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O Medo

O medo é uma emoção intrínseca ao humano. Trata-se de uma emoção que acompanhou o curso evolutivo do homem, provavelmente, desde os primórdios da vida. O feto humano já reage com contrações quando estimulado no útero. Isso quer dizer que já no desenvolvimento intra-uterino o ser humano apresenta sinais de conduta individualizada que é o comportamento inibitório. Conhecemos esse comportamento com o nome de medo.

O medo é psicofísico. Toda vez que sentimos medo, imediatamente, nosso organismo apresenta reações características desse sentimento. Dependendo da intensidade do medo, podemos ter uma paralisação momentânea das funções cardíaca e respiratória. A seguir o coração dispara e a respiração acelera. Sobrevêm a palidez que é proveniente da retirada de sangue dos vasos periféricos. O suor pode inundar a pele. Se pudéssemos olhar o corpo internamente, dentre outras reações, poderíamos observar que as alças intestinais se dilatam e cessam as atividades motrizes do estômago. A secreção gástrica fica paralisada e relaxam-se todas as fibras musculares lisas em toda a extensão do tubo digestivo. Há uma abundante liberação de adrenalina na corrente sangüínea. Os vasos sanguíneos se contraem.

O medo é, portanto, a mais visceral e talvez a mais antiga emoção do homem. O medo foi necessário para que a espécie humana se preservasse e, sem ele, provavelmente, seríamos uma espécie extinta há muito. Sempre que o ser humano se depara com uma situação que desperta medo, tende a fugir. Mas o homem não foge só porque tem medo, mas também, para livrar-se do sentimento de medo. Essa fuga, ao contrário do que possa parecer, não é uma atitude passiva, mas sim ativa onde o homem apropria-se de seus recursos para superar uma situação de perigo e dela libertar-se, preservando a vida. Entretanto esse comportamento pode ser interpretado de duas maneiras: Por um lado evita que o homem sofra alguns males colocando-o a salvo, por outro, impede que enfrente situações de conflitos que poderiam leva-lo a êxitos que ampliariam seu repertório experimental. Na timidez, por exemplo, as pessoas se protegem de um mal imaginário e ficam impedidas de viver plenamente as experiências que um contato afetivo poderia trazer.

Todos nós, ainda que não tenhamos nos detido para observar, sabemos que o medo é um dos mais eficientes professores que temos. Faz nos aprender com uma velocidade desconcertante. Vejamos um exemplo: Suponhamos que uma criança jovem está andando no quintal de sua casa e é mordida pelo seu cão. Durante muitos meses aquela situação traumática ficará na memória de forma a determinar o medo e a reação de fuga diante de qualquer cão. Ou seja, a criança ficará durante muito tempo aguilhoada pelo medo.

Só com o passar do tempo e na medida em que puder experimentar situações onde se certifique de que nem todos os animais reagem de forma agressiva e que a criança vai, paulatinamente, ganhando confiança para então diminuir o medo. Entretanto, há situações em que é muito difícil erradicar completamente o medo. Muitos medos se imprimem na mente de forma cumulativa e não puntiforme como o exemplo que utilizamos acima, tornando-se assim mais difíceis de serem identificados e tratados.

O medo exerce grande influência sobre tudo no psiquismo humano. Esse sentimento tem atravessado o tempo com o homem e ajudou-o a tecer sua história não só no sentido do progresso como também no sentido da maldade e da destruição. No sentido do progresso pode-se dizer que o medo fez com que o homem criasse cada vez mais condições para preservar-se. Criou recursos para proteger-se das feras, da fome e da instabilidade do tempo e de sua própria espécie. Saiu das cavernas para as choupanas, destas para casas de alvenaria e posteriormente criou castelos com altos muros e grossas paredes. Descobriu as ervas que curavam e muito mais à frente criaram-se os remédios que prolongam a vida. Criou armas, cada vez mais sofisticadas para a caça e defesa.

