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Recontando os contos de fadas no CREAS: possibilidades de enfrentamento das situações de violação de direitos de crianças através das atividades socioeducativas e a psicanálise

Introdução

O presente estudo, fruto da realização de um trabalho com um grupo de crianças de 6 à 12 anos de idade atendidas pelo CREAS de Porto Seguro, objetiva discutir a inserção dos contos de fadas sob a luz da psicanálise em atividades socioeducativas como prática promotora de momentos de reflexão sobre a situação de violação de direitos e enfretamento às seqüelas psicossociais advindas de violências sofridas.

Inicialmente antes de apresentar tal intervenção torna-se necessário a compreensão da oferta de serviço do CREAS, de como se configuram as atividades socioeducativas, e quais contribuições a psicanálise pode oferecer na execução destas, bem como a função dos contos de fadas no desenvolvimento psicossocial das crianças.

1.      Sobre o CREAS e suas ações

 

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) integra por meio de suas ações e atendimentos a Proteção Social Especial de Média Complexidade da Política Nacional de Assistência Social (2004).

No intuito de melhor compreendermos a quem o CREAS se destina e quais suas demandas e possibilidades de ações, impõe-se analisarmos a política pública que lhe dá sustentação.

Mediante os multifacetados aparecimentos da questão social no Brasil, aqui entendida como advoga Imamato (1999) como o conjunto de expressões das desigualdades sociais da sociedade capitalista madura, o Governo manteve ao longo dos anos distintas posturas.

Na década de trinta, a assistência era desempenhada por comunidades filantrópicas e centros religiosos, e a transferência de renda para atividades de assistência era feita do governo federal para as entidades, sem controle social ou participação dos estados ou municípios.                           

Ainda nos anos sessenta do século passado as diferenças regionais não eram levadas em consideração e havia um incentivo à criação de entidades filantrópicas, através de isenção de impostos a estas.

Até meados da década de oitenta as ações da assistência social eram complementares a outras políticas públicas e não possuíam objetivos, a não ser objetivos complementares. É em 1993 com a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS que a assistência social é reconhecida como política pública, dever do Estado e direito do cidadão.

        Atualmente a Política Pública de Assistência Social configura-se de forma a considerar as desigualdades sócio-territoriais, visando seu enfrentamento, a garantir os mínimos sociais e a universalizar os direitos sociais (PNAS, 2004) e é com a implantação do SUAS – Sistema Único de Assistência Social, que há o fortalecimento desse compromisso.

          Uma vez que é no SUAS que concretizam as bases e as diretrizes para a nova Política Nacional de Assistência Social – PNAS, sua implantação é o marco para uma nova forma de proteção daqueles que se encontram em uma situação de vulnerabilidade social.

 A PNAS (2004) propõe dois níveis de proteção social. Aos que não tiveram seus direitos violados, mas se encontram em situação de vulnerabilidade é destinada a Proteção Social Básica – PSB. O programa de proteção básica do SUAS é o PAIF – Programa de Atenção Integral à Família, este desenvolve ações e serviços básicos continuados para famílias em situação de vulnerabilidade social, fortalecendo os vínculos familiares e comunitários, estas ações e serviços são desenvolvidos nos espaços físicos do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS.

A PNAS (2004) define o CRAS como uma unidade pública estatal de base territorial, localizado em áreas de vulnerabilidade social, que deve referenciar um total de 5.000 famílias. Este executa serviços de proteção social básica, organiza e coordena a rede de serviços sócio-assistenciais locais da Política da Assistência Social, constituindo-se a porta de entrada dos usuários da rede de proteção básica do SUAS.  

          Os que tiveram algum direito violado, mas que não houve rompimento de vínculos familiares, a Proteção Social Especial de Média Complexidade  deles se ocupa e, os que tiveram vínculos familiares e comunitários destituídos a Proteção Social Especial de Alta Complexidade se debruça na tentativa de solução desta dura realidade.

