RedePsi - Psicologia

Artigos

Drogas Ilícitas: Cocaína

Os seres humanos habituaram-se a usar as folhas de coca desde tempos muito remotos.

Vejamos dois exemplos que ocupam pólos extremos de uma gama de produtos que o mercado e seu mercadores – os narcotraficantes – oferecem aos compradores que consomem cocaína em todo o mundo.

1.  Uma análise nutricional de 100g de folhas de coca revela que elas contêm 305 calorias, 19g de proteínas e 42.6g de carboidratos, além de quantidades importantes de ferro, cálcio, fósforo e vitaminas A1, B2 e E.

Os alcalóides, combinações de ecgoninas, tropeínas e higrinas, representam entre 0.25 e 2.25% do peso de cada folha, mas o principal deles, e o único ao qual realmente foi dada atenção, é a cocaína, cuja fórmula química é
2- beta-carbometoxi-3beta-benzoxitropano, ou esterbenzoil de metilecgonina.

Trata-se de um propano, quimicamente relacionado, do ponto de vista estrutural, com outras substâncias psicoativas como a atropina e a escopolamina.

As folhas de coca são mastigadas com um ritmo monótono, denominado coqueo. Cerca de 18 a 20 minutos depois da mastigação os princípios ativos chegam ao cérebro.

  • 2. O crack é uma cocaína altamente intensificada e impura. Pode ser fumado e chega ao cérebro em 6 a 8 segundos.

Entre estes dois casos extremos encontramos a pasta básica de cocaína, que também pode ser fumada misturada com fumo ou maconha. Essa variedade, comum de ser encontrada nos países produtores de coca e em seus vizinhos, é mais barata e impura. Costuma conter 36% de sulfato de cocaína. O resto é amoníaco, ácido sulfúrico, querosene etc.

Por sua vez, a free base, ou cocaína de base livre, é uma variante purificada, que pode também ser fumada. Resulta do processamento do cloridrato de cocaína com éter e também chega ao cérebro em 6 a 8 segundos após ser fumada.

O cloridrato de cocaína começa sua ação sobre o sistema nervoso central (SNC) 3 minutos depois de inalado e 14 segundos depois de ser injetado por via intravenosa. A via intramuscular na prática não ocorre.

É necessário considerar que raramente observa-se consumidores de cocaína como droga única. A norma é a politoxicomania e as combinações com fumo, álcool, cafeína, maconha, ansiolíticos, são as mais comuns em nosso meio. É freqüente nos USA e na Europa encontrar-se a combinação com os opiáceos: sobem com a cocaína e baixam com a heroína, prática denominada speed boiling.

Face ao panorama de um vício gerador de um negócio de bilhões de dólares todo ano e que, de acordo com comentaristas do mundo econômico-financeiro, ocupa o segundo lugar entre os grandes negócios da humanidade, perdendo somente para o armamentismo, a medicina tem se debatido num mundo de pesquisas e descobertas sobre as conseqüências que essas práticas psicotóxicas trazem ao ser humano. Hoje é até uma importante bandeira eleitoral dos candidatos, servindo aos interesses políticos em todo o mundo.

EFEITOS DA COCAÍNA NA UNIDADE CORPO/CÉREBRO/MENTE

                                

NEUROIMAGENS

O mapeamento cerebral (brain mapping) realizado com instrumentos de última geração e adaptado ao uso psiquiátrico, diferentemente do mapeamento padronizado da neurologia e neurocirurgia, já há muito tempo difundido em nosso meio, permite de forma imediata, investigar funcionalmente o cérebro e registrar, por exemplo, zonas de irritação, possíveis focos, umbral convulsivo, danos vasculares e função cognitiva. Estabelece-se então um plano de terapia farmacológica, que em alguns casos nos leva a, imediatamente após o mapeamento, administrar esse plano ou outros fármacos de amostragem ao paciente em estudo e cotejar com outro mapeamento feito uma hora depois, para saber pelas modificações no traçado, se o fármaco ultrapassou a barreira hematoencefálica e se está produzindo efeitos no paciente.

