RedePsi - Psicologia

Artigos

Síndrome de Tourette: Aspectos Psicossociais relacionados ao sofrimento persistente nas famílias que convivem com a doença

 

INTRODUÇÃO

A Síndrome de Gilles de La Tourette é um Transtorno Neuropsiquiátrico, que contém características psicomotoras múltiplas de tiques verbais e motores. Essas características que são bastante evidentes acarretam grandes prejuízos biopsicossociais em toda a família.

Devido a Síndrome, ainda hoje, não ser tão difundida existe a dificuldade de diagnóstico o que leva a família e a criança ao sofrimento persistente na procura constante por médicos e pelo tratamento. Esse diagnóstico pode muitas vezes ser confundido com outras síndromes, devido a falta de conhecimento dos profissionais, com diagnóstico errôneos como, por exemplo, a Coréia de Sydenham, o que prolonga mais ainda o início do tratamento.

Anteriormente ao diagnóstico, as consequências dos sintomas da Síndrome de Tourette (ST) já são vividas pela família. Inicialmente o diagnóstico causa um impacto na família, juntamente com o sentimento de ambivalência de alívio e desespero. O alívio surge por saber que a doença não causa morte e o desespero por saber que trata-se de uma síndrome  incurável, e a partir desse momento terão que conviver com uma nova “companheira” na família: A Síndrome De Tourette.

A partir da disseminação dos sintomas da Síndrome de Tourette, a família precisará se adaptar à presença constante dos tiques, e precisará também, socializar a criança nos mais diversos âmbitos: escolar, familiar e comunitário, buscando diminuir o impacto do estigma que a síndrome acarreta.

Este trabalho busca explanar o papel da família como grupo social primário, bem como as consequências acarretadas neste grupo pela presença de um integrante que possui a Síndrome de Tourette. Esclareceremos também algumas atribuições desta Síndrome, como sintomas, diagnóstico e tratamento.  

 

 A HISTÓRIA E ETIOLOGIA DA SÍNDROME DE TOURETTE

A Síndrome de Gilles de La Tourette foi identificada inicialmente em 1825, pelo médico francês Jean Marie Itard. Este detectou tiques motores e verbais em uma francesa, Marquesa de Dampièrre, desde seus sete anos, ela vivia isolada da sociedade por ter comportamento anormal e falar obscenidades.

  Já em 1873, Trousseau, relatou a “maladie de tics” com sintomas de palilalia (repetição ou imitação de ecos), tiques motores e verbais. Em 1881, George Beard observou casos de ecolalia (repetição de palavras) e inquietação exagerada. Foi em 1884, que um interno de Charcot, George Gilles De La Tourette, no Hospital de La Salpêtrière, que registrou oito casos de tiques motores e verbais. Tourette recorreu aos antigos casos relatados por Itard e Berad, onde Tourette chegou a conclusão de que estes casos eram semelhantes aos casos observados por eles, agrupando todos em uma mesma categoria, o qual Charcot denominou Síndrome De Gilles de La Tourette.

            Durante 1885 e 1886, Freud frequentou o Hospital Psiquiátrico de Charcot. Ele, Charcot, fazia distinção entre os tiques neurológicos e os histéricos. Onde, os neurológicos eram permanentes e os histéricos poderiam suprimir.

Nas últimas décadas o estudo da etiologia da ST tem obtido progressos. São investigadas as anormalidades em cromossomas de pacientes e de famílias que apresentam a síndrome, objetivando identificar a genes como também o gene. Estudos evidenciam que tal síndrome seja de causa autossômica dominante, devido a fatos obtidos em estudo com família e pacientes que apresentam os sintomas da doença.  ‘Até o presente momento, não foi possível identificar um marcador genético de forma definitiva para a ST’. (Gade et al., 1998; Díaz-Anzaldúa et al., 2004ª apud Loureiro et al., 2005).     

 Outros fatores também são investigados, como possíveis causas, tais como, as infecções estreptocócicas, as infecções não-estreptocócicas, fatores pré-natais, peri-natais. ‘Anticorpos dirigidos contra a glicoproteína de oligodendrócito da mielina (MOG) também têm sido implicados como possível fator auto-imune na patogênese da ST’ (Huang et al., 2004 apud Loureiro et al., 2005). 

Importantes descobertas têm sido obtidas por influência da genética, da neuroimagem e da neurofisiologia. Sabe-se que a síndrome é uma herança, que pode ser transmitida de pai para filho e que o sexo masculino apresenta maior probabilidade.

SINTOMAS DA TOURETTE

  Os sintomas da Síndrome de Tourette são bastante peculiares, mas que precisam de alguns critérios para ser diagnosticado como Tourette. Esses critérios serão descritos mais a frente neste trabalho.

