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Discutindo psicanálise e sua capacidade disruptora

Tem resto que é resto mesmo.. Agora, tem resto, que é distração. É sem querer (Estamira). Começarei a escrever esse novo texto ainda muito “afetada” por dois eventos, um a participação no II Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde Mental e Direitos Humanos e o fato de ter assistido ao documentário “Estamira”. Encerrei minha participação no fórum com um sentimento que mais se parecia com um reencontro de antigas partes de mim mesma, esquecidas, meio que jogadas ao fundo de alguma gaveta de minha emoção. Não sei se o fórum poderia ser na realidade sintetizado pelo sentimento que ficou em mim, mas com certeza sei que para mim, o que ficou de marcante foi a revalidação da crença que o trabalho psi é sempre, intrinsecamente, um trabalho político, uma visão de mundo que descamba em ações que o modificam ou legitimam em sua capacidade disruptora com o que adoece ou com sua capacidade de cronificar no que nos enlouquece.

Usarei para compor o presente artigo, uma leitura da psicanálise de Freud em seus aspectos que mais a construiram lá em seus primórdios e o texto que se encontra na net, de Silvia Leonor Alonso, que se intitula: “Efeitos na clínica dos ideais instituídos”(A). E muito ou quase tudo, do que ouvi de vários palestrantes ao longo desse encontro de três dias muito produtivos. Sabendo que havia ali espaço para acolher o diferente e a discordância também, na eterna luta entre progresso e retrocesso, elaboração e resistência. Um fórum que se sabia, antes de tudo, um fórum político, onde o técnico era visto a partir desse pressuposto, como foi muito bem abordado pela mesa de abertura do evento. Quando se fala aqui de político, não estaremos falando da macro-política, mas sim daquela que se enreda em ações individuais e coletivas, que tece o delicado fio social.

“Eu sou a beira do mundo, estou em todo lugar”(Estamira)

Muito se falou, em várias mesas desse evento, do risco que o campo psi corre de através dos seus instrumentos diagnósticos, legitimar uma prática de exclusão, de dar contorno de patologia a quadros que serão antes de tudo uma tentativa, mesmo que delirante, de transformar a realidade. Em nenhum momento nega-se a existência do sofrimento humano que está inscrito na patologia mental, muito menos que não se deva tratá-la, apenas teremos que entendê-la a partir de um tecido bem mais abrangente do que a história individual, do que a concepção do ser a partir de uma leitura empobrecida e reduzida do Édipo freudiano.Nesse aspecto “Estamira” nos traz a lucidez da loucura e sua potência, sem negar-lhe o sofrimento e o transbordamento que afasta os vínculos com a imagem, com o retorno do mundo externo como construidor e possibilitador de transformação. Estamira é a denúncia e a libertação do delírio, assim como a loucura e sua prisão sem muros.

“A criação é toda abstrata, a água é abstrata (…), o fogo é abstrato. A Estamira também é abstrata”

“Em meio ao reconhecimento social da psicanálise, como não perder a potência disruptora que germinou desde seu nascimento, e a fez fecunda?”(Leonor, S)

Essa pergunta insurgiu-se a partir de eventos, talvez muito deles de uma própria desconstrução pessoal, porque cada vez acredito mais, e penso que isso já estava lá em Freud, que só podemos transformar algo, a partir do que muda intra-psiquicamente, porém entendido esse psiquismo, como já foi abordado em outros textos dessa coluna, como algo que se constroi inclusive pelo social, sejam esses aspectos sociais chamados de ambiente, instituídos, mundo externo ou qualquer outro conceito escolhido nas várias abordagens que hoje são consideradas pelo que chamamos de psicanálise contemporânea.

Se a psicanálise sabe, desde sua fundação, que não se faz um psicanalista sem sua passagem pela sua própria análise pessoal, talvez seja pelo entendimento que sempre houve da necessidade de comprometer esse “outro”, o analista, com sua própria capacidade de romper, de desconstruir para encontrar o lugar analítico.