Além disso, ao cotejar as imagens com as de um banco de dados – por exemplo, o banco do New York Medical College – vemos facilitada nossa tarefa de realizar um diagnóstico diferencial o mais precocemente possível.

Quando, por exemplo, suspeita-se, com base na história clínica (anamnese) colhida do paciente, da existência de fenômenos paroxísiticos (ictafins) noturnos, indica-se um Holter, ou seja, um eletroencefalograma prolongado que registre a atividade bioelétrica cerebral durante uma noite inteira.

Quando se pensa na possibilidade da existência de alguma lesão estrutural do cérebro, seja pela investigação clínico-psiquiátrica ou por surgir a dúvida com base no mapeamento cerebral, recorre-se, como norma, à "Tomografia Computadorizada" (CAT scanning) simples e com contraste, ou, à "Ressonância Magnética Nuclear". Usa-se também a "Tomografia de Fóton Único" (SPECT), por ser um recurso para diagnóstico que registra o sofrimento neuronal com antecedência em relação a nossas possibilidades de evidenciar um dano estrutural, mediante os outros tipos de tomografia, por meio da perfusão de substâncias radioativas (rádio-nucleotídeos). O SPECT registra e permite uma quantificação neurofisiológica e neuroquímica do funcionamento cerebral, não somente do fluxo sangüíneo, mas também da distribuição dos neurorreceptores.

Desde 1988, graças às publicações de Nora Volkow e seus colaboradores, que utilizaram a "Tomografia de Emissão de Pósitrons" (PET scanning), a medicina começa a evidenciar vasculites, infartos cerebrais, hemorragias subaracnóides e  alterações no fluxo sangüíneo cerebral em usuários que abusam da cocaína.

Com o SPECT, pode-se adiantar o evidenciamento dos estados anteriores ao dano cerebral orgânico irreversível – ainda que às vezes possa ser compensado – e assim alertar nossos pacientes sobre o caminho para a destruição do tecido nervoso que o abuso no consumo de cocaína acarreta. Torna-se muito mais grave quando, além disso, há evidências do uso abusivo e simultâneo de álcool, fumo, maconha ou outros tóxicos e quando coexistem alguns quadros psiquiátricos como as esquizofrenias, estados maníaco-depressivos, epilepsias etc.

Tanto os estudos de Volkow e seus colaboradores, com o PET, como os de Ismael Mena, ao utilizar o SPECT, indicam a hipoperfusão bilateral nos lobos frontais como uma das zonas que apresentam maior sofrimento entre os usuários abusivos da cocaína. Isto é responsável pela grande desinibição e pela euforia que aparecem como sintomas "aparentemente" positivos do uso da cocaína. Esses sintomas, do ponto de vista fisiológico, são produtos da supressão da inibição do lobo frontal sobre as demais estruturas corticais. A perda da função frontal produz euforia, a desinibição e outros aspectos alterados na conduta, conhecidos como "moria", pelo uso da cocaína.

Nos achados do SPECT, encontram-se adelgaçamento do córtex cerebral, especialmente por hipoperfusão em suas áreas mais profundas na interface profunda entre o córtex e a substância branca. Esta descoberta, recentemente descrita, é bem característica da lesão por cocaína e é possível que seja devida a uma isquemia microscópica dessa zona.

Em síntese, essas são as conseqüências do dano vascular produzido pela ação vasoconstritora da cocaína. Descobriu-se também alguns casos de atrofia cerebral em pessoas jovens, o que nos leva a intensificar a detecção precoce de que, posteriormente e continuando o consumo, transformar-se-á em dano irreparável.

Acrescente-se que a vigilância clínica dos indicadores biológicos da arteriosclerose tem importância fundamental, principalmente nos consumidores com mais de 30 anos de idade, pois, a correlação entre vasoconstrição e arteriosclerose é potencialmente grave. Isso os predispõem ao desenvolvimento de trombos, enquanto o aumento da massa miocárdica ocasiona um fluxo coronariano decrescente e demanda de oxigênio aumentada.

