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Reflexões acerca da organização do trabalho e as implicações na saúde do trabalhador

Resumo
 
O trabalho é o que todos os homens buscam na sociedade, como forma de reconhecimento da própria capacidade, ou seja, a auto-produção de si, assim como o reconhecimento social. Na verdade, um sujeito com trabalho pode adoecer tanto quanto aqueles que está sem trabalho, a partir desta prerrogativa refletem sobre o trabalho em si.
Fazemos uma trajetória histórica sobre o trabalho, discutindo o movimento sócio-econômico e a apropriação que o trabalhador faz sobre sua produção, ainda inserimos na discussão a valoração do trabalho na sociedade. Certamente, este aspecto seja de fundamental importância para o trabalho que adoece e aquele que promove a vida. Neste contexto, atribuímos a discussão sobre o trabalho patológico ao discutir os ritmos, os processos de trabalho e a qualidade de vida.

Utilizamos como referencial teórico Dejours (1987, 1994), CODO (1993), e MENDES (1992, 2002).

Palavras-Chave: saúde do trabalho, psicologia organizacional e saúde mental

I) Um pouco de história

O trabalho surgiu a partir da busca por meios necessários à satisfação das necessidades básicas, as quais garantiam a subsistência de grupos coletivos. Inicialmente, nas comunidades tribais a terra era o principal recurso a ser explorado por meio de um trabalho coletivo resultando na produção necessária a sobrevivência deste grupo.

A característica principal deste modelo de subsistência é ausência de classes sociais e por conseqüência a não hierarquização do trabalho, cuja organização se dá por um contrato de apropriação coletiva dos produtos que correspondem às necessidades coletivas.

Posteriormente, o trabalho manufaturado corresponde ao trabalho do artesão que transforma a matéria a favor das necessidades alheias. Este tipo de produção se caracteriza pela produção ser em pequena escala e a necessidade de alta especialização dos artesãos e a transmissão deste conhecimento ser muito restrita havendo poucos artesãos.

Com a mudança paradigmática da idéia de economia, dá-se um novo estatuto ao trabalho. Antes, considerado um sofrimento (tripalium), atualmente tem-se a crença no prazer (poesis), deste modo, vale ressaltar a velha frase: “o trabalho dignifica o homem”.

O trabalho pautado no capitalismo é caracterizado pela satisfação com o produto o qual tem a finalidade de troca, portanto, há um valor. A relação do trabalhador com o produto consiste num simples objeto produzido, assim, o sujeito se sente separado deste objeto permanecendo uma relação de exterioridade. Entretanto, o produto é avaliado pelo outro na medida em que aquele possui uma utilidade, portanto, o trabalho não é dignificado como expressão de um desejo deste trabalhador, é apenas expropriada a sua atividade servil.

Com o desenvolvimento das indústrias por volta do século XVII, há uma nova relação do homem com o trabalho. As teorias de Ford e Taylor propõem uma divisão ferrenha do processo produtivo em série, no qual a alienação, o controle sobre os trabalhadores, a hierarquização implementam uma organização impulsionadora de trabalho. Porém, ambas as teorias visavam a máxima exploração deste trabalhador alienado, posto que desconhecia o processo total produtivo, e principalmente na havia direitos trabalhistas que regulamentassem as jornadas de trabalho, remuneração, férias, exploração do trabalho infantil, equipamentos de segurança e etc.

No fim do século XVII na França, as lutas operárias tinham por objetivo o direito à vida e a liberdade na organização do trabalho. Deste modo, são obtidas leis referentes à saúde do trabalhador, Dejours (1987) aponta que se criaram leis pra diminuir a exploração de trabalhadores em minas de carvão, assegurando mais higiene, indenizações sobre os acidentes, aposentadoria e a formação dos sindicatos.
O taylorismo ainda é um modelo atuante na organização do trabalho, principalmente no setor terciário gerando conseqüências para a saúde mental. A disciplina do corpo, a submissão, a organização científica do trabalho, as exigências do tempo e ritmo de trabalho com a separação do trabalho intelectual e trabalho manual tem a capacidade de neutralizar a capacidade mental do trabalhador.

