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"As Transferências"

Historicamente, sabemos que o conceito de transferência  foi evoluindo gradativamente ao longo da obra freudiana. Inicialmente, Freud entendia a transferência como se constituindo através da  relação analítica. No entanto, com a evolução de sua prática clínica e conforme os aspectos teóricos foram se desenvolvendo paralelamente, pode vislumbrar que a transferência, na verdade, constitui-se como um produto da neurose.

Podemos afirmar que no viés psicanalítico, a relação terapêutica estrutura-se embasada no eixo transferencial, e devemos ter em mente que tal conceito implica em "deslocamento de valores ou de signos", o que confere ao seu movimento específico, uma implicação simbólica. Note-se que, uma vez transferidos, os conteúdos passam a ter um caráter de alienação, de escoamento, de esvaziamento. Numa possível construção metafórica, podemos dizer que, se vemos "fumaça" referida a um determinado lugar, e ao examiná-lo, não encontramos nenhuma causa que a justifique, o que devemos fazer é procurar a ou as causas no lugar ou nos lugares de sua verdadeira origem. Em outras palavras, aquilo que é expresso, NUNCA o é em si mesmo. Evoca, na verdade, um originário ausente.

Apenas para citar, uma vez que aqui não é o nosso objetivo, que estamos falando do conceito de representante- representativo (= Ver o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis ). Em outras palavras e seguindo a metáfora, não é qualquer lugar que aparentemente dá origem a fumaça. Ao examinarmos os conceitos de deslocamento e condensação, também estaremos diante de algo que se transfere e que se encontra no signo, uma possível representação. Nas fobias, por exemplo, não podemos explicar o por que o objeto fóbico ou fobígeno é a barata ( sorry!!! ), mas dentro da sua análise poderemos explicar sim, quais os encadeamentos coerentes que ocorrem na formação da fobia pela barata. Já no que tange à condensação, vários conteúdos pertencentes a outros lugares, dão origem ao conteúdo condensado. Citamos aqui o emblemático exemplo de Freud : familionário.

Uma outra relação que deveremos ter em mente, é que quando falamos em transferência, estamos falando em sistema inconsciente, em processo primário e em princípio de prazer. Trata-se sempre de um algo não-realizado que procura se realizar de um modo substitutivo. Encontramos em Freud que o inconsciente não é apenas cogitável como sendo um campo de forças, como indica a concepção dinâmica, mas sim que inclui Gedanken, ou seja, pensamentos que se expressam através de suas formações substitutivas. Isso de certa forma justifica e embasa a formulação de Jacques Lacan, de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Diremos então, que o mundo representacional simbólico que se manifesta em seu emaranhado como cadeia de significações, implica na dimensão da ausência em sua estrutura, e isso a nível inconsciente se define como sendo uma inscrição intrapsíquica ( traço mnêmico ) que alude ao registro de uma falta, ou mesmo de algo da ordem do não-resolvido, que é justamente o que gera o movimento, o jogo dos deslocamentos buscando uma resolução. Esse não-resolvido, é o que Lacan vai definir como constituindo o não-realizado; a dimensão do inconsciente faz referência ao registro do não-realizado em um sujeito. (= Jacques Lacan, em " Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise " ).

O inconsciente, portanto, se conecta com a função estruturante de uma falta, ou dito de outra maneira, " o desejo se estrutura e se constitui no registro de um algo ausente ". Dessa forma, é o desejo que busca realizar-se e é o desejo que se inscreve na subjetividade como o não-realizado. Quando Lacan define o desejo como a metonímia da falta em ser, ele está fazendo uma alusão ao jogo dos deslocamentos e combinações do que se inscreve como falta no sujeito, onde na medida em que algo se realiza, ou seja, algo se satisfaz, também algo não se esgota, o que deriva em se deslocar para outro objeto, para outro lugar o signo que falta, isto é, o signo do não-realizado.

Na verdade, o que permite ao sujeito continuar desejando, é exatamente essa estrutura de falta que o preserva de esgotar as possibilidades de satisfação ou de realização num único objeto ou num único lugar. Conhecemos desde Freud a famosa afirmação de que o desejo se define como sendo a reprodução alucinatória da primeira experiência de satisfação. Daqui podemos deduzir que o desejo é a reprodução de um registro de satisfação, o qual por ser tempo passado, já encontra-se ausente. Em outras palavras, trata-se de uma satisfação perdida ou que cessou de se realizar, constituindo-se assim como sendo o não-realizado da estrutura do desejo. Fica claro que na reprodução alucinatória, algo torna-se presentificado, numa espécie de atualização evocativa.

No próprio Freud vamos encontrar a afirmação de que a transferência é um afeto que se presentifica sob os traços do amor, e isso ocorre porque algo do amor busca realizar-se, implicando que no sujeito do inconsciente, o amor está em falta.

Nesse momento do trabalho julgamos importante que nos perguntemos:  "O que ocasiona a estrutura do desejo?".

