Diálogos entre Oliver Sacks e B.F. Skinner: o “dom” musical
De acordo com o senso comum, algumas pessoas nascem com um “dom” para a musicalidade, enquanto outras nascem desprovidas desse “dom”. Diante da composição ou reprodução de uma obra clássica da música erudita, os ouvintes freqüentemente se perguntam se o músico possui um cérebro especial; se seu cérebro funciona de outro modo quando comparado a de uma pessoa sem musicalidade; se suas conexões, campos cerebrais de atividade são de alguma forma diferentes.
De acordo com o senso comum, algumas pessoas nascem com um “dom” para a musicalidade, enquanto outras nascem desprovidas desse “dom”. Diante da composição ou reprodução de uma obra clássica da música erudita, os ouvintes freqüentemente se perguntam se o músico possui um cérebro especial; se seu cérebro funciona de outro modo quando comparado a de uma pessoa sem musicalidade; se suas conexões, campos cerebrais de atividade são de alguma forma diferentes.
Até a década de 90, os cientistas não tinham instrumentos para responder a essas perguntas de forma objetiva. Porém, com os avanços científicos, os profissionais da área da saúde puderam desenvolver técnicas, instrumentos e procedimentos que lhes possibilitaram estudar a estrutura cerebral do cérebro dos músicos, comparando sua estrutura com o cérebro de não-músicos.
Segundo Sacks (2007):
Gottfried Schlaugh e seus colegas de Harvard fizeram minuciosas comparações do tamanho de várias estruturas cerebrais. Em 1995, publicaram um artigo demonstrando que o corpo caloso, a grande comissura que liga os dois hemisférios cerebrais, é maior em músicos profissionais, e que uma parte do córtex auditivo, o plano temporal, apresenta um aumento assimétrico nos músicos dotados de ouvido absoluto. Schlaugh et al. apontaram também volumes maiores de massa cinzenta nas áreas motoras, auditivas e visuoespaciais do córtex, bem como no cerebelo. (p. 101)
Contudo, o próprio Sacks (2007) se questiona se essas alterações morfológicas já nasceram com o músico, ou seja, se seu cérebro já se constituiu no útero de forma distinta ao restante da população – alteração esta que proporcionaria a musicalidade; ou se essa alteração é fruto de uma relação especial dessa pessoa com o seu ambiente. Diante dessa dúvida, pode-se recorrer a Skinner para elucidar a relação de um organismo com o seu ambiente, e a alteração que esta relação gera no organismo.
Um organismo, quando se comporta no ambiente em que está inserido, produz uma mudança no ambiente e é afetado por esta mudança. Como exemplo, quando um cachorro é treinado por seu treinador a dar piruetas para poder ganhar um biscoito, o cachorro emite um comportamento (a resposta de dar piruetas) na presença de seu treinador com o biscoito na mão (estímulo discriminativo para o cachorro dar piruetas) para ganhar o biscoito (a conseqüência – o reforço – para o cachorro dar a pirueta).
A descrição do comportamento evidencia, de maneira clara, como um organismo produz uma alteração no ambiente, a saber – o acesso ao reforço que é o biscoito. Contudo, não deve ficar claro ao leitor como a alteração no ambiente afeta o organismo além da evidente produção de reforço, o acesso ao alimento. Outras alterações no organismo do cachorro acontecem simultaneamente a esse comportamento emitido (o comportamento de dar piruetas), como exemplo a produção de saliva diante do biscoito ou simplesmente diante da presença do treinador (comportamento respondente), além de outras alterações no organismo do cachorro que não são diretamente visíveis ao observador.
Deve-se considerar que o organismo do cachorro foi alterado devido à emissão da resposta de dar piruetas, uma vez que vários músculos foram utilizados nessa resposta e que provavelmente ficaram mais “fortes” depois da ocorrência desse comportamento.
Da mesma forma acontece com o ser humano. Na nossa sociedade é comum as pessoas buscarem academias, ou mesmo fazerem exercícios físicos dentro de suas casas para alterarem seus corpos, para que músculos se tornem mais definidos, fortes, além do corpo como um todo se tornar mais atraente. A resposta de fazer exercícios produz como conseqüência para a pessoa que se engaja nessa atividade diversos reforçadores, desde sociais (a admiração da sociedade pelo seu corpo, conquista de namorado/namorada, melhor desempenho em determinada atividade, etc.) até reforçadores em nível biológico (produção de serotonina e sensação de felicidade).
A emissão da resposta de se exercitar produz as conseqüências já descritas, além de retroagir sobre o organismo, alterando-o de forma sensível (a mudança corporal, hormonal, imunológica, etc.). Um atleta tem seu corpo alterado em relação à maioria da população porque emite classes de respostas que retroagem sobre o organismo, modificando-o.
O princípio de que o organismo emite uma resposta, altera seu ambiente e é alterado por essa mudança se aplica tanto a nível social, como a níveis musculares, hormonais, e principalmente a nível cerebral. A emissão de respostas ou de classes de respostas produz alterações na morfologia cerebral, porque as áreas do cérebro envolvidas na emissão de um comportamento são reforçadas também, tronando-se mais desenvolvidas e mais facilmente “acessíveis” em outras oportunidades. O princípio da retroação explica de maneira contundente as alterações que Schlaugh et al.(1995) encontraram no cérebro de músicos, quando comparados a cérebros de não-músicos.
Os músicos se engajam em diversas atividades relacionadas à música que outras pessoas não se engajam, fato que poderia explicar a diferença na morfologia cerebral. O ambiente dos músicos é diferente do ambiente de pessoas comuns, uma vez que é um ambiente rico em estimulação auditiva/musical (fato que explicaria a alteração nas áreas cerebrais relacionadas a audição), além dos músicos emitirem uma série de comportamentos envolvidos nas suas carreiras musicais que podem produzir as alterações no corpo caloso, plano temporal, nas áreas motoras, visuespaciais e no cerebelo.
Assim, pode-se dizer que a relação do organismo com o seu ambiente e o princípio da retroação descritos por Skinner no livro Ciência e Comportamento Humano (1953) e em toda sua vasta obra explicam de maneira eficaz as alterações observadas pelos cientistas quando estudam o cérebro de músicos, comparando-os com cérebros de pessoas não-músicas. Logo, a palavra “dom” perde o ar místico para ser explicada plausivelmente pela Neurologia de Sacks e pela Psicologia de Skinner.
REFERÊNCIAS
SACKS, Oliver. Alucinações Musicais. Companhia das Letras, 2007.
SCHLAUG, Gottfried; JÄNCKE, Lutz.; HUANG, Yanxiong; STEINMETZ, Helmut. In vivo evidence of structural brain asymmetry in musicians. Science, 267, pp. 699-701, 1995. SKINNER, Burrhus Frederic. Ciência e Comportamento Humano. The Macmillan Company, 1953.