Os serviços de PSE de Médica Complexidade acontecem no Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, sendo este destinado ao enfrentamento de violação de direitos, ou ainda no CREAS Liberdade Assistida – LA e Prestação de Serviços à Comunidade PSC, destinado a adolescentes em conflito com a lei.

No CREAS funciona o PAEFI: Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos. De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009, pg. 19) este caracteriza-se como

“um serviço de apoio, orientação e acompanhamento a famílias com um ou mais de seus membros em situação de ameaça ou violação de direitos. Compreende atenções e orientações direcionadas para a promoção de direitos, a preservação e o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e sociais e para o fortalecimento da função protetiva das famílias diante do conjunto de condições que as vulnerabilizam e/ou as submetem a situações de risco pessoal e social.  O serviço articula-se com as atividades e atenções prestadas às famílias nos demais serviços socioassistenciais, nas diversas políticas públicas e com os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos. Deve garantir atendimento imediato e providências necessárias para a inclusão da família e seus membros em serviços socioassistenciais e/ou em programas de transferência de renda, de forma a qualificar a intervenção e restaurar o direito”.      

Os usuários deste serviço, ainda de acordo com o mesmo documento acima citado são potencialmente os indivíduos e famílias vítimas ou sob ameaça de violência física, psicológica e negligência, violência sexual: abuso e/ou exploração sexual, vítimas do afastamento do convívio familiar devido à aplicação de medida socioeducativa ou medida de proteção, tráfico de pessoas, situação de rua e mendicância, abandono, vivência de trabalho infantil, discriminação em decorrência da orientação sexual e/ou raça/etnia, outras formas de violação de direitos decorrentes de discriminações/submissões a situações que provocam danos e agravos a sua condição de vida e os impedem de usufruir autonomia e bem estar, famílias em descumprimento de  condicionalidades do PBF e do PETI em decorrência de violação de direitos (Tipificação de Serviços Socioassistenciais, 2009).

As ações do CREAS devem constantemente orientar-se pela premissa de que necessitam contribuir para a reparação de danos e da incidência de violação de direitos dos seus usuários e da comunidade em geral.

Possibilitar oportunidades de superar padrões violadores de relacionamento e poder construir projetos pessoais e sociais e desenvolver a autoestima também são buscas constantes por parte de todos os profissionais que atuam no CREAS.

É na tentativa de promover autonomia do sujeito vitimizado, de desnaturalizar a violação de seus direitos e de propiciar o desenvolvimento de vínculos interpessoais, que o profissional deve pautar suas ações dentro da PNAS, contribuindo assim, para a inserção social do sujeito, como nos propõem Os Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais e Psicólogos (as) na Política de Assistência Social (2007).       

Contudo, isto só se dará quando ao sujeito for concedida a oportunidade de se ouvir, de se descobrir, de compreender a realidade que lhe cerca e na qual ele está inserido, quer seja através dos atendimentos e acompanhamento familiar individualizado ou em atividades em grupo, com psicólogos, assistentes sociais, educadores e advogados. Assim, este indivíduo poderá resignificar sua historia de vida, saindo do lugar de objeto para o lugar de sujeito de sua história.

  

2.      As atividades Socioeducativas

 

Na tentativa de reparação de danos e da diminuição da incidência de violação de direitos ações no CREAS como encaminhamentos à rede de proteção social, atendimentos psicossociais e atividades socioeducativas são desenvolvidas como forma de enfrentamento as plurais facetas da questão social. Uma vez que o presente estudo foca-se no desenvolvimento de atividades socioeducativas e o uso dos contos de fadas sob a ótica da psicanálise, nos ateremos a este tipo específico de ação desenvolvida no CREAS.

As atividades socioeducativas dentro da PNAS, 2004, visariam o desenvolvimento integral nas mais diversas dimensões dos sujeitos em situação de vulnerabilidade, mas elas não se iniciaram apenas em 2004 com a PNAS.

Estas atividades vêm ao encontro da resolução de questões decorrentes da exclusão social. Pode-se dizer que elas são desdobramentos da educação social, nascida na Europa, no pós-guerra para os órfãos de soldados mortos em combate, seu objetivo seria proporcionar reflexão e enfretamento desta nova realidade vivenciada por tais crianças e adolescentes, como afirma Ribeiro (2006), esta última se configuraria de forma diferente da que era oferecida na escola regular.

