos vida nova a uma criança fadada a estar, talvez, presa a um destino pré-traçado por rótulos desnecessários.

Referências Bibliográficas

Maia, M.V.C.M (2007) “Rios sem discurso”: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade São Paulo: Vetor.

Winnicott, D.W. (1996) Tudo começa em casa São Paulo: Martins Fontes

____________ (1975 ) O brincar & a realidade Rio de Janeiro: Imago.

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