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Psicanálise, DSM e CID: Encontros e Desencontros

A relação entre a psicanálise, o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação Internacional de Doenças) é marcada por complexidades, convergências e divergências que refletem tanto as especificidades de cada abordagem quanto os contextos históricos e culturais em que foram desenvolvidas. Enquanto o DSM e a CID se consolidaram como ferramentas fundamentais na prática clínica e na pesquisa em saúde mental, especialmente no campo da psiquiatria, a psicanálise segue um caminho teórico e prático distinto, enraizado em uma perspectiva subjetiva e qualitativa do sofrimento humano.

A psicanálise, fundada por Sigmund Freud no final do século XIX, enfatiza a singularidade de cada indivíduo, privilegiando a exploração do inconsciente e das experiências subjetivas para compreender os sintomas e as angústias humanas. Este método valoriza o discurso do paciente, interpretando-o como expressão de desejos, traumas e conflitos psíquicos que operam além do nível consciente. Por outro lado, o DSM e a CID adotam uma abordagem mais categórica e descritiva, voltada para a padronização e a objetividade na identificação e no tratamento dos transtornos mentais. Estas ferramentas foram desenvolvidas para proporcionar uma linguagem comum entre profissionais de saúde e facilitar a coleta de dados epidemiológicos, além de orientar decisões clínicas baseadas em critérios diagnósticos bem definidos.

Os encontros entre essas abordagens ocorrem, principalmente, na prática clínica, onde o profissional pode recorrer tanto aos critérios diagnósticos do DSM e da CID quanto à compreensão psicanalítica da subjetividade do paciente. Por exemplo, um diagnóstico de depressão segundo o DSM-5 pode ser enriquecido pela escuta psicanalítica, que busca compreender os significados subjacentes ao sofrimento do indivíduo, explorando aspectos como luto, culpa e relações interpessoais. Neste sentido, a psicanálise pode oferecer um complemento à psiquiatria, proporcionando uma visão mais ampla e integrada da condição do paciente.

No entanto, os desencontros entre a psicanálise e os sistemas classificatórios como o DSM e a CID também são notáveis. A psicanálise critica a tendência de redução do sofrimento psíquico a categorias diagnósticas fixas, argumentando que isso pode desconsiderar a singularidade e a historicidade de cada caso. Além disso, a ênfase em tratamentos baseados em evidências e a crescente medicalização dos transtornos mentais, promovidas pelo DSM e pela CID, podem entrar em conflito com a abordagem psicanalítica, que privilegia o tempo e a profundidade do processo terapêutico.

Historicamente, a criação do DSM e da CID reflete esforços para sistematizar e padronizar o diagnóstico em saúde mental, atendendo às demandas de práticas médicas, pesquisas científicas e políticas públicas. Desde a publicação do DSM-I em 1952, o manual passou por diversas revisões, incorporando avanços científicos e respondendo a críticas e debates da comunidade psiquiátrica e de outras áreas da saúde mental. A CID, por sua vez, é uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) com um escopo mais amplo, englobando não apenas doenças mentais, mas também físicas. Ambas as ferramentas são amplamente utilizadas no mundo todo, embora o DSM tenha maior destaque nos Estados Unidos, enquanto a CID predomina em outros contextos internacionais.

A psicanálise, embora tenha perdido espaço na formação médica e nas práticas institucionais, mantém-se relevante como uma abordagem teórica e clínica que desafia os paradigmas biomédicos hegemônicos. Sua contribuição vai além do consultório, influenciando campos como a literatura, a filosofia, a antropologia e as artes. Entretanto, sua relação com o DSM e a CID continua sendo tema de debates, especialmente em relação à legitimidade científica, à eficácia terapêutica e ao papel do terapeuta na contemporaneidade.

Os desafios para integrar a psicanálise com os sistemas classificatórios incluem não apenas diferenças epistemológicas, mas também questões práticas e éticas. Por exemplo, o uso do DSM e da CID muitas vezes está ligado a requisitos de reembolso por parte de seguradoras de saúde ou a exigências legais para o encaminhamento de pacientes. Nesses casos, o diagnóstico formal torna-se uma necessidade prática, mesmo que o terapeuta adote uma abordagem psicanalítica no tratamento. Além disso, a crescente demanda por tratamentos breves e focados em resultados mensuráveis coloca a psicanálise em uma posição desafiadora, pois seu modelo terapêutico é geralmente mais longo e complexo.

Por outro lado, alguns esforços têm sido feitos para aproximar essas perspectivas. Modelos integrativos de saúde mental buscam combinar o rigor diagnóstico do DSM e da CID com a escuta e a compreensão psicanalítica, promovendo uma abordagem mais holística e centrada no paciente. Além disso, pesquisas que utilizam métodos qualitativos e quantitativos vêm explorando formas de validar cientificamente as intervenções psicanalíticas, contribuindo para um diálogo mais construtivo entre diferentes abordagens.

No campo acadêmico, a relação entre a psicanálise, o DSM e a CID é frequentemente debatida em termos de paradigmas científicos e culturais. Enquanto o DSM e a CID são vistos como representantes do positivismo e da busca por objetividade, a psicanálise é associada a uma tradição hermenêutica e interpretativa. Esses contrastes refletem não apenas diferenças metodológicas, mas também visões distintas sobre a natureza humana e o papel da saúde mental na sociedade.

Em conclusão, os encontros e desencontros entre a psicanálise, o DSM e a CID ilustram a riqueza e a complexidade do campo da saúde mental. Embora existam tensões e diferenças significativas entre essas abordagens, elas também podem se complementar, contribuindo para uma compreensão mais abrangente e integradora do sofrimento humano. Ao valorizar tanto a padronização e a objetividade quanto a singularidade e a subjetividade, é possível construir práticas e teorias mais inclusivas e eficazes, capazes de atender às necessidades diversificadas dos indivíduos e das comunidades.

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