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Mitos: Para que ?

Os mitos são a forma mais antiga do homem manter contato com sua espiritualidade, com a natureza e sua própria psique. Neste artigo, trago minhas impressões a respeito da obra  "O poder do Mito", de Joseph Campbell. O autor nos brinda não só com histórias de tempos remotos, mas também como estas histórias ainda encontram ecos em nossa cultura, em pleno século 21. As idéias de Campbell neste artigo são lastreadas pela Psicologia Analítica de C.G. Jung, por este último também ter dedicado muitos de seus estudos a respeito da influência que os mitos tiveram na formação da psique do homem.

Dizem que o que todos nós procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim.Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos(CAMPBELL, 1990, p.14).

É assim que o americano Joseph Campbell (1904-1987) inicia o primeiro capítulo de seu livro O poder do mito, transcrição de uma série de entrevistas concedidas ao jornalista Bill Moyers e publicado postumamente. Campbell era um profundo conhecedor de simbologia e mitologia. Mas o que é o mito? Para que serve? O que o mito representa hoje em nossas vidas tão atribuladas ?

Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana. Aquilo que somos capazes de conhecer e experimentar interiormente.

Os mitos ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos símbolos. O mito o ajuda a colocar sua mente em contato com nossa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é (CAMPBELL, 1990, p.17).

Essa viagem interior que o mito proporciona não nos põe só em contato com histórias e personagens do passado, mas também com vivências que continuam ecoando em nossas vidas. Os mitos vêm de todas as culturas e épocas, com mensagens universais e atemporais. No fundo possuem um conteúdo comum, mas que é adaptado com sutis diferenças, dependendo da sociedade e do momento histórico na qual esteja inserida.

Os mitos começam na antiguidade como histórias da relação do homem com o mundo externo, com as forças da natureza. Para Jung (2000, p.17):

…o homem primitivo não se interessava pelas explicações objetivas do óbvio, mas por outro lado, tem uma necessidade imperativa, ou melhor, a sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve corresponder – para ele – a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve representar em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo, habita unicamente a alma do homem. Todos os acontecimentos mitologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc, não são de modo algum alegorias destas experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através de projeção – isto é , espalhadas nos fenômenos da natureza.

Esta herança de imagens do passado primordial, idéias, motivos mitológicos e predisposições para se comportar no mundo atual tal qual os antepassados fizeram por gerações, está disponível a todos os homens. São condições prévias à formação psíquica de cada sujeito (JUNG, 2002).

Campbell(1990, p.49) nos fala mais sobre esta herança de nossos antepassados::

Você tem o mesmo corpo, com os mesmos órgãos e energias que o homem de Cro Magnon tinha, trinta mil anos atrás. Viver uma vida humana na cidade de Nova Iorque ou nas cavernas é passar pelos mesmos estágios da infância à maturidade sexual, pela transformação da dependência da infância em responsabilidade, própria do homem ou da mulher, o casamento, depois a decadência física, a perda gradual das capacidades e a morte. Você tem o mesmo corpo, as mesmas experiências corporais, e com isso reage às mesmas imagens. Por exemplo, uma imagem constante é a do conflito entre a águia e a serpente. A serpente ligada à terra, a águia em vôo espiritual – esse conflito não é algo que todos experimentamos? E então, quando as duas se fundem, temos um esplêndido dragão, a serpente com asas. Em qualquer parte da terra, as pessoas reconhecem essas imagens. Quer eu esteja lendo sobre mitos polinésios, iroqueses ou egípcios, as imagens são as mesmas e falam dos mesmos problemas.

Assim como o corpo possui uma evolução histórica, a mente também possui. Desta forma, compreende-se o desenvolvimento biológico, pré-histórico e inconsciente da mente do homem desde a sua forma primitiva, que se assemelhava à dos animais. O homem não nasce tabula rasa, apenas inconsciente. Esta evolução histórica da psique caracteriza o inconsciente coletivo (JUNG, 1972).