No século XVIII, acirram-se as manifestações do movimento operário por melhorias na relação saúde-trabalho, e as duas Guerras Mundiais contribuem para maiores reivindicações sobre as condições de trabalho, surgindo a Medicina do Trabalho, a Previdência Social, os Comitês de Higiene e de Segurança. (Dejours, 1987).
 

II) Valoração do trabalho para o indivíduo na sociedade

Neste ínterim, surge a proposta de Qualidade de Vida no Trabalho discutida desde os anos 50, envolvendo as ares da saúde englobando a Psicologia, a Sociologia e a Administração sendo discutido a luz da multidisciplinaridade humanista. A Qualidade de Vida no Trabalho envolve estruturas do cotidiano do trabalhador e vínculos da vida pessoal, fatores socioeconômicos, medos empresariais (competitividade, qualidade de produto, velocidade, custos, imagem corporativa) e pressões organizacionais, como: investimentos em projetos sociais, remuneração variável, transitoriedade no emprego, co-responsabilidade, agilidade e informação. (Limongi-França, 2003). Além disso, a Qualidade de Vida no Trabalho abrange os cuidados médicos estabelecidos pela legislação da saúde até o lazer, motivação entre outros, discutindo-se as condições de vida e o bem estar entre as pessoas.

A idéia de uma Qualidade de Vida do Trabalhador transpõe a dimensão saúde física-mental do trabalhador colocando outras questões pertinentes pautadas na organização do trabalho, quanto à qualidade da mesma e suas perspectivas. Por isto, crê-se que a busca não só da Psicologia Organizacional, mas da Psicologia de modo geral, é buscar um sentido para a inter-relação entre o sujeito e o objeto, posto que esta implica na relação do homem com o mundo, no um com o outro, dada a necessidade do indivíduo pertencer ao mundo e este lhe pertencer.

É pertinente observar-se a etimologia da idéia de trabalho: tida como um sofrimento, uma atividade (humana ou animal, racional ou irracional), uma práxis, um atuar (latim: actuare) ou como um produto ou resultado da atividade humana. Todas estas denominações são atividades comandadas pelo consciente, envolvendo relações sociais, marcando papéis/funções sociais, e uma relação com o tempo.

Pode-se incluir que o trabalho é um agente de subjetivação capaz de construir a identidade do sujeito, pois expressa a capacidade humana de transformar em objeto de valor que se possa ser comercializado, neste sentido, o trabalho é real enquanto atividade diferenciada; por outro lado, o trabalho abstrato também possui a identidade do trabalhador posta numa atividade.

Todo o indivíduo é portador dessa dupla dimensão social e explicita sua potência social quando se integra, principalmente ao mercado de trabalho a ele próximo. Esse mercado é o espaço social ocupado pelos detentores do capital, comparados da força de trabalho dos indivíduos que reúnem saber produtivo, mas que são possuidores de meios materiais de realização desse saber. (Codo et all, 1993, p.122)
           
O saber é algo constante no processo de trabalho, porque o indivíduo vai construindo a sua subjetividade no decorrer deste processo, desse modo, a mercadoria expressa a relação entre saber – fazer. A estrutura das indústrias vai enquadrando e moldando as habilidades dos trabalhadores, os padrões de higiene, um tipo específico de roupa, ritmo coletivo e etc. a hierarquização do trabalho é a divisão clara e explícita o nível de escolaridade (conhecimento geral), experiências anteriores, esforço físico e segurança.