O medo do outro

MEDO: DESPREZO PELO HOMEM
E LOUVAÇÃO AOS DEUSES

Mas o medo também foi responsável por muitas das atrocidades da história da humanidade. Foi um longo caminho até que o conhecimento pudesse diminuir os gestos insanos disparados pelo medo. Se olharmos a aurora do homem, veremos que inventavam deusas e deuses. Por que? Por que o homem tinha medo. Louis Rebecca Barish, dizia que Deus nasce do temor do homem. O desamparo do homem justifica a criação de Deus. Assim, desde o início inventaram-se os Deuses para explicar o inexplicável. Coisas incompreensíveis como o trovão, as tempestades, as secas, as doenças, o sol e a lua causavam temor. Muitas tribos sacrificavam mulheres e crianças para acalmar os deuses bravios. Quando eram atacados por pestes, os homens intensificavam os sacrifícios para acalmar seus irados deuses. A história Grega é repleta de exemplos que mostram a relação entre as pragas e a ira dos deuses. Em Édipo Rei de Sófocles, a população adoece e morre porque Édipo casou-se com sua mãe. Os deuses irados castigam o povo com uma praga até que o culpado seja descoberto e condenado.

Agora que estamos perto do final do milênio, estamos vivendo uma histeria coletiva por causa da crença de que o mundo vai acabar em 2000. Isso tem se repetido inúmeras vezes no decorrer da história da humanidade. No ano 1000, com a passagem do cometa pela terra, criou-se também uma grande movimentação entre as pessoas que acreditavam que o mundo sucumbiria. Em 12 de Agosto de 1654, onde um eclipse juntamente com cálculos feito por astrólogos, afirmava que o mundo haveria de acabar num cataclismo e fez com que a Europa entrasse em pânico. As igrejas ficaram apinhadas de pessoas querendo confessar-se a fim de expiar os pecados antes da morte. Mas é obvio, o mundo não acabou. E a julgar pela nossa experiência, não vai acabar tão já.

Os antigos reconheciam no medo um poder mais forte que os homens. Durante as guerras, para acalma-lo, faziam oferendas apropriadas e acreditavam que com isso, poderiam desviar para seus inimigos sua ação aterrorizante. Joga-se no outro o que não suportamos em nós. Não é muito diferente do que faz o homem contemporâneo que faz "trabalhos" para livra-se de "coisas feitas" por outros. Os gregos em épocas de guerra tentavam conciliar-se com Deimos (temor) e Fobos (medo), para não serem atingidos por eles durante as batalhas.

O medo coloca o homem em contato com sua finitude e sua fragilidade. A coragem e a bravura estão ligadas à necessidade de negar essa condição intrínseca do homem. Mas, mesmo sendo o mais humano dos sentimentos, o medo sempre foi visto com desprezo pelos homens. Virgilio já escrevera na Eneida: "O medo é a prova de um nascimento baixo". Observa-se que, já na Grécia, a falta de coragem era associada à miséria e à ignorância. Na literatura grega abundam relatos de homens corajosos que vencem feras, monstros e deuses. Os deuses de quase todas as civilizações eram heróis que tinham ingressado no mundo dos mortos e dos espíritos e haviam voltado vivos. Eram esses os deuses que permaneciam, eram eternos, tinham vencido o medo prioritário: a morte. Cristo também voltou dos mortos. Esse é um grande mito a ser pensado.

Ser medroso era covardia. O homem de verdade era aquele que era nobre através da coragem. Na idade média vai surgir o arquétipo do cavalheiro sem medo, perfeito e vitorioso que contrasta bruscamente com a massa de pobres considerada sem nenhuma bravura. Quando estudamos a história do medo, podemos compreender com clareza porque esse sentimento é tão discriminado ainda em nossos dias, apesar de ser impossível viver sem ele. Pode-se dizer que para os homens a coisa é muito pior. O medo é permitido à mulher. Elas então podem ser autênticas, verdadeiras em suas emoções. O homem não. Esse tem a obrigação de ser valente. Tem que negar seus medos e angústias. Montaigne, por volta de 1490 atribuía aos pobres uma constante propensão ao pavor. Miguel de Cervantes, em seu "Dom Quixote", traça uma cena onde Quixote, diz a Sancho quando este lhe faz ver que o exército que imaginava ver, não passava de um rebanho de carneiros: "É o medo que tens, Sancho, que te faz ver e entender tudo mal. Mas se teu pavor é tão grande, afasta-te...". Essa fala explicita bem como o homem encarava o medo.

Mas já nessa época haviam mentes mais iluminadas pela razão. Thomas More afirma: "A pobreza do povo é a defesa da monarquia… A indigência e a miséria eliminam toda coragem, embrutecem as almas, acomodam-nas ao sofrimento e à escravidão e as oprimem a ponto de tirar-lhes toda a energia e sucumbir ao jugo". Dessa forma, concluí-se, ter dinheiro, alimento e conforto, permite também que se tenha coragem. Podemos observar que a condição do medroso era mesmo de miséria justamente porque a miséria mesma induzia à fragilidade e à covardia. A miséria humilha, destrói. Talvez seja por isso que o povo brasileiro tenha tantas dificuldades em resgatar seu direito de cidadania. A bravura e a valentia eram características dos nobres e endinheirados. Assim é fácil. Isso pode ser observado nas fotos e esculturas da época da Renascença. Os homens deixavam-se retratar de peito inflado, rosto altivo e sorriso suave nas faces coradas. Mas a despeito de todas os esforços para superar e negar o medo, só há uma verdade: "Não há homem acima do medo".

