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Uma Análise Discursiva Sobre os Modos de Atuação da Psicologia no NASF

 

Introdução

 

O campo da saúde vem chamando atenção de diversas áreas científicas devido a sua complexidade e o impacto que a mesma provoca sobre a sociedade, pois nessa relação de territórios, saberes e práticas se designam metas, diretrizes e objetivos circunspectos diante da produção de conhecimentos e pactuação para gerir outros saberes e, consequentemente, modos de agir mais saudáveis. Portanto, acaba se tratando de um cenário delicado para os profissionais de saúde, se constituindo um ponto sine qua non para problematização sobre a inserção, produção e efeitos dessas práticas desde a formação a produção de novos territórios em saúde.

É nesse campo de discussões, e até mesmo filosófico, que a psicologia vem lutando incessantemente e conquistando um espaço para gerir pontes de interlocução entre os diversos saberes que habitam a saúde. Mesmo porque, de espectadora essa psicologia passou a se mostrar participante nos diversos movimentos sociais, políticos e éticos que reivindicavam por uma nova saúde e formação, por novos profissionais críticos e interessados pelo cuidado por meio do diálogo e reflexão epistemológica quanto a realidade social e cultural das populações (Kubo & Botomé, 2001; Lima, 2005; Conselho Federal de Psicologia, 2009).

Assim, é a partir da interlocução da psicologia com a saúde que o presente trabalho se propôs a analisar. Ou seja, partiu na tentativa de desenhar um percurso histórico para problematizar esse processo na atualidade através da participação desses profissionais na construção de uma nova metodologia de trabalho em saúde, mais especificamente na saúde pública, que consiste no empenho para a produção junto com outros profissionais, dialogando a partir de um cotidiano concreto e de vidas em território (aqui compreendido o lugar geográfico e as relações dos sujeitos).

Nessa perspectiva, talvez possa se falar no caminho árduo percorrido durante a década de 70 até aos dias atuais, partindo da psicologia que começa a se interessar pelo campo social de outro ponto de vista epistemológico e ético. Mesmo porque foi difícil produzir os primeiros passos sem abandonar as velhas concepções teóricas e metodológicas no choque com outras realidades sociais e campos de atuação (Bock, 2008). Apesar de que Spink e Matta (2007) colocarem em evidência essa tentativa de “abandonar” as concepções quando relatam algumas experiências sobre a inserção da psicologia na saúde pública brasileira, cogitando que ainda se trata de um processo contemporâneo.

O interesse pelo universo social possibilitou aos psicólogos experienciar uma postura política e de consolidação da própria categoria diante dos espaços da vida humana. Além disso, de vivenciar outros movimentos libertários e ideológicos como foi com o início da Reforma Sanitária e Psiquiatra, a luta por uma nova política de recursos humanos, a crise econômica e social no Brasil e o rompimento com as representações consolidadas sobre a psicologia nessa época (Lima, 2005).

Desse modo, quatro fatores foram fundamentais para impulsionar a psicologia para novos composições que ocorriam no Brasil, tais como a Reforma Psiquiátrica ao ampliar a discussão sobre o campo da Saúde Mental compreendido aqui a experiência de São Paulo no final da década de 70; a Reforma Sanitária e o processo de formação do Sistema Único de Saúde – SUS com a promoção de ações e programas em saúde; o desenvolvimento das grandes Conferências Nacionais e encontros de trabalhadores em saúde (VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987) para a construção de políticas públicas junto a outros profissionais; e a luta dos Conselhos e Sindicatos da Psicologia por maior problematização sobre abordagens e publicação de experiências nesses contextos (Garido et al., 2010).

Junto ao movimento dos Conselhos e Sindicatos, as universidades também foram convocadas para desenvolver um papel importante, pois nada mais promissor do que incitar as bases da própria construção do conhecimento em psicologia. Destituir e reinventar o saber foram os atos de força política para a consolidação de práticas que compreendesse a saúde na suas diversas facetas, no sentido de acompanhar sistematicamente esses conhecimentos e as práticas geradas a partir desses (Kúbo & Botomé, 2001; Conselho Federal de Psicologia, 2009; Guarido, Padilha & Souza, 2010).

Portanto, esses protagonistas (sejam profissionais, instituições ou coletivos), sinalizaram novas tendências para a redefinição da produção científica da psicologia na proporção que investia e problematizava sobre a saúde brasileira (Kubo & Botomé, 2001; Camargo-Borges & Cardoso, 2005). E em consequência dessa oferta de serviços surgia então a demanda por novos campos de atuação e a construção de novos referenciais teórico-práticos que contemplassem o sujeito em suas diversas dimensões, além dos aspectos psicológicos (Brasil, 2005; Vasconcelos, 2004).

No sentido de acompanhar a realidade social e política que o Brasil passava nesse período, a psicologia acaba pegando carona no processo de consolidação do SUS. Esse vinha correspondendo as expectativas à medida que muitos lutavam para construção e ampliação constante de sua rede de estratégias e serviços. Desse modo, os profissionais de psicologia acompanhavam conjuntamente esse propósito a fim de dar conta das diversas problemáticas em saúde, articular a atenção e o cuidado nos três níveis que o SUS se propunha a organizar sua rede de serviços (primário, secundário e terciário) (Kubo & Botomé, 2001; Camargo-Borges & Cardoso, 2005).

Porém, é na Atenção Primária à Saúde – APS que se voltam os olhares dos gestores locais e profissionais que atuantes e que o presente trabalho contemplará, pois se trata de um cenário complexo à medida que envolve um conjunto amplo de conhecimentos e procedimentos que visa promover um efeito positivo sobre a qualidade de vida da população a partir de seus territórios existenciais. Isto é, de um contato direto e contínuo, implicando relações co-responsáveis e autônomas no cuidado e se deixar ser cuidado.