“A psicanálise nasce e vive seus primeiros tempos na marginalidade. À margem dos discursos científicos instituídos, à margem da Associação Médica de Viena, à margem dos meios acadêmicos”.(Alonso, S)

Hoje encontraremos uma psicanálise ajustada, bem recortada e comportada por um lado, por outro uma anarquia que a consome e destroi. Restará ainda alguma movimentação dela enquanto sua potência “desrecalcante”? Essa sem dúvida, é uma pergunta que atravessa a clínica nossa de cada dia nessa tal pós-modernidade que muitos falam. Esse sujeito psicanalista é parte integrante dessa grande comunidade que o acolhe e contém e que lhe retribui com reconhecimento ou desprezo. Com quais dispositivos esse analista se comprometerá dentro de sua prática? Seria possível ter um analista conservador em valores pessoais e um analista como dispositivo “disruptor” na escuta analítica? Penso que não.

“Cada coletivo (macro-social ou micro-institucional) vai marcando emblematicamente certos lugares, que se transformaram em fontes de prestígio e favorecem o estabelecimento de transferências. Creio que a questão é – quais são os pactos que o movimento psicanalítico realiza com este coletivo, mesmo que ao preço de perder-se? (Basta pensar na forma em que "a peste", levada por Freud para os Estados Unidos, transforma-se na Psicologia do Ego. Ou no fato de algumas Sociedades de Psicanálise aceitarem apenas médicos como membros: e não penso que psicanalista algum acredite em qualquer isomorfismo possível entre o campo psicanalítico e o diploma de médico)”. (Alonso, S)

Para se alcançar a escuta analítica há que se despir, necessariamente, do desejo de enquadrar questões em sistemas normativos ou normalizadores. Há que existir sempre o espaço da ausência, aquele que no setting se preenche com o desejo do outro, o analisando.

Mais do que entender como está frente ao mercado hoje, o profissional psicanalista precisa, urgentemente, sacudir a poeira da própria inserção dela, a psicanálise, na estrutura social. Fechada e mofando em consultórios à meia luz, se perde de sua maior capacidade: a de promover e levantar indagações. Mais do que um instrumento de adaptação e retirada do sofrimento(cura?) ela serve antes de tudo para desarrumar tudo aquilo que levaria ao sintoma. É nesse sentido que foi estruturada e não como uma técnica clínica ou somente um método construtor de uma ética questionável.

Sabemos que essas questões não dizem respeito apenas a psicanálise, pertencem assim a todo campo psi, onde enxergaremos na atualidade algumas abordagens totalmente acríticas e tecnicistas. Sabemos hoje de todo um avançar no sentido de entender saúde psíquica com leituras absolutamente técnicas e/ou biologicistas, como se isso fosse possível dentro do que diz respeito a subjetividade humana.

“ Você é o comum, eu não sou comum.(…) Eu sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim, a Estamira”

Essa “Estamira” que significa o romper do limites, a “beira do mundo” como ela se diz, aquilo que transborda e é borderline ou que desagua sem limite entre o delírio e a necessidade de pertencer ao mundo. Que lugar ocupa, que angústia é capaz de suportar no processo constante da pressão pulsional? Me recuso a pensar o Inconsciente freudiano como aquele lugar da falta, penso-o muito mais como a caldeira que fervilha sempre enquanto em seu estado do que é vivo, pulsional, àquele que tem sempre impulsão, nesse sentido muito mais deleuziano. Talvez ao fazer isso, seja menos psicanalítica para o instituído, talvez. Mas, Estamira, em seu discurso delirante, em seu sofrimento em fúria, nos defronta com nossa própria loucura, com aquilo que enlouquece em nós cada vez que, mesmo que por breves instantes, nos colocamos em contato com os “lixões” que produzimos. Ser psicanalista sem sentir isso em profundidade é fazer menos que usar o dispositivo que questiona o recalque. A insubordinação é o lugar da psicanálise.

Fico pensando em como seria se, nossas reminiscências, a dos psicanalistas, saíssem do divã e ganhassem o público, o que nelas estaria dito daquilo que nos levou ao caminho da escuta, de pretender ser para alguém, o outro, aquele que recebe e lida com as reminiscências de um psiquismo alheio a nossa história.

Nas obras de diversos autores, psicanalistas renomados, encontraremos em algum momento algum tipo de reflexão sobre isso. Embora saibamos, pela boa prática da psicanálise, que cada um de nós é absolutamente único e original em suas vivências e que nossas verdades mais constituintes são indizíveis, talvez possamos pensar em um algo que seja como um fio, que nos une a todos, aqueles que sonham ou sonharam construir-se enquanto psicanalistas. Somos de todas as regiões do planeta, de todas as cores e matizes, orientação sexual, línguas, cultura, dinâmicas familiares, meio social etc. Frente à diversidade haverá algum fio que nos una e identifique, ou seremos mesmo únicos e solitários em nossa escolha?