            Os principais sintomas da Tourette são os tiques motores e/ou verbais, que ainda podem ser simples e/ou complexos. “A forma de manifestação dos sintomas irá variar de indivíduo para indivíduo, e deverá surgir antes dos 18 anos” (Loureiro et al., 2005). Segundo a ASTOC (Associação Brasileira de Síndrome de Tourette, Tiques e Transtornos Obsessivo Compulsivo) define tiques como “a emissão de um som ou a realização de um movimento rápido, repentino, recorrente, sem ritmo e estereotipado. Tiques são vivenciados como irresistíveis.” Os tiques são intensificados quando há a influência do estresse e diminuem quando a pessoa esta dormindo.

            Os tiques motores simples são aqueles realizados por um agrupamento de músculos, como piscar de olhos, mexer o nariz, mexer a boca. Esses tiques são rápidos, sem propósito. Já os tiques motores complexos são realizados por grupos musculares sem a mesma funcionalidade, estes parecem propositais por serem mais lentos. “Os tiques motores complexos incluem imitação de gestos realizados por outrem, sejam eles comuns (ecocinese) ou obscenos (ecopraxia) e a realização de gestos obscenos (copropraxia)” (Braunwald et al., 2002 apud Loureiro et al., 2005)

            Os primeiros sintomas, geralmente, são os tiques motores simples (balançar a cabeça, piscar os olhos), que por muitas vezes podem passar despercebidos. Porém em momentos de cansaço e estresse eles são intensificados.

            Os tiques verbais, geralmente, surgem após os tiques motores. Estes podem ser despercebidos por quem faz. Os tiques fônicos simples incluem, comumente, coçar a garganta e fungar (Loureiro et al.,2005) Os tiques fônicos complexos envolvem a emissão da fala, de palavras obscenas, de frases que não possuam ligação com o momento. Fazem parte desta a ecolalia (repetição de palavras ou frases emitidas por outra pessoa), palilalia (repetição de palavras) e cropolalia (palavras obscenas).

  Os tiques verbais podem variar. Em determinados períodos estes podem ser apenas tiques verbais simples, em outro o complexo. E podem variar entre a ecolalia, palilalia e cropolalia.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS

O diagnóstico de Síndrome de Tourette tem passado por numerosas reformulações e aperfeiçoamentos, desde os primeiros casos até os dias de hoje. No DSM-IV8, a Síndrome de Tourette é incluída nos transtornos de tiques. Estes, por sua vez, são incluídos no capítulo destinado aos transtornos diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência. No CID-10 o estudo dos tiques está no capítulo (F95.2) que se refere aos transtornos emocionais e de comportamentos. Os critérios requerem do profissional uma investigação que possibilite eliminar outras patologias. São realizados vários exames complementares como eletroencefalogramas, ressonância nuclear magnética, tomografias, análises sanguíneas, para exclusão de demais distúrbios, que possam possuir semelhança com os sintomas da ST. Até o presente momento não existe um teste laboratorial específico que evidencie a síndrome, percebe-se com isso uma dificuldade na detecção do diagnóstico.

      

 Após a eliminação de outras patologias, o médico investiga o quadro clínico do paciente junto com a família criteriosamente a fim de preencher os requisitos que constatam a ST. Tais requisitos seguem os seguintes critérios: sintomas múltiplos de tiques motores e vocais com início geralmente na primeira infância, ou antes, dos 18 anos de idade; sem origem fisiológica; com ocorrências diárias; estendendo-se por tempo superior a 12 meses; causando um comprometimento social, ocupacional e/ou emocional, definindo assim o diagnóstico. O paciente deve apresentar tiques motores e vocais que não precisam necessariamente ocorrer simultaneamente, mas que ambos sejam vivenciados no mesmo ano, também não poderá passar mais de três meses consecutivos sem a manifestação dos sintomas.

Os tiques são classificados como motores e vocais, que são caracterizados como simples e complexos. Os critérios diagnósticos não serão aprofundados por fugirem do objetivo desse trabalho.

 

 

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Os critérios diagnósticos do DSM-IV e da CID-10 apresentam semelhanças.   É necessário um conhecimento da Síndrome de Tourette por parte dos profissionais a fim de evitar erros.  Algumas doenças apresentam semelhanças no que diz respeito aos sintomas como tiques. O que aumenta ainda mais o sofrimento e isolamento social do paciente.

Casos de epilepsia podem ser confundidos pela semelhança dos sintomas  com  a ST, os sintomas  de epilepsia diferem da ST no que se referem a consciência pois no caso da ST o nível consciente é mantido o que não acontece nos casos da  epilepsia.