É nesse campo que são garantidos o acesso e primeiro contato do sujeito com o sistema de saúde, a integralidade da atenção e a coordenação do cuidado, demandando maior reflexão e apoio ao se tratar da manipulação cotidiana dos contratos vivenciais e dialéticos dos que transitam nas ações da Estratégia de Saúde da Família – ESF. Esse se trata de um dispositivo cujas intervenções são ampliadas e coletivas, produzidas por uma equipe (como os enfermeiros e técnicos, médicos, farmacêuticos e Agentes Comunitários de Saúde), se caracterizando enquanto porta de entrada para o sistema, seguir com o princípio para a reorientação do modelo de atenção no SUS e garantir a inserção de diversos profissionais, como a psicologia (Romagnoli, 2006; Brasil, 2009).

Sobre essa inserção, Spink e Matta (2007) apontam as primeiras experiências que a psicologia obteve nas Unidades Básicas de Saúde – UBS’s (lócus das Equipes da Estratégia Saúde da Família) e o quanto vem crescendo continuamente essa inserção e, consequentemente, a produção de novas práticas em diálogo com esses profissionais e a comunidade a quem se destinam o seu cuidado.

Nessa perspectiva de ampliar os serviços, a abrangência, a resolutividade, a territorialização, a regionalização das ESF’s e também a participação de novos profissionais em saúde na APS que o Ministério da Saúde – MS desenvolve os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF com a aprovação da Portaria GM nº 154, de 24 de janeiro de 2008 (Brasil, 2009). Aqui a psicologia observa uma nova oportunidade para expandir sua atuação e continuar problematizando a medida que novos desafios se colocam frente a sua práxis.

A partir disso, se torna necessário delinear os processos organizativos dessa nova metodologia de assessoramento e apoio as práticas na APS, pois o mesmo traz consigo a competência para apoiar a inserção da ESF na rede de serviços, possibilitando um trabalho interdisciplinar e intersetorial através de um suporte técnico-pedagógico às EqSF’s e a população por meio da Educação Permanente em Saúde – EPS. Esse trabalho consistiria na problematização sobre “conceitos chaves” para a qualidade de uma intervenção, bem como a noção de território, integralidade, o cuidado, a participação social, entre outros que surgissem de forma espontânea segundo a demanda local (Brasil, 2009).

Ao que se refere à organização e composição, o NASF abarca diferentes profissionais especializados e que atuam em conjunto com as ESF’s. Para tanto, existem dois tipos de modalidades a fim de delimitar esse trabalho: o NASF 1, que deve realizar as suas atividades vinculadas a, no mínimo, oito e, no máximo, 20 equipes de Saúde da Família; e o NASF 2 que trabalha em conjunto com, no mínimo, três e, no máximo, vinte equipes de Saúde da Família (Brasil, 2009).

A escolha dessas modalidades e dos profissionais se dará conforme a gestão local julgar necessária ou a depender das reais necessidades encontradas pelas EqSF’s, visto que cada uma dessas modalidades possui um financiamento diferenciado a depender da quantidade de ESF’s distribuídas no município e as diferentes especificidades das mesmas. Desse modo, o NASF 1 contempla um quadro com cinco profissionais de distintas especialidades: um Médico (especializado em Acupuntura, Ginecologia, Homeopatia, Pediatria ou Psiquiatria), um Assistente Social, um Educador Físico, um Farmacêutico, um Fisioterapeuta, um Fonoaudiólogo, um Nutricionista, um Terapeuta Ocupacional e/ou um Psicólogo; e o NASF 2 deverá ser composto por, no mínimo, três profissionais como os já citados, exceto as especialidades médicas (Conselho Federal de Psicologia, 2009).

Diante disso, esse dispositivo para a saúde oferece um suporte assistencial, técnico e pedagógico a diferentes demandas: saúde da criança e do adolescente; saúde mental; reabilitação/saúde integral da pessoa idosa; alimentação e nutrição; serviço social; saúde da mulher; assistência farmacêutica; atividade física/ práticas corporais; práticas integrativas e complementares (Brasil, 2009). Assim, o processo de trabalho do NASF possui uma ação organizada, mediada por espaços de discussão para a gestão do cuidado, com reuniões e atendimentos compartilhados com os profissionais das ESF’s, constituindo assim um processo de aprendizado coletivo (Conselho Federal de Psicologia, 2009).

A partir desse conjunto de atributos, modo diferenciado de trabalho e quadro de profissionais que o compreende, é que se faz necessária uma discussão sobre o processo de inserção da psicologia nesse novo contexto, principalmente após o MS, até 2009, apontar a aprovação de 144 projetos que requisitavam a implantação do NASF, sendo a psicologia a representar 15% das contratações, categoria em saúde de maior proeminência. Assim, percebe-se que se trata de mais uma iniciativa em saúde a qual envolve a atuação do profissional de psicologia e a incipiência de estudos e reflexão crítica sobre os saberes produzidos nesse campo (Conselho Federal de Psicologia, 2009).

Concomitantemente, o Conselho Federal de Psicologia (2009) por meio do Seminário Nacional sobre a participação da psicologia nos NASF, em 2008, concluiu que é no campo da saúde mental que as suas práticas vêm se legitimando, de modo a ressaltar o compromisso ético-político para uma clínica ampliada e embasada pelos princípios do SUS e pela Reforma Psiquiátrica. Assim, o seu papel segue com o objetivo de oferecer atenção aos usuários e seus familiares em situação de vulnerabilidade psicossocial ou transtorno psíquico, além de enfrentar agravos vinculados ao uso abusivo de álcool e drogas, através de ações de Redução de Danos e combate à discriminação, proporcionando acesso ao SUS e uma atenção integral (Conselho Federal de Psicologia, 2009).