A possibilidade de adulteração da cocaína por substâncias estranhas é muito freqüente e também pode causar danos vasculares. Outra causa que se deve avaliar e que talvez muitas vezes se soma às descritas é o potente efeito vasoconstritor da serotonina na circulação cerebral, em particular nas artérias de tamanho médio e grande. Essa pode ser a causa das enxaquecas freqüentes descritas pelos cocainômanos.

Casos estudados sob estrito controle da abstinência de cocaína, e nos quais os SPECTs de acompanhamento realizados seis meses depois, demonstraram que as lesões continuavam irreversíveis. Foram casos de pessoas com idade média de 32 anos e que consumiram 2 ou mais gramas diários durante 6 a 8 anos.

Alterações neuroquímicas e sua correlação mental

A cocaína bloqueia, em níveis pré-sinápticos, a recaptura das catecolaminas dopamina e noradrenalina, como já se sabe há alguns anos. Recentemente a isso acrescentou-se que o mesmo ocorre com a serotonina, que é uma indolamina.

Desta maneira ela possibilita a oferta de um excesso de neurotransmissores no espaço inter-sináptico à disposição dos receptores pós-sinápticos, fato biológico cuja correlação psicológica é uma sensação de magnificência, euforia, prazer, excitação sexual.

A recaptura dos neutotransmissores é um mecanismo fundamental para manter a homeostase e capacitar os neurônios a reagir rapidamente a novas exigências, já que o trabalho do cérebro é constante. Quando imaginamos que ocorrem cerca de trilhões de trocas neuroquímicas por minuto fica evidente que o preço pago para viver uma experiência de euforia é alto demais em relação às conseqüências que o indivíduo terá de encarar. Na falta de termo melhor, especialistas propuseram a expressão "prazer espúrio" ao efeito das drogas tóxicas.

Numa primeira fase ocorre com muita eficiência a ação de bloqueio da recaptura pré-sináptica, semelhante aos anti-depressivos ISRS, os mais modernos de hoje. Além de acarretar outros fenômenos de ocorrência simultânea, a cocaína, vai destruindo ou, talvez, queimando os receptores pós-sinápticos. Assim, perdem as propriedades que têm ou são diretamente anulados. Produz estados paranóides que podem chegar a níveis psicóticos e depressões graves, levando ao suicídio. Não havendo recaptura, não há alívio, e todos os neurotransmissores acabam sendo destruídos pela ação de diferentes mecanismos enzimáticos e de outros tipos, ou vão atuar sobre outros receptores, que desencadeiam uma reação conhecida pelo nome de kindling; ela se manifesta por um sem-número de reações, muitas das quais conhecidas como neurovegetativas, como o aumento da temperatura, sudorese, taquipnéia etc.

Também com repercussões cardíacas, como a taquicardia, crise hipertensiva, infarto do miocárdio etc. e, as hepáticas, em especial, quando a droga é consumida com álcool.

Por estes motivos, parafraseando Freud, também chamamos o consumo de drogas tóxicas de "o porvir de uma desilusão".

Entre os fenômenos complicadores temos o efeito anorexígeno, resultante da ação da cocaína sobre o hipotálamo, que limita a ingestão de alimentos e acentua a falta de aminoácidos precursores necessários à formação aumentada de dopamina e noradrenalina, caso da fenilalanina e do triptofano para a serotonina.

Isso é mais grave nos consumidores que abusam, mas não têm recursos financeiros. Estes preferem comprar cocaína à comida, pois sofrem mal-estar insuportável e esperam ilusoriamente encontrar na cocaína o paraíso desejado que um dia conheceram e que depois não mais conseguem reencontrar e, mantendo o consumo da cocaína até à morte.

Paradoxalmente a morte por overdose constitui para o toxicômano a conquista da paz. Lembremos o título significativo de um livro do especialista francês Claude Olievenstein: "Não existem drogados felizes".

Essa trágica confusão remete ao estado psicótico a que chegam e no qual confundem paz com morte, enquanto acreditam buscar o prazer e uma capacidade vital onipotente.

São postos em atividade os circuitos dos centros de recompensa do prazer no cérebro e a busca incessante dessas sensações, sem que o poder de aprendizagem sobre a impossibilidade de perpetuá-los possa ser alcançado. Para tanto, cria-se um tipo especial de vício (leia-se escravidão) que se manifesta por angústia, depressão, violência etc.