O diagnóstico diferencial deve ser feito com atenção em pacientes idosos em pacientes que apresentem discinesias, nas doenças de Wilson, na Síndrome de Meig, no uso crônico de substâncias psicoativas e nos movimentos estereotipados da esquizofrenia, essa distinção deve ser feita por meio de exames clínicos ou complementares de acordo com a necessidade médica. Movimentos semelhantes aos tiques são observados também nas síndromes, Pernas Inquietas e Pernas Doloridas, onde apresentam constantes movimentos repetitivos sem objetivo aparente. Estudos demonstram que o TOC apresenta rituais e compulsões que tornam difícil a distinção entre a Síndrome de Tourette.

É necessário diferenciar o TOC da ST através de conhecimentos das duas síndromes. No TOC, os sintomas causam acentuada ansiedade e sofrimento no paciente, apresentam rituais de compulsão e obsessão como checagem, lavagem, ideias, pensamentos inadequados, colecionismo, que são realizados para diminuir a ansiedade. No TOC não é verificada a presença de tiques. O diagnóstico diferencial entre ambos é muitas vezes difícil, segundo pesquisas, existe uma diferença nas experiências subjetivas que precedem ou acompanham os comportamentos repetitivos. "Os episódios de TOC sem comorbidades de tiques apresentam mais frequentemente, pensamentos, ideias, imagens, causando sintomas somáticos de ansiedade, precedendo seus comportamentos. Os casos de TOC associados a Tourette ou da síndrome isolada, no entanto, relatam sensações desconfortáveis, físicas e/ou mentais precedendo os comportamentos repetitivos. diferenciam os pesquisadores.

 Existem doenças raras que podem ser confundidas com ST, são as doenças de Wilson, a Coréia de Huntington, a Síndrome de Lesch-Nyhan, Coréia de Sydenhan, entre outras que apresentam movimentos anormais semelhantes a tiques. Oliver Sacks, eminente neurologista descreveu o quadro de pacientes que “despertaram” após episódio de encefalite letárgica, evidenciando que o tourettismo também tem sido descrito em quadros pós-encefalíticos, após a administração de L-dopa48, em acidentes vasculares cerebrais49, no traumatismo crânioencefálico50, em intoxicações com cocaína e anfetaminas1, monóxido de carbono51 e após inalação de gasolina. Tais semelhanças entre os sintomas mais uma vez ressaltam o cuidado na investigação clínica e complementação com exames para um diagnóstico assertivo.

 

TRATAMENTO

Até o presente momento a ciência não encontrou cura para a síndrome de Tourette. O tratamento é feito a partir da associação das terapias psicossocial e farmacológica, porém é necessária uma avaliação específica dos tiques quanto a sua localização, frequência, intensidade, complexidade e interferência, presente como sintomas na vida do paciente. Como também se torna parte essencial investigar a vida psicossocial que se encontram presentes as relações diárias com professores, amigos, irmãos, pais entre outros.

 A medicação vai auxiliar no alívio dos sintomas, dados estatísticos revelam que 60% dos pacientes produzem boa resposta no que diz respeito à redução dos sintomas com esse tipo de tratamento, faz-se necessário esclarecer que os remédios são tomados em doses mínimas com cuidado para que não haja uso desnecessário e que os tiques não são eliminados, o que ocorre é uma diminuição dos sintomas. São utilizados anti-hipertensivos usados para tratar pressão alta, apresentam resposta de 60% na melhora dos tiques. Pacientes refratários, ou seja, aqueles que não respondem bem a medicação, é indicado o uso de antipsicótico de segunda geração com eficácia de 80% ou 90%. Os medicamentos de primeira geração são indicados em último caso, pois apesar de sua eficácia ser de mais de 90% provocam efeitos colaterais.

 Concomitantemente ao tratamento farmacológico indica-se a psicoterapia para os pacientes, professores e pais. São utilizadas as terapias comportamentais e a psicanálise. A terapia realizada aos pais refere-se á nível de esclarecimento, de aceitação, de proporcionar um olhar com perspectiva para aquele que até o momento representava um filho “perfeito”, os pais são as pessoas mais próximas do paciente, com a descoberta do diagnóstico eles vivenciam questionamentos como –“porque com meu filho”-” qual foi minha culpa” é preciso uma acompanhamento  psicoterápico para auxiliar  a família  enfrentar , entender a doença  e o estigma que a acompanha. A psicoterapia vai ajudar os pais, professores a melhorar maneira de lidar com o paciente evitando atitudes de estigmatização e superprotetoras, que podem causar na criança falta de limites e consequentemente um prejuízo na sua  educação.