      O Traçado Metodológico de 2008, proposto ao serviço do Governo Federal Projovem advoga que a realidade de exclusão social gera desafios que só podem ser enfrentados através de uma concepção de ação socioeducativa que assegure o desenvolvimento integral do cidadão.

            Carvalho (2008) na busca pela conceituação de atividade socioeducativa usa o termo socioeducativo como qualificador, designando um campo de múltiplas aprendizagens para além da escolaridade, voltado a assegurar proteção social e oportunizar o desenvolvimento de interesses e talentos que os sujeitos aportam.

Dória e col. (2008) conceitua as atividades socioeducativa como um instrumento operacional para desenvolver ações e dinâmicas educacionais, devidamente planejadas para devido fim. Ele ainda sugere que diversas devem ser a metodologias a serem utilizadas, pois a participação do sujeito a quem se destina é fundamental.

As atividades sócioeducativas se propõem ao desenvolvimento da reflexão sobre o cotidiano e vivências dos participantes, como orienta o Caderno do Orientador Social Ciclo I (Percurso sócio-educativo II – 2008).

Estas atividades podem permitir o sujeito refletir sobre, como afirma Rosa (2002), alguns dos efeitos subjetivos e intersubjetivos da pobreza extrema, da exclusão social e também da violência que nela acontece.

Seguindo o pressuposto de Mrech (1999) de que a psicanálise advoga que os objetos e as emoções humanas tornaram-se os produtos mais elaborados de uma cultura que se caracteriza pela criação contínua do lixo e do desperdício, a ciência do inconsciente tem algo a contribuir sobre a discussão da questão social e suas múltiplas facetas, bem como sobre o sujeito vítima desta questão e alvo das atividades socioeducativas. A compreensão da possibilidade de aporte psicanalítico nas atividades sócioeducativas pode ser encontrada na direção da contribuição que a psicanálise possibilita à educação.

Para esta última o discurso psicanalítico propõe que seria desejável que ela deveria se interessar pelo desejo do aprendiz, o que ele deseja aprender é o primeiro passo, afinal o saber só é possível se houver o desejo em aprender, afirma Bastos (2004). Se isto se faz possível na educação convencional, existe uma possibilidade de repetição com a atividade socioeducativa.

Esta contribuição viável da psicanálise se faz no sentido da forma de participação do próprio sujeito na atividade sócioeducativa já que espera-se que o sujeito deve se tornar autônomo com estas.

Assim, possibilitaria ao usuário das atividades sócioeducativas erguer um processo de construção de aprendizagem cidadã, o sujeito participa desde o início da arquitetura da própria atividade, logo, este primeiro processo de construção despertaria no indivíduo um desejo em aprender sobre o que esta sendo edificado por ele mesmo.

A psicanálise pode contribuir também para articular, ressignificar e transformar os elementos simbólicos e causadores de estresse de grupos que vivem as fragmentações da vida social e cultural contemporânea, com afirma Dupas (2008).

Esta sociedade contemporânea é a sociedade do esteriótipo, das crenças prévias, de como as pessoas devem pensar e sentir, afirma Mrech (1999), e por mais que esta forma de organização nos venda o saber e as imagens estereotipadas como verdadeiras fontes de saber, podemos através das atividades sócioeducativas não acreditar nelas ou não nos encontrarmos por elas representados.

Para a psicanálise, os esteriótipos, as imagens, e os preconceitos são fenômenos essencialmente imaginários, ou seja, aquilo que em função de imagens o sujeito acredita e dá validade.

Se o imaginário, para a psicanálise, é o registro daquilo que se congela, da imagem fixada no espelho, é possível que o sujeito se perceba como não inserido nela, ou seja, podendo dela sair, (MRECH, 1999). Assim as atividades socioeducativas podem ser espaços para a compreensão dos esteriótipos e da saída deles.