Outro fator importante é o afeto, no sentido de haver contato imediato de possibilitar a transcendência de representar parte de nossa subjetividade num objeto. Assim, Codo et all (1993) afirma que na Idade Média não havia cisão entre afeto e trabalho, porque não se diferenciava a estrutura produtiva e reprodutiva, não havendo alienação. Contudo, a ruptura entre afeto e trabalho está presente na sociedade capitalista, porque há a divisão entre produção da existência e a reprodução da vida dividindo o mundo em indústria e lar.

Estes universos estão repletos de desafetos e se presentificam na forma de fofocas sobre os colegas e os chefes, hierarquização das atividades demonstradas por meio de “marcas” pessoais, artifícios da sedução e a presença de “bode expiatório”. Conseqüentemente, cria-se um ambiente de tensão, no qual o trabalhador pode extrapolar estes desafetos, e ainda o sujeito fica submetido à hierarquia e a burocracia buscando ascensão profissional, autonomia, maiores salários, e etc.

Por conta das atribuições acima, o trabalhador tende a uma individualização, incessante persecutoriedade e temor diante do desemprego. Por isto, ele cria estratégias defensivas diferenciando o seu próprio sofrimento enquanto trabalhador e de um cidadão qualquer.

           
III) Ritmo e Organização do Trabalho
           
É importante se ressaltar que o domínio do trabalho sobre o tempo livre também ocorre. Durante os finais de semana ou folgas, o sujeito necessita de um tempo para o lazer, cultura, formação profissional, atividades domésticas, mas a idéia de coletividade entre os trabalhadores resulta em práticas paternalistas quando se monta equipe esportiva da empresa ou se faz churrascos.
           
Segundo Dejours (1987), o tempo fora do trabalho e o tempo no trabalho forma um continuum.
Assim, o ritmo do tempo fora do trabalho não é somente uma contaminação, mas antes uma estratégia, destinada a manter uma contaminação, mas antes uma estratégia, destinada a manter eficazmente a repressão dos comportamentos espontâneos que marcariam uma brecha no condicionamento produtivo. (Dejours, 1987, p.47).
           
Comumente no cotidiano, na vivência operária há o predomínio da insatisfação e a ansiedade. Além disso, a indignidade operária com relação a robotização, a maciça exploração, as queixas sobre a desqualificação relativa ao salário; as vivências depressivas que condensam os sentimentos de indignidade, inutilidade e desqualificação.           

Dejours (1987) ressalta a importância do medo no trabalho, estando presente nas organizações coletivas ou individuais, desde ocupações profissionais que exijam trabalho repetitivo ou de escritório, muitas vezes, ele é amenizado por medidas e regras de segurança, que possivelmente foi implantado com limites de investimentos.            
O medo está relacionado com as condições de trabalho e suas afetações na saúde física (ex: excesso de poeira ou ruído), o número de notificações dos trabalhadores acidentados, excesso de “tensão nervosa” por exposição contínua de alarmes, ruídos e barulhos de máquinas, a iminência de falta de controle dos operadores acarretando em explosões.           

Estas situações impõem ao trabalhador um ritmo imposto, uma velocidade repleta de ansiedade e temor de não atingir as metas propostas, os salários, as bonificações alienando-se sobre a própria questão de “perder tempo”.           

Diante desta situação, vê-se que a noção de organização do trabalho é um paradoxo – na prática, observa-se um caos nesta organização que temoriza o trabalhador constantemente, por outro lado, o conceito de organização de trabalho. Conforme Mendes (2002),
        
…caracteriza-se, pois, pelas modalidades de repartição das funções entre operadores e destes com os demais componentes do sistema de trabalho (meios e materiais de trabalho); a organização do trabalho define quem faz o que, como e em que tempo (Ministério do Trabalho, 1994). (p.812)
           
É evidente a relação entre certas formas de organização do trabalho e determinados transtorno mental, esta se efetiva no meio urbano e industrial.           

A organização patogênica do trabalho exerce sobre o indivíduo uma ação específica e um determinado impacto no aparelho psíquico. Em certos momentos, há o embate com a história individual, a relação com o trabalho e a valoração que este representa para o sujeito interagindo com o ambiente, pois este ignora os componentes da subjetividade do indivíduo.
        