 A psicoterapia comportamental tem se mostrado muito adequada no tratamento da ST, utiliza-se a técnica de reversão de hábito onde ensina o paciente a perceber quando os tiques vão ocorrer para então tentar suprimi-los, modificá-los ou substituí-los por outro, menos incômodo.

A psicoterapia psicanalítica atuará nesse contexto ouvindo do paciente e ou de sua família as queixas, angústias, desejos, a fim de proporcionar através da fala a associação de ideias e pensamentos.

Pesquisas atuais destacam o uso do tratamento a base de substâncias como nicotina, a tetrabenzina e a benzodiazepina e tratamentos não farmacológicos, entre eles injeção botulínica, eletroconvulsoterapia, acumputura, biofeedback, hipnose e neurocirurgias. Contudo é necessário prudência, pois encontra-se em estudo  a eficácia e os possíveis  efeitos colaterais.

Existem associações sociais que desenvolvem tratamento através de grupo de ajuda onde se organizam em reuniões com familiares e pacientes buscando aproximar as pessoas e trocar experiências vividas diminuindo assim as dificuldades enfrentadas com a doença.

 O prognóstico da ST refere-se a uma grande melhora no início da idade adulta por volta dos 20 anos onde corre uma redução dos sintomas. Grandes partes dos pacientes apresentam uma boa adaptação devido às abordagens psicossocial e educacional visto que é imprescindível o tratamento do paciente juntamente com a sua família.

Epidemiologia

Atualmente estudos comprovam a prevalência e o aumento de incidência da síndrome de La Tourette, desmistificando a condição de doença rara existente até pouco tempo. Pesquisas internacionais defendem que a síndrome atinge pessoas independentes de sua classe social, etnia ou pais de origem. Geralmente acomete mais pessoas do sexo masculino como também as crianças e adolescentes. Estudos mostram que a prevalência de ST é dez vezes maior em crianças e adolescentes (Burd et al., 1986 apud Loureiro, 2005)

ESTRUTURAÇÃO DA FAMÍLIA: A FAMÍLIA COMO PRIMEIRO GRUPO SOCIAL

A família é caracterizada pela construção de laços, sejam estes afetivos ou biológicos. Esta caracterização é ratificada com a reciprocidade desses laços. A família possui um grande valor cultural, afetivo, biológico e social. Esta está presente em toda a história da humanidade, cultura e sociedade, porém com significações e ressignificações que se modificam ao passar do tempo. Atualmente, se torna quase inevitável pensarmos na desconstrução ou desvalorização da família. No entanto, esta a cada nova reestruturação, ao perder alguns atributos ganha outros novos, sem perder assim seu valor.

A influência da família na vida de todos nós é indiscutível. É ela que irá nos moldar segundo seus costumes, crenças e comportamentos. O seio familiar é o primeiro grupo no qual somos inseridos. É a partir dele que iremos aprender a nos comportar na sociedade, a dividir, a conviver com as diferenças, a ser aceito (ou não), a viver em grupo. Será a partir deste primeiro grupo social que seremos constituídos como seres sociais no qual aprenderemos a viver na sociedade, podendo ser essa forma aceitável ou não.

A família é responsável por fazer uma ponte entre o indivíduo e a sociedade, é ela que irá inseri-lo na sociedade de uma forma geral.  A família é um grupo social, porém dentro da sociedade ela possui seus próprios valores, regras, conceitos e estilo de vida que irão influenciar diretamente na sociedade, assim como a sociedade na família. A reciprocidade de sentimentos, as emoções direcionadas a cada membro familiar, e as funções definidas na família ajudam a caracterizá-la cada vez mais.

“Para compreender esta perspectiva é necessário sair das abordagens que tentam definir a família como ‘coisa’; tal definição está equivocada. É necessário adotar uma visão propriamente relacional da família, a qual poder ser definida: como lugar-espaço (casa), célula da sociedade (por analogia orgânica com o organismo biológico), modelo (padrão simbólico), relação social (isto é, com ação recíproca que implica intersubjetividade e conexões estruturais entre sujeitos.” (DONATI, 2008,p. 49)

A construção da família inicia-se a partir da relação, da união de duas pessoas. A partir dessa união os papéis assumidos e as responsabilidades adquiridas diante da sociedade configurará a família. Considerando os tempos atuais, a união de pessoas do mesmo sexo também se configura como família, devendo haver o sentimento de reciprocidade e os papéis e responsabilidades assumidas. A inserção do indivíduo na família é fundamental para a sobrevivência e evolução. Esta providencia o alimento, a proteção, as necessidades básicas para o desenvolvimento do indivíduo, e além dessas necessidades mais básicas as necessidades emocionais, psicológicas e sociais também devem ser supridas.