Assim dentro de uma orientação psicanalítica o profissional pode proporcionar na atividade sócioeducativa a possibilidade do sujeito elaborar um saber a respeito do seu próprio processo, um saber que possibilite a ele se localizar frente à lógica do consumo e da violação de direitos como um processo natural.

O que é esperado do trabalho da atividade socioeducativa é que esta vá ao encontro de produzir no sujeito participante um efeito estruturante e organizador das questões as quais está inserido o sujeito em vulnerabilidade social.

 


3. Os Contos de Fadas

 

Para compreendermos como o uso dos contos de fadas podem se configurar em uma via das milhares para auxiliar no desenvolvimento de atividades socioeducativas a promoverem em seus participantes a reflexão sobre, como afirma Rosa (2002), alguns dos efeitos subjetivos e intersubjetivos da pobreza extrema, da exclusão social e também da violência que nela acontece, inicialmente cabe trazer a afirmativa de Bettelheim (1988):

 

“Muitos pais querem que as mentes dos filhos funcionem como as suas como se uma compreensão madura sobre nós mesmos e o mundo, e nossas idéias sobre o significado da vida não tivessem que se desenvolver tão lentamente quanto nossos corpos e mentes”.

 

Precedente a compreensão do mundo externo, a do mundo interno se caracteriza como processo antecessor, o psicanalista Bettelheim neste sentido advoga que os contos de fadas podem ser um veículo entre a fantasia e a experiência de realidade, permitindo de forma indireta, espontânea, criativa e lúdica a emergência de temas e afetos individuais (BETTELHEIM, 1988).

Promover a reflexão sobre estes determinantes aspectos externos e internos seria o fomento a processo de empoderamento aqui entendido como o reconhecimento das causas e circunstâncias que determinam nossa realidade (OAKELY e CLAYTON, 2003).

Assim podemos concluir que a utilização dos contos de fadas podem servir aos propósitos das atividades socioeducativas, especialmente no CREAS. Vale pontuar que contos de fadas no presente estudo são caracterizados como sendo todos eles configurados como uma narração ficcional breve, falada ou escrita, marcada pela presença de conteúdos mágicos e de final feliz (LUFT, 2001).

Sobre seus efeitos para quem tem contato com os contos de fadas Bettelheim (1988) afirma que dominar problemas psicológicos do crescimento, abandonar dependências infantis, obtenção de sentimento de individualidade, entender o que está se passando dentro do seu eu, entendimento dos mundos exterior e interior, oferecer soluções sob forma que a criança pode apreender no seu nível de compreensão, promover a reflexão para uma vida satisfatoriamente independente, ser terapêutico porque ajuda a achar soluções, dar esperança ao futuro, são alguns postulados por este autor e estudioso das funções dos contos de fadas.

Tais reverberações nos indivíduos são proporcionadas por estas narrativas quando observarmos que estas se caracterizam pela existência de personagens que não são ambivalentes como na vida real, também pelo fato de o herói possuir um período de isolamento\perlaboração do momento difícil e porque os contos de fadas tendem a convencer o sujeito que às vezes ele pode se sentir rejeitado, mas a ajuda virá com o tempo (BETTELHEIM, 1988).

O trabalho com os contos de fada conforme exposto acima, atrelado ao princípio da atividade socioeducativa, faz-se então uma possibilidade de fomentar em crianças que tiveram algum direito violado, uma forma de ressignificar e transformar os elementos simbólicos causadores de estresse de grupos que vivem as fragmentações da vida social e cultural contemporânea, com afirma Dupas (2008) e que na situação do CREAS podem ser compreendidos mediante as formas de violências causadas pelas violações de direitos provocadas geralmente por pessoas próximas a estas mesmas crianças.

 

4.      Procedimentos de atuação com o grupo

 

4.1  As participantes

            Tal atividade socioeducativa teve como público alvo nove crianças usuárias dos serviços do CREAS do município de Porto Seguro – BA, estas acionaram tal equipamento pelos mais vários tipos de violação de direito, sete delas foram vítimas de abuso sexual praticados por pessoas da própria família, duas por violência psicológica e verbal praticadas por uma vizinha que alimentava sentimentos hostis em relação à genitora destas. Vale pontuar que duas das participantes encontravam-se e permanecem em situação de abrigamento.