Porém, esse encontro também trouxe uma discussão paralela sobre a tentativa de ampliar o olhar da psicologia para além da saúde mental, passando a considerá-la um tema transversal dentro do vasto campo da saúde e dos aspectos da vida social. Ou seja, as demandas que se apresentam às EqSF’s podem evidenciar que “todo problema de saúde é também – e sempre – mental, e que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde”  (Brasil, 2004, p. 79), rompendo assim com os discursos das especialidades para adotar um viés da interdisciplinar (Brasil, 2009).

Talvez esse seja mais um dos desafios apresentados no cotidiano do trabalho que se mostram aos psicólogos, somados então a tentativa de superar a representação social dessa categoria como unicamente clínica e individual, a dificuldade de integrar as diversas áreas de atuação que contemplem gestão de serviços, políticas públicas e a saúde coletiva, e também a grande responsabilização quando não há outros psicólogos na APS (Conselho Federal de Psicologia, 2009).

É dentro dessa perspectiva, que o NASF veio abraçar uma série de iniciativas em saúde e a própria psicologia nessa soma do fazer coletivo, mostrando-se enquanto estratégia recente e também complexa no cenário da APS, pois não existe um modelo pronto, mas um ideal, basta apenas saber no cotidiano como colocá-la em prática e isso remete contínuas tentativas e desejos (Brasil, 2009; Campos & Gama, 2010). Assim, o presente trabalho teve como objetivo compreender a atuação do psicólogo no NASF; saber, quais práticas são desenvolvidas a partir dessa metodologia de trabalho; como esses profissionais avaliam a escolha e eficácia dessas práticas e quais as dificuldades enfrentadas em relação às demandas nesse contexto, além de contribuir para a discussão sobre a atuação dos psicólogos nesse recente dispositivo em saúde junto a outros profissionais.

Metodologia

Esse estudo foi realizado em um município do Vale do Sub-médio São Francisco e nasceu frente a inquietação das presentes pesquisadoras sobre o campo de inserção da Psicologia e sua interlocução com a saúde nos novos cenários de atuação que vem surgindo. Nesse sentido, a pesquisa foi delimitada a recente metodologia de trabalho conhecida como NASF, o qual faz parte da rede assitencial de saúde pública desse município. É válido ressaltar que a ênfase do estudo coube a Psicologia, ao novo campo de atuação e, consequentemente, a possibilidade de produção de uma nova práxis, sem desconsiderar seus aspectos sociais e culturais absorvidos pela região e pelo novo espaço que vem lhe contemplando.

Desse modo, o estudo contemplou os cinco NASF's em 2009 e que compreende cinco profissionais em cada um deles cujas especialidades são farmácia, nutrição, educação física, psicologia e medicina. Porém, participaram dessa pesquisa os cinco psicólogos, seguindo alguns critérios de escolha básicos, tais como compreenderem o contexto delimitado pelas pesquisadoras, corresponderem ao mesmo número de equipes NASF's existentes no município e também estarem disponíveis para efetuar as entrevistas no contexto referido.

Como se tratou de uma abordagem sobre perspectivas de sujeitos delimitados, o estudo se seguiu uma Pesquisa Social em Saúde que, segundo Minayo (2007), segue um delineamento metodológico qualitativo e abrange "[…] todas as investigações que tratam do fenômeno saúde/doença, de sua representação pelos vários atores que atuam no campo: as instituições políticas e de serviços, e os profissionais e usuários" (p.47), compreendendo aspectos históricos e simbólicos, a ponto que evidenciam sentidos e versões de sua realidade.

Dessa maneira, foi realizada uma entrevista com cada sujeito a fim de apreender os dados que o estudo se propõe a analisar e acreditando que essa metodologia seria suficiente, visto que através dos discursos capturam-se signos e símbolos do cotidiano vivenciado e que a linguagem – ferramenta de mediação – tenta expressá-los à medida que também os resignificam. Assim, para efeito de apreensão dessas falas utilizou-se um roteiro de entrevista semi-estruturado como instrumento característico para maior flexibilidade com relação à temática aqui expressa, sendo gravadas após a aprovação no Comitê de Ética da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF e sob o consentimento dos psicólogos através do Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

Posteriormente, os discursos foram transcritos na íntegra para constantes leituras e categorização, utilizando para tanto a Análise do Discurso. Essa análise consiste na apreensão dos sentidos em três dimensões fundamentais do conhecimento: o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e suas transformações; a lingüística, tomando a linguagem enquanto produto intersubjetivo; e a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos sentidos. Esses três campos são atravessados e articulados pela psicanálise enquanto teoria da subjetividade, sendo a linguagem instrumento de mediação na constituição do sujeito em suas relações com o outro, sujeito esse de falta e de desejo por uma completude (Brandão, 2004).

Para o procedimento de categorização dos relatos, primeiramente foi efetuado a análise vertical desses, dando ênfase aos trechos significativos das falas de cada um dos profissionais. A partir dessa etapa, iniciou-se a análise horizontal, avaliando a tendência geral dos discursos para posteriormente categorização e subcategorização.