 A construção familiar inicia-se a partir das exigências sociais, esta é uma instituição social criada pelos homens e moldada segundo ele próprio. A necessidade da reprodução é evidente, de descendentes (sejam biológicos ou não), da existência de um “legado”. Nesse aspecto, não podemos deixar de comentar a cobrança da sociedade para com a família recém-formada (ou não) da reprodução, do nascimento de seus filhos. A partir da existência dos filhos a evidência da sociedade muda de enfoque (passa da reprodução para a criação) passando a visualizar e ‘cobrar’ uma boa educação para os novos cidadãos. (REIS, 1991, p. 102)

Sendo assim, a família é a grande responsável pela formação dos indivíduos (REIS, 1991) Podendo ela ser a “mocinha” ou a “vilã” para o individuo e sociedade, podendo ela construir ou desconstruir. Porém, não podemos deixar de ressaltar as marcas positivas e/ou negativas que a família deixa em seus integrantes.

“No entanto, o que não pode ser negado é a importância tanto ao nível das relações sociais, nas quais ela se inscreve, quanto ao nível da vida emocional de seus membros.” (REIS,1991)

O PAPEL DA FAMÍLIA

As atribuições sociais da família durante muito tempo foram pré-definidas pela sociedade, o pai como provedor, a mãe como cuidadora, e os filhos como estudantes, ajudadores e aprendizes dos pais.  Ao decorrer do tempo, ocorreram mudanças nas atribuições e definições de papéis da família. A mãe já não é apenas a cuidadora, esta precisou sair de casa para trabalhar para ajudar a quem era o único provedor da casa, o pai. Esse êxodo da mãe de casa, ocorreu devido a Revolução Industrial, ao crescimento do Sistema Capitalista e emancipação feminina. Desde então, as famílias foram sendo configuradas, foram e continuam sendo mudadas conforme o momento social. No entanto, as responsabilidades e os papéis da família podem ser alterados de integrante para integrante, porém as atribuições das famílias quase permanecem intactas.

 “Nessa nova estruturação, homens e mulheres estão atuando em condições mais ou menos semelhantes no mercado de trabalho formalmente remunerado, começando a dividir entre si o trabalho doméstico e a educação dos filhos, ainda que a maior parte destas tarefas se mantenha a cargo da mulher, que vem confrontando os desafios do mundo do trabalho procurando conciliar a vida profissional e familiar.” (Scavone, 2001 apud Prata, Santos, 2007).

 

O papel da família que possui algum membro com alguma necessidade especial irá ser moldada de acordo com as circunstâncias. Os Pais ao receberem a notícia que seu filho tem alguma deficiência¹, terão que assumir novas responsabilidades, e tais responsabilidades não estavam premeditadas quando decidiram se tornar pais. O pai terá o papel de comunicar o restante da família que o seu filho tem uma necessidade especial, já que a mãe estará totalmente voltada para a criança. Esta família deverá se adaptar a nova situação. A redistribuição de tarefas, a atenção voltada para outros membros da família deverá ser revista.

“A presença de uma pessoa deficiente[1] na casa continuará a causar problemas que exigirão, de cada membro da família, redefinições de papéis e mudanças, mesmo após a absorção do impacto inicial. Haverá sempre necessidades excepcionais – de tempo, reestrutura familiar, mudanças de atitudes e valores e novos estilos de vida.”
(BUSIÁGLIA, 1993.p.87)

A INTEGRAÇÃO DA PESSOA COM SÍNDROME DE TOURETTE NA FAMÍLIA

A partir da manifestação dos sintomas da Síndrome de Tourette, um desconforto eminente começa a surgir em toda a família. Se a criança já estiver vivendo no ambiente escolar, os pais começam a ser convidados a ir à escola, pois o comportamento da criança passa a ser um transtorno durante as aulas e alvo de chacotas por parte dos outros alunos. A convivência diária com a nova companheira até então desconhecida, passa a ser insuportável, principalmente por desconhecer o real motivo.

Inicialmente, surge o choque diante da situação inesperada, os pais e a família criam uma grande expectativa sobre cada membro da família e não imaginam que nenhuma deficiência ou síndrome acometa nenhum deles. Em seguida o luto, a dor da perda do filho “perfeito” é gerada, com sentimentos de incredulidade e de não aceitação diante da nova situação. A raiva, a frustração, a insegurança e medo também surgem. E este não é processo que possui início e fim, é um ciclo que irá surgir em várias situações.

A jornada de integração do indivíduo com a Síndrome de Tourette na família e na sociedade é bastante árdua. Esse processo deve ser iniciado a partir da aceitação dos pais que a Síndrome existe, e que seu filho e toda a família deverão conviver com ela. O luto pela perda do filho “perfeito” deverá ser elaborado.

A família tanto poderá facilitar esse processo de integração como também poderá dificultá-lo. Inicialmente, é natural, que haja desarmonias e brigas familiares, pois todos os integrantes da família estão diante de uma situação nova e deverão aos poucos se adaptar a ela.

“A influência da família no processo de integração social do deficiente é uma questão que deve ser analisada levando-se em consideração dois ângulos: a facilitação ou impedimento que a família traz para a integração da pessoa portadora de deficiência na comunidade, e a integração da pessoa com deficiência na sua própria família.” (GLANT, 1996)

  A palavra integração tem sua origem no latim “integratĭo”, segundo o dicionário Michaelis, a palavra Integração significa: “1.Ato ou processo de integrar; incorporação, complemento. 2 Condição de constituir um todo pela adição ou combinação de partes ou elementos. 3 Operação que consiste em achar a integral de uma equação diferencial”. Diante do contexto da integração do indivíduo que possui a Síndrome de Tourette na família, esta deverá incorporar o integrante que possui a Síndrome de Tourette na “normalidade” da família, nas tarefas, no cotidiano, na sociedade. Quanto mais cedo ocorrer essa integração na família, provavelmente, mais cedo ocorrerá na comunidade. O fato de a família ser o primeiro grupo social do individuo, será esta que moldará seus conceitos, valores e sua autoimagem.

  A família deverá estar ciente de que a criança que possui a Síndrome, antes mesmo desta nova companheira surgir, é uma criança que apresentará dificuldades como outra qualquer. Apresentará suas manhas, manias, desejos, pirraças, desobediências, acertos e alegrias. A família deverá saber diferenciar os diversos problemas oriundos de outras situações dos problemas relacionados ao integrante com a Síndrome. E não deverá atribuir todo e qualquer problema que surja na família a esse integrante. Quando esse discernimento não está presente, a família passa a viver centrada naquele integrante passando a culpá-lo pelas dificuldades e problemas familiares.  O integrante da família passa a ser o “bode expiatório” desta, levando culpa pelos problemas, brigas conjugais, problemas alcoólicos, entre outros.

 

“É preciso ficar claro, que viver em função de um filho ou irmão deficiente, não significa aceitação, nem solidariedade familiar. Na verdade este tipo tão comum de atitude representa uma falsa integração – já que se confere um status diferenciado, excepcional, a este membro.” (GLANT,1996)

         ASPECTOS PSICOSSOCIAIS

Durante todo o transcurso da existência humana, os homens se organizam socialmente através das relações sociais onde se formam laços, constituem-se famílias, grupos e comunidades. Em 1976 foi publicado um livro por Gerald Caplan e Marie Killiea que abordava os vários sistemas que contribuíam de maneira significativa para as relações familiares e formação de vínculo. ‘Para Caplan, o sistema de suporte implica em padrões duradouros de vínculos que contribuem de maneira significativa para manutenção da integridade física e psicológica do indivíduo. (MELO e BURD, 2004)

 A criança ao nascer demonstra fragilidade e necessita de cuidados. Inicialmente, o cuidado encontra-se geralmente na família, daí por diante, parentes, vizinhos, companheiros de escola, trabalho, clubes, associações, igrejas, grupo de auto-ajuda, serviço de saúde, juntos constituem as relações de suportes sociais. O efeito principal do suporte se faz no receptor á medida em que ele percebe na família uma relação satisfatória. Tal percepção acontece no fato do indivíduo se sentir amado, reconhecido, valorizado, acolhido, cuidado e protegido com suas diferenças e limitações, facilitando assim seu bem estar psicológico com aumento de auto-estima e redução de estresse.

 A Síndrome de Tourette trata-se de uma doença neurológica, muitas vezes com grande comprometimento psicossocial, causando intenso sofrimento aos portadores e seus familiares. É fundamental a constante comunicação entre a escola, a família e os outros profissionais que atendem a criança. Uma criança com tique motor e hiperatividade leve pode não ter problema acadêmico e social em uma escola mais liberal, mas pode ter muitos problemas em uma escola tradicional que valoriza a disciplina acima de tudo. Os tiques geram estigmas, e a sociedade necessita entender que se trata de um problema orgânico e ninguém é culpado por isso. Outro dado importante é compreender que em muitos casos os sintomas são transitórios. Para os portadores em fase escolar, os tiques, com frequência, geram brincadeiras e apelidos dentro do grupo. A criança se esforça para não dar vazão aos tiques, mas não consegue permanecer longos períodos livre dos tiques e, quando se concentra em alguma atividade, eles surgem sem que a criança note. Portanto, dependendo da intensidade dos tiques, é comum o surgimento de problemas de sociabilidade.