            As idades variaram de seis a doze anos. Tal fato das participantes terem uma enorme diferença de anos de idade marcou a primeira investida destas na execução da atividade onde decidiram que o grupo aconteceria para todas estas.

4.2  Os encontros

            Uma vez a cada quinze dias as participantes reuniam-se com o facilitador da atividade, este com formação em psicologia e atuante do CREAS, responsável também pelo atendimento psicossocial junto com a assistente social que acompanha cada caso individualmente. Para desenvolvimento das atividades este contou com o auxílio em alguns encontros de um educador e um assistente social.

            Os encontros eram quinzenais por serem estes alternados semanalmente pelo atendimento psicossocial prestado pela equipe do CREAS a estas crianças e seus familiares. Tais atendimentos ao longo do desenvolvimento se configuraram como uma ferramenta importante na avaliação das nuances apresentadas pelos movimentos subjetivos de cada criança, ou ainda pelos relatos dos familiares aos profissionais do CREAS em acompanhamento familiar, bem como as falas e as “não – falas” trazidas ao psicólogo em atendimento.

            A escolha em participar da atividade se dava pelo convite dos profissionais a estas crianças quando estas chegavam ao CREAS. Era informado sobre o um grupo de histórias de contos de fadas e marcado início da atividade.

            Uma dinâmica de apresentação foi realizada onde foram apresentadas figuras impressas de contos de fadas e solicitado que cada uma deveria escolher uma gravura que mais se identificasse e após este momento explicar o porquê as outras participantes. Todas se envolveram bastante a ponto de não terem problemas quanto à diferença de idade, escolhendo uma configuração de atividade intergeracional mesmo sem perceber ou entender o que isto significa, mas já neste instante observamos a participação do sujeito a quem se destina esta atividade e esta característica é fundamental no desenvolvimento da atividade socioeducativa, idéia advogada por Dória e col. (2008).

            Após tal momento foi apresentado os contos de fadas mais conhecidos em nossa cultura ocidental e estas escolheram quais os contos deveriam ser trabalhados nos encontros posteriores, reiterando o a idéia de envolvimento do sujeito no planejamento e execução da atividade socioeducativa proposta por Dória e col. (2008).

            Iniciamos com o conto de João e Maria, solicitando às crianças que vendassem seus olhos para estimular a capacidade imaginativa, e o vinculo de confiança entre aqueles que ela não via enquanto se ouvia sobre uma história de abandono, realidade vivenciada por duas delas. A leitura se deu acompanhada de uma sonoplastia criada pelo psicólogo e o educador, facilitadores desta intervenção. Sons gravados misturados com sons reais improvisados intentaram suprir o que da visão estava sendo retirado neste momento.

            Após cada contato com um conto seguia-se um momento de discussão sobre o que elas tinham achado das histórias e da forma como tinha sido lida, executada, desenhada, etc. Neste ficou visível que a as crianças compartilhavam do medo de não poderem contar com ninguém na hora que precisassem, horas estas muito bem marcadas pela violência na vida de cada uma delas. Mas algo foi trazido por uma participante e fomentando pelos facilitadores, que devemos contar e proteger quem perto de nós está, João e Maria tinham um ao outro e venceram quando decidiram se unir e lutar.

            Ao longo da semana posterior estas crianças em atendimento psicossocial trazem para os profissionais algum movimento de resgate de figuras protetoras que estavam perto e estas crianças não as viam como segurança, como no caso de algumas mães delas. Saber quem te protege pode auxiliar na escolha de que este te proteja e promover esta proteção.