O inconsciente coletivo contém imagens psíquicas denominadas arquétipos. Os arquétipos (do grego archétypon = "modelo", "padrão") designam o conjunto de imagens do inconsciente coletivo que são patrimônio comum de toda a humanidade . Patrimônio da humanidade ? Sim. Todas as lendas, mitos e histórias universais da humanidade. Um mito que é comum em todas as culturas é o da criação do mundo. As histórias podem ter suas diferenças, mas no fundo dizem as mesmas coisas:

Gênesis 1:

No início Deus criou os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia, e a escuridão vagava sobre a face do abismo.

Mitologia grega (POUZADOUX, 2001):

Na origem, nada tinha forma no universo. Tudo se confundia, e não era possível distinguir a terra do céu nem do mar. Esse abismo nebuloso se chamava Caos. Quanto tempo durou? Até hoje não se sabe. Uma força misteriosa, talvez um deus, resolveu pôr ordem nisso. Começou reunindo o material para moldar o disco terrestre, depois o pendurou no vazio. Em cima, cavou a abóbada celeste, que encheu de ar e de luz. Planícies verdejantes se estenderam então na superfície da terra, e montanhas rochosas se ergueram acima dos vales. A água dos mares veio rodear as terras. Obedecendo à ordem divina, as águas penetraram nas bacias para formar lagos, torrentes desceram das encostas, e rios serpearam entre os barrancos.

Gênesis 1:

Então Deus criou o homem à sua própria imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou. E Deus os abençoou e Deus lhes disse: ‘Sede férteis
e multiplicai vos.

Lenda africana (CAMPBELL, 1990, p.55):

Unumbotte fez um ser humano. Seu nome era Homem. Em seguida, Unumbotte fez um antílope, chamado Antílope. Unumbotte fez uma serpente, chamada Serpente… E Unumbotte lhes disse: ‘A terra ainda não foi preparada. Vocês precisam tornar macia a terra em que estão sentados'. Unumbotte deu-lhes sementes de todas as espécies e disse: ‘Plantem-nas'.

Para Jung (1978), os arquétipos possuem símbolos, imagens primordiais, que remetem freqüentemente a temas mitológicos que se evidenciam em contos e lendas de diferentes povos e culturas. Jung (1986) via nos mitos um sentido que não poderia ser compreendido se vivêssemos fora deles. São os arquétipos que, por serem elementos formadores do inconsciente, dão origem a nossas fantasias e nossos mitos. Para Stein, "os arquétipos não são derivados da cultura; pelo contrário, as formas culturais é que derivam de arquétipos" (STEIN, 2006, p.116).

Não podemos vivenciar os mitos de maneira literal, mas simbolicamente. Precisamos aprender a ouvir a música que deles emana (CAMPBELL, 1990). Nossa modernidade, com sua cultura líquida e imediatista (BAUMAN, 2004), não estimula nenhum tipo de visão simbólica ou subjetiva. Temos de ser técnicos, detalhistas, práticos e úteis. O que há de errado nisso ? Bom, os mitos nos trazem um conhecimento sobre as questões existenciais do homem primordial, questões estas que ainda estão presentes em nossas vidas. Se perdermos, ou pior, esquecermos de nossos mitos, o que sobrará para por em seu lugar ? Essa é a pergunta que Campbell nos deixa.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos.1º Ed. Rio de Janeiro: Zahar. 2004. 190p.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Joseph Campbell, com Bill Moyers ; org. por Betty Sue Flowers ;tradução de Carlos Felipe Moisés. -São Paulo: Palas Athena, 1990.

JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Tradução: Dora Ferreira da Silva e Maria Luiza Appy. 2ºed. Petrópolis: Vozes. 2002. 408p.

_______________. Fundamentos de Psicologia Analítica – As conferências de Tavistock. 1º. ed. Petrópolis: Vozes. 1972. 239p.

_______________. Psicologia do Inconsciente. Tradução: Maria Luiza Appy. 5ºed. Petrópolis: Vozes. 1978. 160p.
_______________. Símbolos da Transformação. Tradução: Eva Stern. 4º.ed. Petrópolis: Vozes. 1986. 544p.

POUZADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. Tradução: Eduardo Brandão. 1ºed. São Paulo: Companhia das Letras. 2001.

STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma: uma introdução. 5ºed. São Paulo: Cultrix. 2006. 212p.

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