O quanto haverá de “Estamira” em cada um de nós, e no quanto a utilizamos para modificar e romper padrões e no quanto paramos frente a tempestade com capas e protetores?

Há um livro lindíssimo, de Françoise Dolto, uma entrevista feita com ela um pouco antes de sua morte, onde fala de sua infância, seus fantasmas e de como tudo isso a levou a ser psicanalista, o nome do livro é: “Auto-retrato de uma psicanalista”. Encontraremos também alguma reflexão na obra intitulada de “Psicanálise Da Paixão do Ser à Loucura de Saber”, de Maud Manonni.

Certo é que muitos de nós acreditamos que o “ser” psicanalista é antes de tudo alguém comprometido com teses libertárias, avesso a adequação, submetimento e opressão.

Mas fato é também, que muitos dos dispositivos institucionais que formam esses mesmos analistas, o convidam a comprometer-se com a paralisia e engessamento, satisfazendo muitas vezes pontos de fixação em sua própria história, legitimando pontos cegos que o levarão à uma prática de enclausuramento, que acabará desembocando em uma prática que se comprometerá também com os dispositivos sociais regressivos, conservadores.

Algo do qual penso que poderemos partir nosso pensamento será de que, talvez, possamos pensar que toda infância de um psicanalista teve muito do questionar. Não conheci até hoje um psicanalista que não fosse, em seus primeiros anos de vida, um questionador (passivo ou rebelde), e que esse questionamento não tenha sempre partido de um sentimento de estranhamento frente à dinâmica de sua família. Dolto em seu livro, acima citado, nos diz sobre ser psicanalista e seu sentimento em família:

“A compreensão dos afetos humanos. Mas lembro-me muito bem de que, a primeira vez que disse isso(ser médico de educação = psicanalista), fiquei espantada. Como daquela outra vez em que eu disse – uma frase que também foi dita por não me lembro mais quem, eu nunca ouvira aquilo de ninguém, mas meus pais repetiram várias vezes porque lhes ficou na cabeça (“Mas, enfim, onde e você vai buscar essas idéias?”) – disse, então, com um ar magoado e em voz bem alta, quase com uma ponta de desprezo por eles, pois me sentia muito infeliz de pertencer a uma família que não me compreendida: “Estou vendo que nasci cedo demais, num século velho demais.”Eu era infeliz, e disse isso a eles num tom de censura, que eles perceberam muito bem”.

Talvez seja essa a argamassa do psicanalista, e antes dele, da própria psicanálise, essa vontade de dizer, esse estranhamento frente ao silêncio ou às duplas mensagens.
Nem todo questionador infantil será um psicanalista, mas com certeza poderemos supor que não teríamos um psicanalista sem um intenso olhar crítico sobre sua própria infância e seus primeiros laços e vínculos e que isso sempre o levaria ao divã, pela demanda inconsciente sem a qual não se forma um psicanalista habilidoso no desempenho de sua função. Quase sempre encontraremos ali no divã da dita análise didática ou formativa, alguém que olhou para sua infância com algum estranhamento, muitas dúvidas e alguma necessidade de voltar-se para a compreensão dos outros seres a sua volta, principalmente quanto ao mundo adulto que o cercou em seus primeiros anos de vida, a assim chamada infância, palco de todo o roteiro onde se debruça a tarefa psicanalítica, onde vive a criança “pai do adulto” que seremos.

Repetimos Estamira: “ Você é o comum, eu não sou comum.(…) Eu sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim, a Estamira”. Conviveremos, assim como ela, com o nosso próprio “trocadilo”, aquilo que é o “esperto ao contrário”, não há inocência possível.

"Tem o eterno, tem o infinito, tem o além, tem o além do além.. O além dos além vocês ainda não viram.. cientista nenhum ainda viu o além dos além”.(Estamira)

Ficou novamente delineado para mim, o quanto precisamos ouvir de nossa própria Estamira, a que se rebela, a que usa a fúria e o amor, como parte integrante de sua trajetória, onde ela entende que
“tem resto que é distração”. Talvez seja nesse espaço da distração que entrará a escuta psicanalítica e sua potência de transformação dos vínculos, aquilo que Freud entendeu no delírio enquanto sua capacidade de refazer o vínculo com a realidade, ou o tal mundo externo onde se fazem esses mesmos vínculos ou ainda outros.

Freud e Estamira nos dirão que muito do sofrimento humano provém dos vínculos com seus semelhantes, Freud o cita enquanto uma das três fontes do sofrimento humano:
“"o sofrimento nos ameaça a partir de três direções”: nosso corpo, o mundo externo e nosso relacionamento com outros homens; e que a “infelicidade é muito menos difícil de experimentar".(Mal Estar na Civilização). Vale sempre relembrar essa fala freudiana, assim como vale sempre reapresentar sua fala sobre a esperança que o mundo representa enquanto lugar dos afetos, e também enquanto uma possibilidade de transformação: “Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais – as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. – podendo também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade”.(Freud- Psicologia dos Grupos e Analise do Ego)

Talvez esse texto resulte apenas em minha “Estamira”, talvez faça apenas um sentido vago, talvez seja até destituído dele, mas nasce e se desenvolve na esperança de um campo psi comprometido com a liberdade e esperança de um mundo mais completo, menos enlouquecedor e vazio como o que dizem que vivemos agora e que assombra nossas emoções diárias. Essa é a psicanálise que vive em mim, um espaço aberto entre a ilusão e a desilusão, entre a crença e a descrença, entre o que se constroi e destroi, ente aquilo que Freud nomeia como entre o princípio do prazer e o para além do princípio do prazer. Diria que entre um copo de vinho e uma boa música com boa companhia ou uma fluoxetina, como canta o grupo carioca proveniente do CPRJ (Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro) o “Harmonia Enlouquece”, vale conferir:
http://www.youtube.com/watch?v=xb1i1hkxnjk

Como disse antes, esse é um texto comprometido, transbordante, e sei que corre o grande risco de resultar em algo falho, aberto, incompleto. Acho eu, que isso deva ser comemorado.

Desarrumar sempre, essa é a prática psi que acredito possível, mesmo levando em conta que há um apelo dos sintomas para que cesse o sofrimento do insuportável, que deva sim ser acolhido e tratado, porém em toda sua extensão e não apenas como algo que deva ser retirado cirurgicamente pelos meios mágicos químicos ou de adaptação normativa ou normalizadora.

Como diria Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade:

"Não há outro inferno para o homem, além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes".

Mas voltemos com a fala de Estamira, que também conterá esperança em todo seu delírio.

“Tudo que é imaginado existe, é e tem”

“Perturbação é perturbação. Não é deficiência… Por que não pode ficar perturbado?”

Ou ainda como nos disse Fraçoise Dolto:

“Enfim, digamos que se tratava de uma possibilidade de comunicação até ali desconhecida

Da escuta”.

Alain Manier pergunta: “Da escuta, porque é um sentido de mão única.(…)

Aí está! É a mesma questão, que vou colocar de outra maneira: por
que querer escutar os outros?”

Dolto responde:
“Porque sinto que este é o bem. Nunca tive outra resposta. 'Françoise faz o  bem!'(pág 32)”

Alain Manier: “Era ligar a ciência à linguagem, à compreensão?”

Dolto:
“A compreensão dos afetos humanos. Mas lembro-me muito bem de que, a primeira vez que disse isso, fiquei espantada.”(pág41)

Esse espanto, penso eu, deva ser sempre a matéria prima do campo psi.

“É no âmbito da comunidade analítica que o ideal de um analista encontra espaço para articular-se. Na situação clínica este ideal se situa na borda, como que fazendo parte do contorno do campo da escuta. O problema é quando entra no campo e o fecha, ou tende a ocupar seu lugar. Ou ainda, quando o ruído, que ainda não se converteu em palavras, é trocado pelo saber constituído: a singularidade é então substituída por uma ordem de relações preestabelecida. O sofrimento que grita é abafado por um "deve ser assim", que se impõe ao analista como um imperativo categórico”. (A)

A – Link para artigo citado: Efeitos na Clínica dos Ideais Instituídos – Silvia Leonor Alonso

http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs03/SilviaEfeitos.htm

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