Seguindo a atividade com o grupo foi entregue lápis para desenhar e pintar a história da branca de neve dividida em quatro momentos onde de cada participante desenhava o que mais lhe chamou atenção. Foram incentivadas pelo psicólogo e pela assistente social as crianças a desenhar pedaços da história da branca de neve e esta atividade intentou estimular a inteligência pictórica, a atenção concentrada e possibilitou de alguma forma a esta crianças ter contato com figuras nas quais as estas puderam projetar seus desejos e angústias como afirma Bettelheim (1988) sobre o oferecimento dos contos às crianças.

As angustias parecem mais claramente endereçadas mediante a apresentação do mundo de fantasia e estas redesenham a realidade, auxiliando as crianças a perceberem as diferenças entre as pessoas boas na fantasia e as boas na vida real. Suas mães não são só boas ou só más como os pais, mães e madrastas dos contos, elas muitas vezes nem sabem o que fazer mediante as violências sofridas por estas usuárias do CREAS.

Para o trabalho com o conto da Cinderela foram entregues lâminas impressas de trechos da história para cada participante, mas estas gravuras estavam desordenadas para então as participantes ordenarem primeiro mediante o que achavam que deveria ser a seqüência e discutirem a lógica por elas utilizada em grupo e depois uma leitura do conto para reordenação da história. Tal momento da atividade socioeducativa objetivou o estímulo a capacidade criativa e imaginativa e a expressão de suas impressões sobre a história. Vale pontuar que a maioria delas ordenou a historia onde o final feliz nem sempre correspondia ao momento final, talvez pelo anseio do momento feliz o mais rápido possível ou por não acreditarem que nem sempre tudo termina bem.

Esta narrativa em especial provocou nestas crianças a discussão de que a aparência não determina a pessoa como no caso da Cinderela que quando é reencontrada pelo seu príncipe está vestida de borralheira.

A história da Bela Adormecida foi apresentada pela exibição do desenho animado produzido pela Disney e foi de grande contribuição por caracterizar por um momento onde as participantes mostraram através da discussão pós-filme uma compreensão de quem nem sempre se pode apressar as coisas. De acordo com Bettelheim (1988) este conto enfatiza, diferente dos outros, a concentração demorada e tranquila para os grandes feitos.

Esperar as coisas passarem e os afetos se tranqüilizarem talvez tenha sido a maior contribuição deste conto no processo de elaboração dos efeitos advindos da situação de violência experimentadas por estas crianças do CREAS.

Foi muito perceptível também o uso da capacidade de imaginativa destas participantes ao usarem como metáfora o pântano e a floresta que o príncipe tem que desbravar como as dificuldades encontradas em suas vidas pessoais.

O encontro seguinte foi marcado pela escolha da Bela e a Fera para trabalho, desta vez foram projetadas gravuras da história de acordo com a seqüência do conto e
às crianças foram solicitadas a irem contando a história de acordo com o que viam. Estimular a inteligência lingüística verbal e discutir os aspectos estéticos e morais da história foi o objetivo desta intervenção.

 Em discussão no grupo foi possível perceber o quanto a Fera foi projetada por estas crianças nas suas mães, nos seus irmãos, pais e até em alguns dos seus agressores, possibilitando a estas participantes visualizarem para além do horror e repugnância que esta besta provoca no conto há algo de frágil nele também. Auxiliando a perceber que pode, mas não quer dizer quem em todo haverá, de existir algo de humano nas feras que a vida impõe na vida real.

É evidente que nem todas as participantes tiveram o mesmo aproveitamento dos contos ou foram de maneira igual tocadas por eles ou ainda por estas intervenções, mas foi perceptível em um encontro final saber através de suas falas o quanto elas estiveram próximas de si, de suas fantasias e o nível de abertura para falar sobre os seus medos e suas seqüelas nos atendimentos individuais aumentou, colaborando assim com os profissionais a ajudá-las a enfrentar as angústias que as violência provocaram nestas crianças.