O trabalho repetitivo cria a insatisfação, cujas conseqüências não se limitam a um desgosto particular. Ela é de certa forma uma porta de entrada para a doença, e uma encruzilhada que se abre para as descompensações mentais ou doenças somáticas, […]. Conta a angústia do trabalho, assim como contra a insatisfação, os operários elaboram estratégias defensivas, de maneira que o sofrimento não é imediatamente identificável. (Dejours, 1987, p.133).
           
O sofrimento mental decorrente do trabalho suscita importantes mecanismos de defesa tanto no nível individual e coletivo. O principal mecanismo é a negação do mal-estar ao mesmo tempo em que as causas são negadas também. Persiste a ideologia de defensiva profissional, assim como nas práticas de desafio ao perigo no caso de trabalhadores novatos, falta do uso de equipamentos de segurança seria uma quebra ao pacto coletivo de ameaça à vida.             

IV) Conclusão           

Assim, o sofrimento mental correlacionado com a situação de trabalho busca o entendimento da interação entre trabalho e a repercussão na subjetividade do sujeito capaz de suscitar sofrimento. Obviamente, que sofrimento mental não é necessariamente doença, mas pode significar a possibilidade real dela ou a expressão de um quadro clínico relacionado ao trabalho.           

Portanto, a organização do trabalho é algo em constante transformação desde quando o trabalho tinha finalidade de subsistência. No decorrer do tempo, observa-se que a massiva exploração do trabalhador possibilitou conquistas dos direitos trabalhistas. Atualmente, depara-se com instituições de trabalho que demonstram um avanço na organização do trabalho e outras que permanecem estáticas com relação à Qualidade de Vida do Trabalhador. Esta discrepância possivelmente reflete o paradoxo interno do homem do século XXI, “tempo é dinheiro” e “não tenho para nada”, explícita o domínio do processo produtivo até no “tempo livre” do trabalhador, o excesso de concorrência, e o medo do desemprego.           

Embora, haja todas as angústias com relação ao trabalho nunca se falou tanto em Qualidade de Vida no Trabalho, mas “é possível se ter Qualidade de Vida no Trabalho com tanta angústia?” Espera-se que a organização patogênica do trabalho seja um indicador de dados quantitativos de notificação de doenças e acidentes de trabalho para que se possa intervir na dinâmica de determinadas empresas, possibilitando ao trabalhador acesso aos seus direitos, a tratamentos médicos eficazes, alterações nas rotinas de trabalho e por fim a promoção de saúde.           

Referências Bibliográficas
 
BRAVERMAN, H. Introdução. In: Trabalho e Capital Monopolista. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p.14-45.
           
________________. Trabalho e força de trabalho. In: Trabalho e Capital Monopolista. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p.49-60.

CODO, W., SAMPAIO, J.J.C., HITOMI, A.H. Indivíduo, trabalho e sofrimento: uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

DEJOURS, C. A Loucura do Trabalho – Estudo de Psicopatologia do Trabalho. Trad. Ana I. Paraguay e Lúcia L. F. Oboré. São Paulo: Editorial, 1987.

DEJOURS, C., ABDOUCHELI, E., JAYET, C.  Psicodinâmica do Trabalho: Contribuições da Escola Dejouriana à Análise da Relação Prazer, Sofrimento e Trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.

LIMONGI-FRANÇA, A.C. Qualidade de Vida no Trabalho: Conceitos e Práticas nas Empresas da Sociedade Pós-Industrial. São Paulo: Atlas, 2003.

MENDES, R. Da Organização do Trabalho e Seus Impactos sobre a Saúde dos Trabalhadores. In: Patologia do Trabalho. São Paulo: Atheneu, 2002, p.812-823.

___________. Psicopatologia e Saúde Mental no Trabalho. In: Psicopatologia do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 1142-1182.
 

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