Se o processo identificatório primário marca a constituição do ego em sua "idealidade", é a cena primária em sua função de ruptura que insere a noção da falta-em-ser ; é o amor narcisista posto em falta. Lacan afirma que o um que é introduzido pela experiência do inconsciente, é o um do corte, da fenda, da ruptura que faz surgir a ausência. Dessa maneira, o desejo se manifesta e se transforma em demanda ; aquilo que o sujeito não tem é o que se transforma em demanda. Entende-se aqui como demanda, ao modo imaginário pelo qual se presentifica a falta ; o modo pelo qual a falta adquire uma consistência formal.

Continuando na esteira lacaniana, podemos verificar que existem duas dimensões da demanda:

= demanda de amor.

= demanda do gozo.

Trata-se então de manter em falta essas duas dimensões para que se possa sustentar o jogo metonímico que o desejo implica.

Vamos encontrar na idolatria e no misticismo, pertinentes a certas histerias, uma busca compensatória daquilo que se inscreve como sendo o mito do gozo excessivo, o qual é necessário neutralizar. Essa espécie de compensação pode ser buscada e alcançada através da transformação do gozo em " puro amor ". De uma forma esquemática (= um perigo em se tratando de psicanálise ! ), temos o seguinte cenário: a cena primária constituinte do sujeito define topologicamente a divisão do campo em dois espaços psíquicos, ou seja, o campo do sujeito e o campo do Outro. Daí pode-se consignar que, se no campo se inscreve um excesso de gozo, do lado do sujeito se produz um congelamento e a sustentação intensa da demanda de amor. Em contrapartida, se no campo do Outro se manifesta o excesso de amor, o sujeito está obrigado a enfatizar a busca do gozo, ficando assim a demanda estruturada como sendo uma demanda de gozo,.

Ao debruçar-se sobre o conceito de transferência, Lacan afirma:  toda resposta à demanda, frustrante ou gratificante na análise, reduz nela a transferência a sugestão. Ou, visto ainda de uma outra forma, a resposta à demanda produz uma obstrução da falta, fundamento da estrutura simbólica, e consequentemente produz a opacidade do sujeito em sua trama lógica por essa perda de distância simbólica. Dessa forma, somente para a manutenção desse quadro da transferência deve a frustração prevalecer sobre a gratificação (Abstinência analítica ).

Freud sempre falou em se poder trabalhar em uma atmosfera de privação, e aqui quero ressaltar o nível de complexidade envolvido, ou seja, quando se diz frustrar a demanda, isso significa não responder à demanda porque ao frustrar pode-se perfeitamente estar dando uma resposta à demanda, no sentido em que nessa frustração pode estar implícito um gozo. Deve ficar claro também que quando aqui falamos em não responder à demanda, que se trata de uma demanda inconsciente e não de um pedido manifesto.

No dizer de Carlos Olivé, a manutenção do quadro de transferência indica que se mantém o marco de uma não-realização, isto é, a manutenção do signo da falta, seja no gozo como no amor, e que preserva o circuito dos deslocamentos que o desejo implica. É porque há algo que o Outro não dá que posso continuar procurando, desejando. Ser algo se realizar, se algo se completar, se se chegar a meta, a corrida acaba: " game over " !

De qualquer forma, o trabalho analítico trata de fornecer ao analisando, a possibilidade de reencontrar-se com o saber que esta nele contido ( e não no analista). Então, quanto mais o sujeito sabe de sua falta, mais sabe a respeito do seu desejo, e consequentemente menos idealiza.

Quando aborda a temática referente ao fim da análise, no sentido do término e não da finalidade, Lacan fala de uma " destituição subjetiva ", a qual é emblemática da relativização do saber do Outro, no caso o analista na posição do Sujeito Suposto Saber. Dessa forma, ao final de qualquer processo de análise, sempre existe um texto não realizado, que certamente marca o seu caráter interminável . Lacan afirma enfaticamente: um discurso como o analítico visa a obtenção de um sentido, e de sentido é claro que eu só posso oferecer a cada um de voces aquilo a que estão dispostos a absorver. Isso possui um limite, que é dado pelo sentido em que vocês vivem (…) Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isso só pode ser para dar a razão de seu limite; não existe em nenhuma parte uma "última palavra" (…) O sentido indica a direção na qual ele fracassa.

Assim como o tema da transferência é da ordem do inesgotável, assim como o discurso e a interpretação não possuem uma última palavra, nós também vamos ficando por aqui, o que se puder ficar com a marca do não-realizado, de um resto a ser realizado, talvez possamos manter a chama do desejo acesa, ainda que numa busca absolutamente interminável.

Bibliografia Auxiliar:

Lacan, Jacques: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

Fédida, Pierre: Clínica Psicanalítica – Estudos.

Etchegoyen, Horacio: Fundamentos da técnica psicanalítica.

Racker, Einrich: Fundamentos da técnica psicanalítica.

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