Finitude, Plenitude
“Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou”.
Tais ideias, nascidas da perda de influência do cristianismo sobre o pensamento ocidental – em 1882, Nietsche já havia anunciado a “morte de Deus” – têm profundo impacto na maneira de nos relacionarmos com a velhice e com a morte, com a nossa finitude. Nada de nós nos precede ou sobrevive a nós: somos lançados à existência, sem antes ou depois. Existimos no tempo, e o tempo de cada um é finito. A despeito das crenças individuais e das novas formas de religiosidade surgidas nos últimos 100 anos, nenhuma fé coletiva sustenta nossa vida, muito menos nossa morte. Ao mesmo tempo, a ciência nos presenteia com mais anos de vida; na verdade, com mais anos de velhice, já que os esforços para prolongar a juventude até agora foram malogrados. Diante disso, o que significa envelhecer? Como viver os anos que nos aproximam do confronto com nossa finitude, não apenas em boas condições físicas, mas também emocionais e existenciais?
Aos vinte anos de idade, vinte anos é para nós a medida da eternidade. Aos sessenta, vinte anos atrás é quase ontem. Lembramos as capas das revistas, os escândalos da época, e frequentemente nos questionamos: será que faz tanto tempo? Se é fato que o passado nos condiciona, o mesmo se pode dizer do futuro: somos também nossos projetos, nossos desejos, o vir-a-ser que imaginamos. O que desejar ou projetar quando nos resta tão pouco tempo? A angústia decorrente de tais questões talvez seja mais premente na velhice, mas decerto não é prerrogativa dela. A qualquer momento podemos questionar nossos projetos, nossas escolhas, olhar para o que estamos fazendo da nossa vida. Talvez, nesse olhar, deparemos com o nada, o vazio de sentido. Talvez percebamos que estamos percorrendo a vida não como caminho, mas como estrada, que é a maneira contemporânea e usual de se viver.
O caminho, dizia o poeta, se faz ao caminhar, e não é menos importante que a chegada. Pelo caminho encontramos seres: plantas, animais, outros caminhantes. Mesmo os elementos físicos – pedras, árvores, um rio, a montanha ao longe, o sol que se põe – se revestem de sentido e revelam seu ser. Não é apenas o caminho que se faz ao caminhar: é também o sentido da caminhada. Não importa que o percurso esteja chegando ao fim: cada metro percorrido tem valor por si.
A estrada não se faz, está pronta, e o que importa é a chegada, o objetivo. Pela estrada encontramos coisas, entes: carros, caminhões, placas, pontes. Mesmo as pessoas se coisificam, escondem seu ser: são apenas motoristas, passageiros, frentistas. A estrada é não-lugar, mero percurso que devemos atravessar o mais rapidamente possível, de preferência com os vidros fechados e a música camuflando os ruídos de fora. A estrada, como foi dito, é a forma como usualmente atravessamos a vida, atentos às coisas e alheios aos seres. Perceber isso, em determinado momento da vida, traz angústia, não necessariamente como sofrimento paralisante: talvez como abertura para novas possibilidades de se viver. Trocar a estrada pelo caminho é uma dessas possibilidades, talvez a que melhor nos ajude a encarar com serenidade a finitude, e assim percorrer o trajeto final. Carpe diem, dizia Horácio, com sábia concisão. Goza o teu dia, e o teu caminho.