Altera-se gradualmente o ciclo sono/vigília e o sonhar, fato que tem relação, por um lado, com o funcionamento dos neurotransmissores citados, e, por outro, com o bloqueio dos centros nervosos correspondentes.

O círculo vicioso aumenta e se complica com o recorrer do cocainômano a substâncias usadas para tentar dormir e que também são viciantes, como os ansiolíticos e o álcool. As reações provocam modificações nos mecanismos da fase REM (rapid eye movement, movimento ocular rápido) do sono normal; também se anulam as ondas delta, ou seja, a terceira e a quarta fases do sono lento (slow wave sleep), os estimulantes do hormônio do crescimento (growth hormone) e, como conseqüência a imunidade.

Consumir cocaína é aceitar um "pacto com o diabo", no estilo que celebrou o Dr. Fausto com Mefistófelis, tal como descreveu Goethe, o que implica um compromisso para toda a vida.

CORRELAÇÕES ENTRE COCAÍNA E ÁLCOOL

As experiências dos consumidores abusivos das drogas psiconeurotóxicas alertaram sobre as importantes correlações existentes não apenas entre a cocaína e o álcool, mas também com o fumo de tabaco, os opiáceos, as anfetaminas, a maconha etc.

Em qualquer lugar a associação entre cocaína e álcool é a norma. O cocainômano necessita do álcool para "relaxar", descontrair do ponto de vista muscular, ou para "baixar", leia-se diminuir a excitação gerada pala cocaína.

Diversos autores assinalaram a existência de uma zona comum que recompensa o vício em diferentes drogas e indica o núcleo acuminato como o lugar no sistema límbico, e a dopamina e os receptores dopaminérgicos (DA2) como as vias responsáveis por essa reação prazerosa, que colocaria em jogo a partir de diferentes gatilhos químicos. Além disso, sustentam a existência de toxicomanias cruzadas entre essas drogas.

Há pouco tempo a bibliografia mundial começou a apresentar estudos que correlacionam o álcool com os opiáceos e a probabilidade de uma influência comum do consumidor.

O álcool que ingerimos transforma-se, em nossos cérebros, numa substância equivalente aos opiáceos. São as tetra-hidroisoquinolinas (TIQs). Como conseqüência as bases neuroquímicas do alcoolismo e a toxicomania por opiáceos seriam similares.

Além disso, reiteramos que a existência de toxicomanias cruzadas endossa essa afirmação.

Nesses processos a dopamina tem papel central. Assim vejamos:

  • 1. No cérebro, o neurotransmissor dopamina converte-se primeiro em dopamina aldeído e finalmente em ácido homovanílico.
  • 2. A conversão final é efetuada por um enzima natural chamado acetaldeído desidrogenase.
  • 3. Quando se consome álcool, primeiro ele se converte em acetaldeído e finalmente em dióxido de carbono e água. A conversão final também é efetuada pelo enzima acetaldeído desidrogenase.
  • 4. Isso quer dizer que a dopamina aldeído, naturalmente presente no neurônio compete com o acetaldeído, derivado do álcool, pelo enzima acetaldeído desidrogenase disponível.
  • 5. O acetaldeído, contudo, sofre maior atração pelo enzima que a dopamina aldeído. Como resultado maior quantidade de acetaldeído reage ao enzima e ele é destruído. Essa reação deixa um excesso de dopamina aldeído no cérebro.
  • 6. O excesso de dopamina aldeído pode combinar com moléculas dopamínicas não convertidas, produzindo um alcalóide de nome tetra-hidroparaverolina (THP). Este THP parece-se muito com a matéria-prima a partir da qual a papoula produz morfina.

Posteriormente começou-se a reconhecer o significado da serotonina nesses processos. Deu-se apoio bioquímico para o ponto de vista de que álcool e os opiáceos compartilham um mecanismo em comum com os outros dois experimentos. Foi demonstrado que a administração prolongada de morfina em animais incrementava a síntese do neurotransmissor serotonina, o que havia sido implicado na conduta do consumo do álcool.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter