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Trabalhar sem perceber: hábito pessoal ou prática de mercado

Trabalho a mais nem sempre é recompensado com hora extra – ou com algum sentido ou utilidade real. Fonte: Pixabay.

Uma carreira bem-sucedida de trabalho está no centro da vida de muitas pessoas. Poucas coisas provam ao mundo (e a nós mesmos) nosso valor quanto galgar novas posições, fazer tarefas mais complexas e servir aos outros de maneira útil.

Mas trabalhar cansa, mesmo que a ocupação seja interessante. Economistas e gestores vêm elaborando propostas há décadas para aumentar a produtividade de trabalhadores. Em alguns países, esses índices tiveram crescimento expressivo nas últimas dezenas de anos.

Mas mesmo com a mecanização e a digitalização de muitos processos e com a formação de especialistas com grau universitário crescente, existem obstáculos para o crescimento da produtividade.

Os Estados Unidos, que é um dos líderes globais em inovação, vêm seus ganhos em produtividade cada vez menos expressivos desde que atingiram um pico nos anos 1950. Não há uma solução simples para a questão e as empresas buscam alternativas – que podem gerar bons e maus hábitos.

Tempo escasso para comunicação ilimitada

As tecnologias de comunicação promoveram a terceira revolução industrial nos últimos 30 anos. O mundo se tornou radicalmente diferente do que era graças à possibilidade de usar meios digitais para se comunicar a distância, a qualquer hora e em qualquer lugar.

Responder e enviar e-mails e fazer ligações telefônicas ajudaram a transpor muitas barreiras, poupar muito tempo e ganhar em produtividade por anos. Agora, as tecnologias que permitem o trabalho remoto e a comunicação instantânea e muito barata complementam esse cenário.

Porém, a rotina de mensagens desregrada tem se tornado um efeito colateral dessa cultura de trabalho em que começam a se borrar os limites entre tempo livre e expediente, e entre ambientes doméstico e profissional.

Com a pandemia de 2020, muitas pessoas migraram de maneira improvisada para o trabalho remoto. Adaptações precisam ser feitas.

A medida básica de segurança digital, por exemplo, é baixar uma VPN, que permite o anonimato e a segurança tanto da navegação pessoal quanto para a profissional.

É uma maneira de navegar tanto para fins pessoais quanto profissionais pelo mesmo computador sem abrir brechas perigosas. Sem informar seus dados a cada página navegada, a navegação com VPN é mais privativa.

Essa separação segura do ambiente doméstico do profissional no trabalho remoto não é regra universal. Para além da segurança digital, muita gente absorve ainda mais trabalho do que seria usual num escritório. Além de ser pouco saudável, trabalhar mais horas não é necessariamente mais produtivo.

De fato, a ausência de tempo livre pode deteriorar a capacidade de gerar resultados. Apesar disso, o ritmo do mercado pode não ter tempo para interromper ou recomeçar, colocando muita gente para responder e-mail depois das onze da noite ou ficar ligado no WhatsApp no churrasco de domingo.

Muitas vezes, mesmo quem tem a opção de deixar o celular de lado nas horas vagas acaba se condicionando à atenção constante, tão danosa à saúde por fomentar a ansiedade – e isso não é por acaso.

Gamificação: o Santo Graal corporativo

Se você assistiu ao filme “O Dilema das Redes” (2020) já pode ter ideia do potencial viciante das redes sociais, incluindo aqueles com mensageiros instantâneos.

O documentário coloca engenheiros das principais empresas do Vale do Silício sob o holofote para esclarecer que as redes sociais foram construídas para fazer uma geração inteira recorrer a “chupetas digitais” para se acalmar em momentos de desconforto.

Também no Vale do Silício, essa tendência neopavloviana de condicionar gradualmente pessoas a estímulos para desempenharem uma tarefa ganhou uma expressão corporativa: a “gamificação”.

“Gamificar” é tornar algum procedimento que não é um jogo num jogo (game, em inglês) com a aplicação de princípios de desenho de jogos. A ideia da gamificação no ambiente de trabalho é que os empregados de uma empresa cumpram tarefas sem o tédio ou o desconforto decorrentes da rotina.

Sistemas de pontuação, divisão de tarefas em níveis, aplicação de recompensas, competitividade e divisão em equipes são alguns traços usados para “gamificar” tarefas.

Além da motivação “divertida” da tarefa, essa “transformação” deveria levar a maior produtividade. A Amazon, por exemplo, implementa há anos esse procedimento lúdico em tarefas mais maçantes, como aquelas de seus armazéns.

As principais desvantagens da “gamificação” são os altos custos para fazer o processo de maneira bem-feita e a necessidade de renovar o “jogo” de tempos em tempos para manter a eficácia. Além disso, o tema que tratamos neste artigo: a propensão a fazer as pessoas trabalharem mais sem recompensas reais fora do “jogo”.

A “cultura 996”

Além da cultura corporativa, o fomento ao trabalho excessivo também pode decorrer de raízes morais e psicológicas.

A cultura chinesa do 996 expressa essa dimensão moral e de construção cultural: o termo “996” deriva do hábito de trabalhar das 9 horas da manhã às 9 horas da noite, 6 dias por semana.

A expressão radical do “996” foi a morte de um trabalhador da empresa de comércio eletrônico chinesa Pinduoduo aos 23 anos, atribuída ao ritmo exaustivo de trabalho – embora o caso ainda seja investigado.

Além da competitividade, pressões de família ou crenças pessoais no valor do trabalho podem levar as pessoas a assumir rotinas extenuantes sem sequer uma cobrança explícita dos patrões.

Muitas pessoas não estão em posição de fazer a escolha econômica por trabalhar menos. Mas, na medida do possível, o desenvolvimento pessoal, a educação e o cultivo da boa saúde devem ser encarados com mais seriedade.

Essas opções trazem crescimento pessoal que pode levar a uma qualidade de vida melhor e, eventualmente, a novos aprendizados e melhor produtividade do que o trabalho intensivo. De certa forma, são maneiras de trabalhar sem perceber – mas inteiramente em prol de seus próprios objetivos e bem-estar.

 

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