 

Resultados e Discussão

 

1.      Percepção de NASF

As entrevistas evidenciaram que os psicólogos, apesar de apresentarem outras experiências profissionais e se inserirem nesse novo campo de atuação, acabam por apostar na perspectiva de trabalho em saúde coletiva, perspectiva essa diferente daquelas traçadas em outros contextos. Diante disso, tecem compreensões sobre tal contexto à medida que se deparam com outros delineamentos metodológicos, como identificado através da seguinte fala:

Eu vou muito no modelo do NASF, inclusive coletivo. (…) Mas aí a gente foi aprendendo que era muito forte se a gente trabalhasse mais em grupo, trabalhasse com o coletivo, com a comunidade… E aí a gente foi xavecando realmente a filosofia do que se constitui o NASF. (PSI 02)

Retomando a observação acima, o NASF pode se tratar de mais uma estratégia de organização em saúde coletiva na qual o psicólogo pode vir a desenvolver uma Atuação Psicológica Coletiva- APC a partir da descrição das suas trajetórias profissionais e de situações concretas de trabalho. Ou seja, a partir do momento que o discurso sobre as práticas se torna externo e roda em um contexto interdisciplinar, ganha forma e retoma ao autor de outra perspectiva, pois foi analisada e resignificada junto a um coletivo. Quanto a esse ponto Lima (2005) aponta que essas experiências de trabalho na Atenção Primária devem seguir um processo de compreensão das metodologias com base no planejamento e em uma lógica pedagógica, dialogável e construtiva.

·         O conhecimento sobre o NASF antes de sua inserção

Entretanto, notou-se que apesar de tecer compreensões a respeito do contexto, os profissionais mostraram um desconhecimento sobre a sua proposta, fazendo de sua inserção em campo e de suas práticas um instrumento para novos e possíveis delineamentos, como ilustra a fala "Eu tinha ouvido falar NASF, mas assim foi logo pouco tempo depois que eu comecei a trabalhar, bem pouquinho, não soube quase nada, soube mesmo quando eu vim pra cá." (PSI 05)

A partir disso, observa-se que a entrada de psicólogos na saúde pública e abertura de novos territórios para a sua atuação corroboram a discussão de Aguiar e Ronzani (2007), quando esses apontam que, com essas mudanças recentes nasce, a possibilidade de se introduzir transformações qualitativas nas práticas a partir da formação acadêmica, sinalizando a importância de novos campos de conhecimento e interação das diversas áreas (Camargo-Borges & Cardoso, 2005; Kubo & Botomé, 2001).

·         Expectativas

Em paralelo, os entrevistados mostram-se cobertos por incertezas quanto ao funcionamento do NASF e acabam por tecer algumas expectativas diante da imprevisibilidade desse cenário. Tal característica encontra-se no seguinte discurso: "É eu não sabia, imagina, quando eu cheguei encontrei uma galera, farmacêutico, nutricionista, todo mundo junto… Eu fiquei bem esperançoso pra saber, curioso em saber o que era." (PSI 02).

Nessa dinâmica, os profissionais identificaram que não só a psicologia, mas também outras áreas de atuação são convidadas a compor esse território, percebendo a multidisciplinaridade em saúde, mas desconhecendo a perspectiva de um trabalho interdisciplinar. Diante dessa "falta de conhecimento coletivo" sobre o contexto de inserção, acabam por não apostar, a priori, nesse modo de trabalho, se resguardando numa atuação especializada e individual (Ronzani & Rodrigues, 2006), como é observado na fala logo em seguida:

"… aí eu cheguei ‘Meu Deus', chega eu me frustrei, pôxa eu pensando que ia sair daqui com ideias novas, novas informações né? E aí é… foi a partir da segunda reunião que caiu a ficha assim tipo ‘não, a gente tá no mesmo barco… eu vou ter que aprender mesmo sozinha', tipo assim né?! Na minha prática." (PSI 01)

Assim, pode-se utilizar da metáfora elucidada pelo profissional quanto a "todos estarem no mesmo barco" para evidenciar a importância do trabalho enquanto um processo de aprendizagem coletiva a fim de definir tais territórios e suas práticas em uma integração efetiva (Ronzani & Rodrigues, 2006). Em contrapartida, percebe-se certa ambivalência na fala dos entrevistados quanto à percepção sobre o NASF e o seu processo de trabalho dentro de uma lógica multidisciplinar.

 

  1. Atuação do profissional de psicologia no NASF

Frente ao questionamento sobre a sua atuação no NASF, os dados evidenciam que os psicólogos não possuem pleno conhecimento de sua função quando tem que lidar com as demandas advindas do cotidiano de trabalho, justificando que a "Psicologia dentro do NASF é muito nova…" (PSI 04). Em consequência disso, aponta-se a falta de um delineamento teórico-prático e de discussão sobre essa inserção da psicologia no NASF, como analisado no discurso abaixo:

 "(…) Mas de tudo que pesquisei eu não consegui achar qual era o papel do psicólogo… Você consegue identificar qual é a função de um psicólogo clínico, você consegue identificar qual a função do psicólogo social e de um psicólogo hospitalar, organizacional, certo?! Você consegue ter um contexto, é isso que eu tô querendo dizer, um contexto." (PSI 03)

Assim, observa-se que os discursos corroboram a tese de vários autores (Dimenstein, 2000; Ronzani & Rodrigues, 2006; Fermino, Patrício, Krawulski & Sisson, 2009) os quais destacam que a inserção do psicólogo no campo da saúde tem se mostrado difícil, tanto por questões externas (a formação, as expectativas ou a representação social), quanto por falta de modos de atuação. Contudo, esses profissionais tentam definir o seu papel a partir de seu cotidiano de trabalho com diferentes públicos (equipes de saúde, usuários e serviços) e dentro de concepções pré-estabelecidas.