       Os familiares devem estar atentos para que a criança não sofra maus tratos no ambiente escolar. O apoio e compreensão da sociedade e da família facilitam a convivência e ajudam a enfrentar as dificuldades. Quando a família constata a presença dos tiques e verifica as características distintas do padrão cultural reconhecido como normal a estrutura e o funcionamento dessa família inevitavelmente é abalada. Há um turbilhão de sentimentos provocados pela Síndrome que nem sempre é superado. Conforme tem sido apontado por diversos autores (AMARAL, 1995, MARQUES, 1995; GLAT, 1996; SANTOS & GLAT, 1999; GLAT & DUQUE, 2003, entre outros), nesse percurso a família passa por algumas fases cíclicas, previsíveis.

Os pais vivenciam um luto comparado á perda de alguém amado. É uma decepção causada pela perda do filho idealizado, que vem juntamente com angústia, emoções dolorosas, sentimentos negativos, como raiva, revolta, desapontamento, incerteza, depressão, que afetam o relacionamento entre os membros da família. As expectativas e planos em função desse filho passam a fazer parte de uma nova realidade, desconsertante e dolorosa. Os pais se perguntam por que foram escolhidos para serem pais de filhos com Tourette. Esse luto provocado pelo choque e revolta inicial é seguido de um segundo momento que é a negação do diagnóstico, onde a família numa tentativa de enganar-se acaba constatando que nada mudará o diagnóstico, fato que resulta em depressão em vários casos. Com o tempo os pais acabam se aliando, conhecendo e aceitando a doença.

Os pais afirmam que para conviverem com a Tourette existem momentos positivos e negativos, de acertos e erros, mas de muita luta e que primeiramente é necessário aceitar as limitações, pois cada ser humano tem seu modo de ser, e nem sempre os filhos são perfeitos como os pais desejam.  A Síndrome de Tourette influência em vários aspectos que envolvem a relação da família cotidiana. Porém, isto não significa cruzar os braços. É necessário buscar caminhos para ajudar os filhos a viverem melhor com essa nova companheira. Os pais também desenvolvem interesses em buscar novidades científicas, procuram trocar experiências com outros pais de filhos com Tourette, objetivando uma melhor qualidade de vida para a família e paciente. É comum os pais de adolescente afirmarem que algumas vezes sentiram-se fracassados pela dificuldade em lidar com os momentos de ira provocado pela mudança de comportamento da fase, visto que se dá de forma exacerbada. Os pais dizem que a cada fase da vida de seus filhos existem novos comportamentos, como novas expectativas quanto às reações das novas medicações, com o início do ano escolar, com os novos amigos e professores que irão conviver com os tiques de seus filhos, as novas manias, cuidado com o famoso Bullying. São muitos novos momentos a cada dia, é natural sentir medo, mas enfrentar é preciso, reagir é necessário.

O papel dos pais ou cuidadores constitui um ponto fundamental para o sucesso do tratamento. Primeiramente, é importante promover nestes um maior conhecimento acerca da doença e sobre as características como sintomas e tratamento, educando e desmistificando a intencionalidade voluntária dos sintomas (tiques) e, também, sobre a melhor forma de lidar com eles. Esse esclarecimento se dá através de textos informativos, visualização de documentários, estabelecimento de contato com associações ou pessoas que vivenciem a mesma problemática, apoio e auxílio de técnicos com conhecimentos sobre a doença, sempre buscando auxiliar o paciente a conviver melhor com a doença. O simples interesse dos pais em aprender mais sobre os tiques já apresenta um efeito benéfico para os pacientes. Pais afirmam que a internet através dos sites de relacionamentos como Facebook, Orkut, blogs, site de associações, tornam um apoio imprescindível, pois ter a oportunidade de falar sobre a síndrome com os amigos e familiares ajuda a lidar com novas situações, pois se percebe as semelhanças, diminuindo temores, dividindo e compartilhando as angústias, as vitórias, as palavras de afeto de apoio, que acalmam a ânsia.

De acordo com HOUNIE et al. (2006 apud Ramalho 2008): ‘A união da família contra a adversidade e o auxílio mútuo nos momentos mais difíceis costumam ser determinantes de um melhor prognóstico.’ Por fim, é importante fornecer estratégias terapêuticas aos pais para estes lidarem de forma funcional com a Síndrome de Tourette e com os tiques vocais e motores pois muitas vezes causam transtornos e não se pode punir uma pessoa doente pelos seus sintomas.

  O relacionamento dos pais no casamento é outro ponto delicado, o impacto sofrido causado pelo transtorno necessita muito equilíbrio e amor. Os desafios envolvem o tempo dedicado ao filho doente, como também a cobrança de atenção em casos dos demais filhos, o lado financeiro, os gastos com medicamentos, psicólogos, psiquiatras, neurologistas oneram o orçamento. Os casais precisam de uma reorganização, compartilhar tarefas e aprender a lidar com o desconforto da presença dos sintomas, que juntos formam um somatório que causam sofrimento e que o casal precisa superar. Com o passar do tempo a maioria das famílias se adaptam a situação e buscam reestruturação interna passando a se organizar e aprender a conviver com a Síndrome de Tourette.

CONCLUSÃO

            Sem dúvida a Síndrome de Tourette traz grandes mudanças para a esfera familiar e social do indivíduo. Como essas mudanças e consequências serão manejadas e articuladas dependerá de uma série de fatores psicológicos e sociais, onde caberá a família e ao portador da síndrome aprender a conviver com a nova companheira da família.

            Esse aprendizado será um grande desafio, onde todos terão que lidar com o novo e com o incômodo. Esse caminho provavelmente será longo e árduo. A busca constante do conhecimento da Síndrome, dos tratamentos que amenizem os sintomas, do apoio e suporte oferecido por grupos de apoio, da aceitação dessa nova companheira passará a ser vivenciada, principalmente pelos pais. A cada nova fase de desenvolvimento do indivíduo o medo, as ansiedades e as dificuldades surgirão acerca de como o portador passará por ela. É como um ciclo que se repete, e um cuidado interdisciplinar torna-se parte indispensável nesse processo.

            REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.    American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders DSM-IV. Washington (DC); 1994.

2.    Associação Brasileira De Síndrome de Tourette, Tiques e Transtorno Obssessivo Compulsivo. Disponível em < http://www.astoc.org.br/source/php/index.php>

3.    BUSIÁGLIA, Léo. O Deficiente e seus Pais. Rio De Janeiro: 4ª ed. Editora: Record,1993.

4.    DONATI, Pierpaolo. Família no Século XXI: Abordagem relacional/Pierpaolo DONATI; [tradução João Carlos Petrini]. – São Paulo: Paulinas,2008 – (Coleção Família na sociedade contemporânea)

5.    GLAT, Rosana. O papel da família na interação do portador de deficiência. Rev. bras. educ. espec.,  Marília,  v. 02,  n. 04,   1996 .Disponível em<http://educa.fcc.org.br/scielo.php?sc … p;lng=pt&nrm=iso>. acessos em  14  jun.  2012.

6.    GLAT, ROSANA; PLETSCH, Márcia. Orientação familiar como estratégia facilitadora do desenvolvimento e inclusão de pessoas com necessidades especiais. Revista Centro de Educação. São Paulo, n 24. 2004

7.    LANE, Silva; Codo Wanderley (org.) Psicologia Social. O homem em movimento. REIS, José Roberto Tonozi. Família, emoção e ideologia . Editora Brasiliense. 9ª edição, 1991.

8.    LOUREIRO, Natália; GUIMARÃES, Cecília; SANTOS, Dilvani; FABRI, Roberto; RODRIGUES, Carlos; CASTRO, Helena. Tourette: Por dentro da Síndrome. Revista de Psiquiatria Clínica, n 4, p. 218-230. 2005

9.    MELO, Júlio de; BURD, Miriam (org.). Doença e Família. São Paulo: 1ª ed. Casa Do Psicólogo, 2004

10. MICHAELIS, Dicionário. Editora Melhoramentos. 2009.

11. Organização Mundial da Saúde. CID-10 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10a rev. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1997. vol.2

12. PRATA, Elisângela; SANTOS, Manoel. Família e Adolescência: A influência do contexto familiar no desenvolvimento Psicológico de Seus Membros. Maringá Psicologia em estudo, n 2, p. 247-256, maio/agosto 2007.

13. RAMALHO, Joaquim; MATEUS, Filipa; SOUTO, Marisa  and  MONTEIRO, Marlene. Intervenção educativa na perturbação Gilles De La Tourette. Rev. bras.educ.espec.[online].2008,vol.14,n.3,pp.337346.ISSN14136538.  http://dx.doi.org/10.1590/S1413-65382008000300002.l


[1] Deficiência no sentido de que o indivíduo necessita de um cuidado especial. Nesse trabalho, como abordamos a Síndrome de Tourette, doença neurológica cujo indivíduo necessita de cuidados especiais.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter