…mas é nesse ponto, no encontro da doçura de Poppy com o amargor de Scott (o instrutor de direção), que o filme revela sua ótica incisiva sobre o que é a felicidade. A convivência desses personagens expõe duas formas de viver e de ver o mundo diametralmente opostas que, me parece, são alegóricas. Ou seja, há uma exacerbação das características de personalidade das personagens, o que seria um recurso dramático para distinguir os "territórios" vivenciais de Poppy e Scott. Assim, o recorte da vida feito por Poppy é 100% otimista, bem humorado, generoso e encantado, levando-a a fruir com as situações diárias sem reservas ou pré-julgamentos. As lentes de Scott, ao contrário das de Poppy, são lapidadas por um pessimismo bruto, pelo azedume, pelo egoísmo, pela decepção e pela negação da vida, o que faz dele um homem incapaz de sair do próprio foco. O mundo de Scott é o umbigo dele, ensimesmado, o sujeito não consegue abrir mão das verdades que carrega consigo. Enquanto o mundo de Poppy é uma palheta que se desenha e colore à medida que os eventos ocorrem, o de Scott é uma tela acabada, monocromática e definitiva.
Ok! Você, caro leitor que viu o filme, pode dizer – mas a Poppy também detém suas verdades, só que as dela são baseadas numa visão "cor de rosa" do mundo. Logo, o mundo dela também é monocromático porque sempre positivo. Eu direi a você, errado! Poppy não deixa de ver o lado negativo da vida: ela reconhece o mal presente na agressividade do aluno; a ambigüidade afetiva da vida familiar; a miséria humana na condição do sem-teto; o prejuízo do roubo – quando lhe usurpam o principal meio de transporte, a bicicleta; a incerteza do amor que se inicia; a arrogância e a indelicadeza do instrutor de direção, que mais tarde revelam-se parte de uma instabilidade emocional muito mais profunda…enfim! Poppy não é a Pollyanna condicionada à uma resposta comportamental para esquivar-se dos males do mundo, muito menos o Professor Pangloss de Voltaire, para quem "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis". Poppy vê o mal – o negativo, o ruim – e os danos que ele promove mas, ao contrário de Scott, ela não se deixa tragar por ele, ela não o toma como uma regra dominante que deve nos levar a nos defendermos de tudo e de todos, todo o tempo.
O mal existe, Poppy reconhece isso. Quando o lado negativo da vida se faz presente – Poppy ensina – devemos buscar os meios para minimizar os seus efeitos. É o que ela faz entrando na auto-escola ao ter a bicicleta roubada. Ao invés de sentar e chorar sua condição de vítima da violência urbana, ela coloca em prática uma necessidade adiada, aprender a dirigir, e abre novas possibilidades para viver. Em outro momento, ao se deparar com a agressividade do aluno, ao invés de demonizar a criança, tachando-a de problemática, etc., Poppy procura meios para eliminar o mal, tentando entender a raiz do problema e buscando soluções para ele. Por fim, quando o que é ruim é maior e mais forte do que os recursos que temos para enfrentá-lo, Poppy mais uma vez mostra o caminho: afastar-se da fonte do problema. É o que ela faz em relação ao Scott e, de certo modo, em relação a uma parte da própria família.
A receita de felicidade de Poppy é natural e, coincidentemente, vai ao encontro dos resultados obtidos pela Psicologia Positiva ao investigar o que diferencia as pessoas felizes das não felizes. Melhor dizendo: vivemos todos no mesmo mundo, todos enfrentamos dores e decepções. Há formas positivas e negativas de lidar com isso: aceitando a alternância da experiência e buscando soluções para o que nos aflige sem fazer tempestade em copo d'agua o tempo todo – de vez em quando é até saudável – ou afogando-se, persistentemente, na autocomiseração e isolando-se da vida porque o mundo parece ameaçador. Logo: morte, adoecimento, violência, desilusão, traição, perda, etc., farão parte da vida de todos nós em algum momento, e aprender a lidar com isso de forma produtiva – leia-se, sem deixar que o sofrimento nos paralize – é a única possibilidade de felicidade.
Parênteses: note-se, estou falando de todos nós que podemos suprir as necessidades básicas de subsistência. As pesquisas sobre felicidade apontam para o fato de que a privação material – como passar fome ou carecer de recursos para minimizar/interromper a dor – inibe a possibilidade de vivência de felicidade. Mas a vida não é só isso. Do ponto de vista estritamente fisiológico, satisfazer as necessidades básicas – comer, abrigar-se, evitar/tratar a dor – demanda recursos mínimos. Uma vez que tais recursos estão disponíveis, a avaliação da vida como positiva ou negativa é uma construção pessoal. O que diferencia uma pessoa feliz de uma não feliz é a forma de encarar e de lidar com os problemas e os males da vida. Melhor dizendo: o mundo, a vida, é do tamanho da nossa disponibilidade para aprender. O que, obviamente, exige uma mente aberta à experiência.
A necessidade de abertura emocional para a vida, e a felicidade, é sentida na pele quando vemos o filme. Esse é o grande mérito do diretor Mike Leigh, ele conseguiu construir uma narrativa que nos leva a nos depararmos com a nossa resistência a abandonar os padrões. Ao nos depararmos com Poppy, com seu comportamento peculiar, nos apegamos aos conceitos pré-definidos de maturidade, racionalidade, sanidade, etc. A mulher boba que ri de quase tudo, que brinca, que não se leva tão a sério, nos parece inicialmente uma "retardada", infantil, "sem noção"…o Scott em nós se irrita com o jeito de Poppy, e logo duvidamos da seriedade – e da validade – não só da personagem como do próprio filme.
Progressivamente, se nos permitimos, o desenrolar da trama vai sutilmente nos inserindo na mente de Poppy, na sua forma "desarmada" de lidar com os fatos…aos poucos vamos compreendendo como a felicidade pode habitar a vida, a partir da nossa disposição para reconhecê-la nas menores coisas e acontecimentos…é simples! A visão de Poppy nos permite fazer a transposição da concepção rígida do que seria a inteligência, a adultez e a racionalidade para um ponto de vista mais flexível da maturidade – no qual cabe uma certa dose de ingenuidade, de irresponsabilidade, de curiosidade, de insegurança, de narcisismo. Quando conseguimos fazer essa passagem, descobrimos que o incômodo que sentimos com a felicidade de Poppy é a constatação do nosso apego à tristeza, à idéia monolítica de seriedade que lutamos por ostentar como sinal de inteligência e superação da infância.
O encontro com Poppy e Scott pode nos ajudar, enfim, a perceber que a felicidade não é o oposto da tristeza. A felicidade é o oposto de uma vida não vivida…a Felicidade é o oposto da amargura!