Dentre os discursos foram encontrados algumas referências práticas a fim de ilustrar os diferentes modos de atuação desses profissionais, bem como a escuta clínica, um diálogo e apoio em reuniões, uma supervisão e co-gestão no trabalho, papel esse central do NASF segundo algumas discussões traçadas no Seminário Nacional sobre a participação da psicologia nos NASF (Conselho Federal de Psicologia, 2009). Esses modos de agir se colocam enquanto sinais para possíveis e constates revisões das concepções obtidas sobre a "função do psicólogo" nos diferentes contextos a que se destinam suas práticas, para assim evitar uma simples reprodução de um saber-fazer e caminhar para além de limites circunscritos ou papéis definidos ou estáticos (Fermino et al., 2009).

·         Relevância da profissão no NASF

Apesar de haver uma dificuldade em definir os modos de atuação do psicólogo no NASF, esses profissionais apontam a importância de sua categoria dentro desse novo método de trabalho, se colocando enquanto trabalhadores em saúde mental, lugar esse de certo modo legitimado pela portaria do serviço (Brasil, 2009), conforme ilustra o discurso a seguir:

 Acho que em especial o psicólogo, eu acho que ele faz diferença muito grande… Como é que a gente vai cuidar das outras áreas, né?! Nutrição, né?! Assistência social, … Da vida do sujeito e não cuidar da saúde mental? Ela tem que ser vista, né?! Ela tem que ter um espaço mesmo… se não tiver o profissional pra saúde mental pra tá orientando, pra ajudar a perceber, né?! Esse leque, né?! (PSI 01)

A partir desse discurso observa uma preocupante monopolização do saber e da gestão das práticas por agrupamentos de especialistas, além de uma perigosa institucionalização de aparelhos de controle sobre as práticas sociais à medida que se define limites rígidos e se nomeia um lugar de função, como é o caso da saúde mental, desconsiderando sua complexidade e transversalidade nas questões existenciais (Ronzani e Rodrigues, 2006; Fermino et al., 2009).

Em contrapartida, há uma ênfase contemporânea em se trabalhar apostando na transdisciplinaridade enquanto espaço de estudo e de aplicação, no qual cada teoria e prática perdem a sua identidade e dá lugar a realidade encontrada, antes mesmo de uma concepção pré-estabelecida por qualquer ciência, para criar novas formas de relações sujeito-realidade no caráter de invenção da intervenção e redirecionamentos teórico-práticos (Romagnoli, 2006).

·         Formação profissional e sua implicação nas práticas desenvolvidas

À medida que os entrevistados reconhecem um papel para além de uma prática clínica individual, também apontam a importância da formação continuada para o desempenho de práticas atualizadas no NASF, ressaltando que sua inserção nesse cenário se deve à carreira acadêmica e as práticas desenvolvidas durante esse período. Logo, a clínica tradicional foi o campo mais evidenciado dentre as formações, como se constata na fala abaixo:

"… Por incrível que pareça pra conseguir atuar aqui eu me formei em clínica e aqui era pra gente ser psicólogo social, mas eu tive cadeiras de psicologia social, que a gente estuda toda a questão da psicologia, é… psicologia de intervenção psicossocial, né?!" (PSI 03)

Neste particular, Goldberg (2001) define como sendo "preconceito tecnológico" a postura de alguns profissionais possuírem dificuldades para desenvolver práticas fora de seu repertório metodológico adquirido na formação profissional, enfatizando assim disciplinas específicas ou modelos de atuação, como a clínica tradicional. Nesse sentido, torna-se necessário uma discussão ampliada sobre a formação e o perfil teórico-prático da psicologia, pois não basta mudar de clientela; é importante que, além disso, o psicólogo problematize aquilo que teoricamente embasa a sua atividade e reconheça a pluralidade que o campo lhe apresenta, proporcionando uma clínica que se produz num campo social e coletivo (Ronzani & Rodrigues, 2006; Romagnoli, 2006).

– O diagnóstico, técnicas ou abordagens enquanto norteadores de suas práticas

Pode-se considerar que, ao enfatizar determinadas áreas na formação, algumas práticas são reproduzidas diante da falta de ferramentas teóricas, técnicas e críticas para a atuação no SUS. Ou seja, frente a esse cenário desconhecido, a crença no diagnóstico, técnicas e no limite de campo para atuação garante um suporte e segurança para o profissional de psicologia, como mostra as seguintes falas "Porque a minha linha foi ACP, certo?! Então assim, no NASF a gente tem que fazer atendimentos breves, não pode fazer uma terapia." (PSI 05), e "… não tem como não pensar em psicodiagnóstico, não tem como não pensar em técnicas da psicologia,… A orientação e aconselhamento da psicologia, intervenções rápidas, diretas." (PSI 02)

Nesse ponto, abri-se uma discussão relevante sobre o uso de diagnósticos, prescrições de tutela e formas de tratamento, pois embora constituam "modelos" de atuação, mesmo sem dar-se conta, podem seguir uma função de vigilância sobre os membros de um grupo, estabelecendo normas e controle sobre a vida desses sujeitos dentro de uma perspectiva relacional alienante (Romagnoli, 2006). Logo, esses profissionais devem se deter a uma maior reflexão no processo de adesão e aplicação dessas teorias, técnicas, modelos e rituais profissionais, pois essas acabam os condicionando à adesão de determinadas classes de respostas, como a medicalização e o controle social, passando a considerá-las suficientes e adequadas.

·         O trabalho na Atenção Primária a Saúde

Nessa dinâmica, a inserção desses profissionais nos diferentes cenários proporcionados pelo NASF, leva-os a redefinir a concepção de trabalho e sua atuação, ampliando práticas a diversos públicos e contextos. Dessa forma, percebem que esse lugar lhe proporciona uma experiência ampliada, diferente dos consultórios na proporção que articulam com equipes, usuários e redes sociais. Pode-se perceber tal análise no seguinte discurso:

Eu acho que de toda a experiência como psicóloga essa é a melhor, é muito bom trabalhar com o NASF, com a população toda. Até porque você pode comparar, tá entendendo?! Como você trabalhou em consultório, que é muito limitado, e como você pode ajudar em, de forma coletiva. Porque a gente trabalha com educação em saúde… (PSI 04)

Nesse sentido, há que identificar algumas funções que esses chegam a desempenhar frente a diferentes demandas e públicos nessa proposta de trabalho, tal como uma ótica psicossocial, ao atuar de forma preventiva e promovendo saúde, à medida que lidam com processos de saúde-doença-cuidado; uma atitude pedagógica, ao desenvolver programas de educação; uma atitude investigatória quando avaliam os resultados de suas atividades e também institucional à medida que lidam com a dinâmica metodológica de diferentes atores sociais (Ronzani & Rodrigues, 2006). 

Para tanto, a participação em espaços que possibilitam essa dinamização de funções mostrou-se relevante para todos os participantes quando citaram a participação em projetos de extensão vinculados às universidades, em Grupos de Trabalhos, nos Conselhos de Saúde, em supervisão e/ou pós-graduações para gerir uma eficiência e eficácia de sua práxis (Fermino et al., 2009).

– O lugar do profissional de psicologia no imaginário das equipes

Junto aos demais profissionais a figura do psicólogo ganhava uma imagem por vezes equivocada ou superestimada a seu respeito, fazendo com que tal compreensão comprometesse no desenvolvimento de suas respectivas práticas. Pode-se observar tal análise na fala abaixo:

E eles imaginam nós psicólogos, assim… se pensar em caso de psiquiatria muitas vezes eles encaminham pro psicólogo, primeiro como se a gente tivesse o poder de pensar ou tentar resolver aquilo, eu acho que não tem a figura do psiquiatra. Tem gente na saúde que pensa que a gente até assim é… prescreve medicação, eu acho. (PSI 02)

Quanto ao imaginário formado pelos demais profissionais envolvidos no cotidiano de trabalho do psicólogo, pode-se afirmar que a cultura e a formação dessa categoria vem contribuindo para reprodução de ideias e valores individuais, medicalizantes e curativos, na qual a psiquiatria se encontra paralela a essa constituição enquanto verdades científicas (Dimenstein, 2000). Dessa forma, os profissionais de psicologia acabam que respondendo a demanda institucional e faltando com a responsabilidade e o compromisso ético-político de seu papel, à medida que se deixam fazer aquilo que os outros profissionais esperam que façam ou acreditam que seja sua função, atuando somente por meio de psicoterapias e psicodiagnósticos.

– Abordagem Interdisciplinar

Nesse ponto de análise identificou-se uma contradição quanto a forma de trabalho desejado e aquele que realmente ocorre no cotidiano, ou seja, o compartilhamento dos saberes e fazeres encontra-se com o seu inverso nos discursos dos "especialismos", assim como é demonstrado nos trechos da entrevista de um mesmo profissional:

… Está podendo oferecer esse espaço de escuta pra eles, não no sentido de é…, de eu sozinha como psicóloga, mas tipo eu como psicóloga naquela equipe eu vou tá facilitando junto com [nutricionista], junto com [farmacêutico(a)]. (PSI 01)

… Por mais que a gente espere que todo mundo veja certas coisas não tem como a gente negar que só o especialista tem esse olhar, porque você tá mais envolvido mais na nutrição ou tá mais envolvido na educação física, por mais que você veja, mas é diferente do profissional, né?! Daquele especialista. (PSI 01)

Diante desse movimento antagônico, pode-se constatar que, para esse profissional, o trabalho em equipe e a troca de conhecimento são percebidos enquanto grandes desafios à proporção que identifica a fragmentação da saúde que cada especialidade detém. Porém, diante dessa concepção "há também a pressuposição de relações hierarquizadas de saberes e poderes, o que sustenta saberes instituídos, que por sua vez, designam quem é competente para cuidar de quem e do quê (Romagnoli, 2006, p.10). Logo, conjetura-se que esse pensamento se deve à formação profissional, cabendo, então, às unidades formativas se atentarem à promoção de profissionais mais críticos e não somente técnicos (Romagnoli, 2006; Fermino et al. 2009).

                  – Proposta X Cotidiano do serviço

Em consequência desses atravessamentos citados no decorrer do texto se percebe um distanciamento entre o "ideal" de trabalho coletivo e o próprio cotidiano desses psicólogos, cotidiano esse no qual se encontram uma série de desafios, bem como simbolizar o campo de atuação e romper com as barreiras teórico-metodológicas. Assim como demonstra na fala a seguir:

… Por mais que a gente procure não tem aqui o que é ser NASF, o que é fazer NASF, qual o papel. Mas é como se a sua convivência fosse fazer com que te ensinar. (…) Eu tenho essa preocupação em trabalhar certo. Então às vezes eu até me limito, eu tenho ideias e eu paro porque eu fico ‘será que é atribuição do NASF', sabe?! ‘será que é atribuição da psicóloga? Como psicóloga, trabalhando na saúde, faz parte?' Então assim, às vezes eu, pode até ser um defeito, eu não arrisco tanto. (PSI 03)

Nessa perspectiva, o discurso aponta o fato desse profissional se sentir inseguro frente à falta de um conhecimento teórico (das atribuições e competências necessárias) sobre o NASF, limitando-se apenas às práticas adquiridas em sua formação, ao rigor científico, as técnicas e/ou as abordagens para atender às expectativas de um serviço "ideal", sem mesmo ousar e se entregar as possibilidades de atuação (Romagnoli, 2006; Fermino et al., 2009).

            – Atravessamentos institucionais: gestão, contrato, materiais de trabalho ou recursos humanos

 

Dentre os diversos impasses destacados pelos psicólogos entrevistados, foram evidenciados alguns atravessamentos institucionais, que segundo estes, acabam por influenciar no desempenho de suas práticas, tais como: o vínculo empregatício, o baixo salário diante da sobrecarga de tarefas associados ao grande número de equipes; a falta de materiais para desenvolvê-las, a dificuldade em pleitear o transporte e a falta de autonomia na escolha de suas atividades. Isso pode se observado na fala a seguir:

… Quando a gente tava aprendendo a, sabe?! Caminhando nesse preço da construção coletiva, aprendendo a trabalhar com isso, a gestão falou assim ‘volta pra sala pra atender'. Aí a gente volta pra sala. (…) Se tivesse autonomia de fato poderia, mas o pessoal sabe que não tem. Então fica a mercê de outros… (PSI 02)

A burocratização do processo de trabalho também foi colocada como um fator que dificulta a sua atuação, privilegiando a quantidade em detrimento da qualidade dos serviços prestados. Nessa direção, os psicólogos entrevistados relatam a obrigatoriedade do preenchimento de determinadas fichas, o que limitaria o desempenho de sua práxis, assim como aponta o discurso abaixo:

Então é tanta papelada pra preencher, é tanta burocracia, que as pessoas ficam muito presas a isso, … De ter que ter não sei quantos números,… Se eu pegar a minha ficha A, D,… Tem coisas que não entram nessa ficha. Por exemplo, a gente tava fazendo uma pesquisa, levando o levantamento pra a territorialização… Não tem onde encaixar o que fiz à tarde. (PSI 03)

Pode-se perceber que o comprometimento no trabalho vem sendo associado ao cumprimento dos deveres e obrigações atribuídas pela gestão a partir de metodologias ortodoxas e que descaracterizam a atuação desse profissional (Dimenstein, 2001). Diante disso, os psicólogos não se sentem envolvidos no seu trabalho, se sentindo desestimados e responsabilizando a gestão pela falta de autonomia e escolhas nesse processo.

      – Empuxo à psiquiatria e à medicalização

A relevância atribuída à psiquiatria foi também identificada à medida que todos os profissionais entrevistados apontaram a falta dessa especialidade na região e a importância de uma saber médico para o diagnóstico e a medicalização enquanto uma resposta imediata para os transtornos psíquicos. Este eixo retoma a discussão anterior a respeito da demanda por uma técnica diagnóstica e terapêutica como estratégias prioritárias de intervenção, porém sendo enfatizada neste momento enquanto aspecto presente no cotidiano de trabalho e não apenas enquanto consequência de sua formação, como se observa na seguinte alocução:

 (…) O psicodiagnóstico, né?!… E aí a gente precisaria muito da rede de saúde mental tá fortalecida. O atendimento psiquiátrico com intervenções medicamentosas. Isso é muito ruim, porque não tá tendo, a rede não tá tendo e isso atrapalha muito, muito… Necessitava muito intervenção medicamentosa e psiquiátrica. (PSI 02)

De acordo com Romagnoli (2006), o profissional exerce um "poder normativo, tendo como meta a supressão de qualquer conduta estigmatizante, … em detrimento de um posicionamento político acerca dos efeitos de suas práticas" (pp.8-9) e assim, reproduz fazeres instituídos no campo manicomial e psiquiátrico como o "lugar" de doença e tratamento, à medida que utiliza de técnicas reducionistas e reguladoras, como a inferência ao diagnóstico e a medicalização.

 

  1. Práticas desenvolvidas pelos psicólogos

 

Os entrevistados apontaram algumas práticas como relevantes para a constituição de seu trabalho no NASF, bem como uma escuta ampliada nos encontros com as EqSF através de oficinas ou reuniões para discussão de casos, visitas domiciliares compartilhadas com outros profissionais do NASF, rodas de conversa e grupos em saúde mental com a comunidade e com os Agentes Comunitários de Saúde e atendimentos individuais. Além dessas, participam das reuniões com as EqSF e com as equipes NASF, para discussão, planejamento e avaliação de atividades. Tais práticas são identificadas na seguinte fala:

A gente tenta fazer estudos de casos, se esgotou estudo de casos, aí gente tenta programar atividades… A gente faz marcação de atividades posteriores, tipo roda de conversas na comunidade, né?! … Tipo eu faço roda sobre saúde mental…. (PSI 01)

A metodologia de grupos é de fundamental importância para a saúde pública, pois se adéqua as demandas das instituições e possibilita uma intervenção direta nas relações sociais (Romagnoli, 2006). Todavia, ainda se percebe uma dificuldade de se trabalhar com coletivos na comunidade, e talvez essa dificuldade deva ser revista durante a formação em psicologia como também a concentração de atividades em saúde mental por psicólogos em se tratando de uma temática transversal e que pode transitar nas diversas profissões e práticas.

