Ao analisar o nosso dia a dia nos deparamos com a infinita capacidade do ser humano em superar seus próprios limites, em construir obras arquitetônicas inimagináveis, além de produzir as mais belas obras de arte. A capacidade de superação, de reinventar a realidade de uma forma totalmente nova, pode ser denominada como a plasticidade do ser humano em se adaptar ao ambiente, e de adaptar o ambiente as suas necessidades.
Essa plasticidade pode ser vista quando analisamos o comportamento humano e quando analisamos a estrutura cerebral. Claro que não podemos fazer uma dicotomia entre comportamento e estrutura cerebral, já que a relação entre eles foi amplamente descrita por Oliver Sacks e Skinner ao longo de suas obras. Porém, abordar a plasticidade sob esses dois enfoques em separado permite ressaltar a relação entre eles, sendo essa dicotomia realizada nesse artigo com um intuito didático.
A plasticidade ou variabilidade comportamental pode ser observada quando um organismo responde de diferentes formas em situações distintas, ou mesmo de diferentes formas dentro de uma mesma situação. Na escola aprendemos a resolver um problema de Matemática específico, e depois temos de solucionar problemas semelhantes, variando a maneira como resolvemos o problema. Essa variação, produzida por estímulos antecedentes diferentes que evocam respostas específicas, evidencia a plasticidade do ser humano, sua sensibilidade às alterações do ambiente.
Um exemplo pode ser visto no desenvolvimento da agricultura na antiguidade. Após cultivar legumes com uma técnica de irrigação específica, os resultados obtidos deixaram de ser positivos, com as colheitas diminuindo. Diante dessa situação o homem antigo passou a cultivar legumes com outras técnicas de irrigação, até encontrar aquela que trazia os melhores resultados para ele. Após encontrar essa técnica, ela passou a ser utilizada sistematicamente.
A nova técnica de irrigação descrita no exemplo só pôde ser descoberta e desenvolvida pelo homem da antiguidade devido à variabilidade. Segundo Neuringer, Deiss e Olson (2000), a variabilidade é importante para que novas respostas ocorram e que sejam selecionadas. É a variabilidade que permite ao homem responder de diferentes formas a ambientes distintos, produzindo conseqüências que reforçam a resposta. Este fato aumenta a probabilidade da resposta ser emitida novamente na mesma situação ou em situação semelhante no futuro.
A mesma variabilidade ou plasticidade pode ser vista no funcionamento cerebral. Ao longo de suas obras Oliver Sacks explicita ao leitor a capacidade do cérebro em se regenerar, não só do ponto de vista fisiológico como do ponto de vista funcional. Um exemplo é o relato da história de Raquel, uma talentosa compositora e intérprete de quarenta e poucos anos que sofreu um acidente de carro, colidindo com uma árvore.
"Quando eu ainda estava em cadeira de rodas, com a mão direita imobilizada, aprendi a escrever com a mão esquerda, a bordar. […] Não queria que as lesões ditassem meu modo de vida. Eu estava morrendo de vontade de tocar, de fazer música […] Comprei um piano e tive o maior choque da vida. Mas a arrebatadora ânsia de criar não cessou, e eu me voltei para a pintura. […] Precisava abrir os tubos de tinta usando os dentes e a mão esquerda, e minha primeira pintura, uma tela de sessenta por noventa centímetros, foi feita só com a mão esquerda." (Sacks, 2007, p. 121)
Sem dúvida o cérebro apresenta regiões específicas que são responsáveis por determinadas funções, como memória ou emoção. Contudo, uma lesão em uma região não implica necessariamente a perda completa da respectiva função. Através de fisioterapia, treino, e mesmo um longo processo de aprender aquilo que foi esquecido ou perdido devido à lesão, o cérebro pode recuperar a função atingida através de regeneração neuronal e/ou construção de novas sinapses.
Superar uma lesão e criar uma nova circuitaria cerebral para produzir o mesmo movimento, o mesmo conhecimento, ou outro comportamento é um exemplo da plasticidade cerebral. O cérebro não é limitado, pois do ponto de vista funcional e estrutural ele sempre está em mudança. O funcionamento do cérebro, assim como o comportamento, é dinâmico, mutável, plástico.
Cérebro e comportamento apresentam a mesma característica por estarem intimamente ligados. O comportamento humano acaba existindo porque o cérebro é sua base fisiológica. Quando um organismo emite uma resposta várias sinapses são ativadas para que essa resposta ocorra, sem mencionar a percepção das características do ambiente, que envolve diversas outras sinapses. Não se pode esquecer também a produção da conseqüência, que retroage sobre o organismo, ativando novamente milhares de outras sinapses, fortalecendo aquela circuitaria cerebral específica envolvida na emissão daquela resposta naquele ambiente específico.
Diante dessa relação, Skinner (1957) enfatiza a importância em superarmos a dicotomia comportamento e cérebro, ao afirmar que:
"Uma ciência do sistema nervoso baseada na observação direta, e não nas inferências, finalmente descreverá os estados e os evento neurais que precedem formas de comportamento. Conheceremos as exatas condições neurológicas que precedem, por exemplo, a resposta ‘Não, obrigado'. Verificar-se-á que estes eventos são precedidos por outros eventos neurológicos, e estes, por sua vez, de outros. Esta seqüência levar-nos-á de volta a eventos fora do sistema nervoso e, finalmente, para fora do organismo." (p. 39)
Contudo, o autor enfatiza as limitações que devemos considerar ao estabelecer a relação entre cérebro e comportamento, do ponto de vista do trabalho prático de um psicólogo analista do comportamento.
"Contudo, devemos notar aqui que não temos, e poderemos não ter nunca, esta espécie de informação neurológica no momento em que a necessitarmos para prever um exemplo particular de comportamento. É ainda menos provável que sejamos capazes de alterar o sistema nervoso diretamente para estabelecer as condições antecedentes a um dado caso." (Skinner, 1957, p. 39)
Podemos concluir que a relação entre cérebro e comportamento existe, como as explanações sobre a plasticidade humana evidenciaram. Concluímos também que há necessidade de tentarmos estabelecer uma ponte entre essas duas áreas de conhecimento para que tenhamos uma compreensão mais global do ser humano, além de permitir que técnicas de intervenção das duas áreas de conhecimento se unam, tornando-se mais eficazes. Não seria o atual momento oportuno para essa empreitada?
REFERÊNCIAS
NEURINGER, Allen; DEISS, Chris; OLSON, Gene. (2000). Reinforced variability and operant learning. Journal of Experimental Psychology: Animal Behavior Processes, 26, (1), p. 98-111.
SACKS, Oliver. (2007). Desintegração: amusia e desarmonia. In: SACKS, O. Alucinações Musicais. São Paulo, Companhia das Letras.
SKINNER, Burrhus Frederic. (1953). Ciência e Comportamento Humano. The Macmillan Company.
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Meus agradecimentos porque mais do que nunca fiquei bem esclarecido!