Reconhecendo e respeitando o nível de desenvolvimento de compreensão de cada uma destas crianças, foi possível averiguar que falar sobre sua violência tornou-se mais fácil, mas não naturalizado, uma vez que há o reconhecimento delas sobre o horror que uma violência pode causar na vida de uma criança. Mediante tal caminhada de fortalecimento de vínculos familiares entres estas crianças e seus responsáveis e tentativas de reparação de danos e da incidência de violação de direitos estas crianças foram contra-referenciadas para o CRAS, para participarem de grupos de convivência e continuarem seu processo de construção de autonomia e empoderamento. As duas meninas que se encontram em situação de abrigamento continuam em atendimento psicossocial com a equipe do CREAS e acompanhadas pela equipe de Proteção Social de Alta Complexidade.

 

5.      Algumas considerações

O trabalho com as atividades socioeducativas tem se mostrado útil ao longo dos anos, mas principalmente com a implantação da PNAS (2004) uma seara fértil e imensa tem sido construída por estas atividades no fortalecimento de vínculos familiares e comunitários para as populações em situação de vulnerabilidade social ou em situações de violações de direitos e violência.

Apesar de não se ter uma fundamentação teórica tão consistente como outras práticas, as atividades socioeducativas abre espaço, devido também a sua recente inserção em políticas públicas, para a elaboração de atividades criativas e protetoras.

Não diferente o uso dos contos de fadas, sob a ótica da psicanálise, pode se tornar um forte aliado no processo de reconhecimento do mundo e da realidade aos que da Assistência Social precisam. A atividade com o grupo em questão possibilitou uma boa relação entre estas crianças e os profissionais do CREAS, um estreitamento entre os vínculos familiares destas e o aparecimento de conteúdos sofridos e não ditos, apenas sentidos e não significados por estas participantes.

Fica manifesta desta forma a riquíssima contribuição que as atividades socioeducativas, os contos de fadas e a psicanálise podem oferecer na reparação de danos e da incidência de violação de direitos. Assim, sonhar é preciso, principalmente para uma gente que segue em frente tendo só com a dor para contar.

 

6.      Referências

 

BASTOS, F.C.P. O Desejo de Aprender: Uma Visão Psicanalítica da Educação. In: Trilhas, Belém, ano 4, nº 1, p. 95-104, jul. 2004. Disponível em <http://www.nead.unama.br/site/bibdigi … f/artigos_revistas/44.pdf. Acessado em 12/06/2009.

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1988;

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento. Política Nacional de Assistência Social. Brasília, 2004;

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento. Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais e Psicólogos (as) na Política de Assistência Social. Brasília, 2007;

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento. PROJOVEM – Adolescente. Serviço Sócio-educativo. Traçado Metodológico. Brasília, 2008;

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento. PROJOVEM – Adolescente. Serviço Sócio-educativo. Caderno do Orientador Social – Ciclo I – Percurso Sócio-educativo. Brasília, 2008.

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, 2009.

CARVALHO, M. C. B. Ações Socioeducativas no pós escola como Enfrentamento da Iniqüidade Educacional. Disponível  em:  < http://www.cenpec.org.br?br/modules?xt_conteudo?print.php?id=32. Acessado em 23/09/2008;

DÓRIA, A. L. N. Projeto Viver Legal: Execução de Medidas Sócioeducativas em Meio Aberto.. Aracaju, 2008;

DUPAS, M. A. Psicanálise e Educação: Construção do Vínculo e Desenvolvimento do Pensar. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2008;

IAMAMOTO, M.V. O Serviço Social na Contemporaneidade: Trabalho e Formação Profissional. São Paulo: Cortez, 1999;

MRECH, L.M. Psicanálise e Educação: Novos Operadores de Leitura. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2003.

RIBEIRO, M. “Exclusão e Educação Social: Conceitos em Superfície  e Fundo. In Educação Social.  Campinas: Unicamp, 2006;

ROSA, M. D. “Uma Escuta Psicanalítica das Vidas Secas”. In Revista de Psicanálise Textura.  São Paulo: Revista de Psicanálise, 2002.

One thought on “Recontando os contos de fadas no CREAS: possibilidades de enfrentamento das situações de violação de direitos de crianças através das atividades socioeducativas e a psicanálise”

  1. Sou fã….cada dia mais… Aldo Lauritzen….

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