·         Avaliação da escolha e eficácia dessas práticas

Entretanto, percebe-se que as práticas desempenhadas tentam seguir certa sistematicidade à medida que são discutidas e avaliadas quanto a sua eficácia. Assim, acabam criando espaços e metodologias pedagógicas que possibilitem a obtenção de melhores resultados em seu desempenho, como evidenciado nos discursos abaixo:

Porque assim, é uma construção, sabe?! Eu percebi que no início eu orientava mais, eu não percebia que eu poderia estar facilitando que os outros orientassem, né?! (…) Eu tentava, não mais orientar e sim, facilitar o estudo do caso… A gente meio que analisa. … A questão do PTS mesmo, eu vejo, assim, que são interessantes e que, assim, eu tento tá inserindo no meio, nas minhas atividades e adequando, mas assim eu acho que a gente pode e deve tá pensando novas formas. (PSI 01)

Pode-se compreender que esses profissionais acabam construindo sentidos sobre a sua função à medida que se percebem enquanto produtos de contínuas reflexões e campo de empreendimento. Diante disso, torna-se necessária uma constante avaliação dessas práticas psicológicas a fim de possibilitar uma maior problematização dos efeitos e das questões ético-políticas que atravessam as situações enfrentadas no cotidiano de seu trabalho, além de proporcionar o desenvolvimento de novos referenciais teórico-práticos em detrimento dos especialismos e das dicotomias (Conselho Federal de Psicologia, 2009; Romagnoli, 2006; Ronzani & Rodrigues, 2006).

 

·         Demandas que se configuram frente a esse profissional

 

No manejo dessas práticas, os psicólogos lidam com diferentes demandas e percebem o quanto variado são os contextos que lhe são apresentados por meio do NASF. Todavia, esses profissionais ainda restringem sua práxis ao campo da saúde mental, se colocando enquanto especialistas nessa área, como aponta a fala a seguir:

(…) as demandas que a gente recebe… tem muita depressão, todo grau, depressão leve, depressão moderada, grave, gravíssima… saúde mental, então psiquiátrico, que aí vem muita esquizofrenia… Eu tento identificar, por exemplo, depressão, a gente tenta ver se aquela pessoa é melancólica… (PSI 03)

Da mesma forma, percebe-se que ainda há uma dicotomia no olhar sobre a saúde e uma tendência de se pensar no campo da saúde mental enquanto sinônimo de diagnóstico e psiquiatria. Assim, Fermino et al. (2009) cita que esses profissionais sofrem uma espécie de "amnésia social", na qual as teorias são destorcidas e as práticas seguem um caráter reducionista, na qual evidencia a fragilidade na formação destes profissionais para lidarem com o caráter histórico dos fenômenos sociais e suas implicações político-ideológicas (Lima, 2005).

 

Considerações Finais

O percurso sócio-histórico e epistêmico para a formação em psicologia foi de excepcional importância à medida que incentivou a produção científica e crítica a respeito de suas práticas, nos diversos campos de atuação. Todavia, não se deve estagnar essa linha de pensamento uma vez que se tenha o propósito de construir uma ciência flexível aos diversos territórios e saberes, reconhecendo que a atuação do psicólogo na saúde pública e coletiva se propõe a um desafio constante e que exige uma postura cada vez mais ética e política nos processos educativos e cotidianos de seu trabalho.

Nesse sentido, não basta apenas sinalizar a necessidade de uma reorientação na formação profissional da psicologia para a produção de conhecimento, promoção de avanços e avaliação dessas práticas em diferentes territórios, tornando-se também essencial a articulação entre as estruturas de gestão da saúde (práticas e organização da rede), o controle social (participação nos debates e decisões sobre a formulação, execução e avaliação de políticas em saúde) e os serviços de atenção (profissionais e suas práticas) em prol da operacionalização do Quadrilátero da Formação (Ceccim & Feuerwerker, 2004).

Sobretudo, ao se pensar nesse percurso enquanto via de mão dupla de saberes e práticas, é necessária à criação de uma zona de indeterminação na qual as fronteiras disciplinares se dissipem e deem lugar a algo nesse ponto de encontro, desestabilizando "certezas" e proporcionando redirecionamentos teórico-prático nesse cotidiano. À medida que isso acontece, possibilita novos pensamentos, novas práticas e novos modos de cuidados em saúde, segundo o paradigma da transdisciplinaridade (Romagnoli, 2006) e da Educação Permanente em Saúde. Essa última surge enquanto metodologia fundamental para transformação dessa práxis, podendo promover tal articulação em prol de uma atuação crítica, reflexiva, propositiva, compromissada e tecnicamente competente (Ceccim, 2005).

Desse modo, os profissionais de psicologia inseridos no NASF possuem um grande desafio pela frente, tornando-se imprescindível saber se os mesmos estão dispostos a se fazer "objeto" dessa mesma metodologia enquanto ferramenta de seu próprio agir, interrogando-se no cotidiano de seu trabalho. Isto é, se colocando ético-politicamente em discussão, no plano individual e coletivo, a fim de criar uma clínica diferente dos moldes clássicos e normativos, e que respeite as necessidades de saúde das pessoas, dos coletivos e das populações.

Por essa razão, a atuação do profissional de psicologia no NASF deve render maiores discussões, seja no processo de formação acadêmica para adesão de novos espaços de reflexão, seja na implicação no próprio cotidiano de trabalho a fim de identificar como esses discursos se encontram nas práticas desenvolvidas. Mesmo porque, estas questões viabilizam a quebra de alguns paradigmas sociais e favorece a Psicologia uma inserção efetiva nesse recente cenário, à medida que também sinaliza a abertura de outros territórios, potencialidades, projetos, atores e autores e perspectivas críticas a partir de situações concretas.

 

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