Prova disso é que os homens, mesmo os cavalheiros corajosos, usaram amuletos, criaram imagens de santos, anjos de guarda e templos para deuses que pudessem protege-los. Nenhuma civilização escapou desse ritual. A necessidade de segurança está na raiz da afetividade e da moral humana. Quem não tem medo está, na melhor das hipóteses, doente. Como já disse num outro artigo (O amor), o homem é o único animal que sabe que vai morrer e por isto, é o único no reino animal a conhecer o medo num grau tão terrível e duradouro. Entretanto, paradoxalmente, o medo é que nos permite escapar provisoriamente da morte.

O MEDO E A MORTE

Alguns índios mexicanos conservavam na sua lista de enfermidades a "doença do pavor". Muitos amuletos foram criados para que pessoas pudessem se precaver contra ela. Era comum ver entre indígenas os colares com dentes de feras, que tinham como finalidade, afugentar o medo. Numa descrição curiosa, esses índios descrevem a doença do pavor, de maneira que permite uma analogia com os conhecimentos científicos atuais. Diante do susto, a alma deixava o corpo e abrigava-se na terra. Era necessário buscar um curandeiro para fazer a reintegração da alma ao corpo. O medo pode causar uma inativação orgânica que, num grau avançado, pressupõe a ausência de noção do conhecimento de perigo e do próprio estado de medo. Então as pessoas parecem estúpidas. Carecem de iniciativa, de sentimento ou de emoção, mesmo diante de situações extremamente graves.

Nos dias de hoje, sente-se que o medo é uma presença constante na vida do homem. A crise econômica que assola o mundo, desestabiliza os valores morais e desativa a esperança. As pessoas são tomadas de pânico e, muitas vezes, pensamos em depressão quando na verdade o que temos é um estado paralisante de medo. Não é possível, para o homem, viver sem ter alguma referência do futuro. O fato de sabermos que somos mortais faz com que tenhamos uma grande inclinação a dominar o futuro. É necessário planejar o amanhã para se ter a impressão de que ele nos pertence e assim criar a ilusão da continuidade da vida. Quando as circunstâncias à nossa volta nos tiram essas condições, ficamos tomados de pânico e de angústias. Há um vazio em nós que não sabemos explicar, temos dificuldade de localizar nossas emoções e encontrar iniciativas que nos levem às realizações.

Para se ter uma idéia da força que os objetivos e o planejamento futuro tem para o homem, vou descrever uma experiência que tive com pacientes terminais. A meu ver a primeira coisa que se faz com um paciente que tem um diagnóstico de câncer, por exemplo, é ver as reais possibilidades de cura e mostrar-lhe isso, sem nenhuma adulação ou mentira. Identificar todo e qualquer traço depressivo e corrigi-lo com medicação. Digo isto porque, nesses casos, a depressão é inevitável e nem sempre temos tempo útil para trabalhar uma depressão com psicoterapia. Aqui, tempo é um material absolutamente precioso. Tomada esta providencia, começa-se um trabalho de ajudar o paciente a criar objetivos (realistas) futuros que possam estimula-lo a restabelecer uma liga com a vida.

Como nosso assunto é o medo, não se pode esquecer que a comunicação da existência de uma doença fatal como câncer e AIDS, por exemplo, são indicações de que o indivíduo falhou em sua missão de livrar-se da morte. Se ela, a morte, é o que o homem mais teme, a percepção do naufrágio é inevitável e então, todas as angústias cuidadosamente mantidas sobre controle, começam a flutuar na mente. O medo ataca com violência jamais vista. É necessário retomar os vínculos com a vida. A experiência mostra que alguns pacientes melhoram consideravelmente. Não estou falando de cura, mas de retardar a doença e a morte. Mas penso que mesmo a cura seria possível se o medo permitisse que as pessoas acreditassem. Mas é difícil, muito difícil. Muitos pacientes conseguem retardar a progressão da doença. A ciência hoje tem um papel semelhante ao da igreja na Idade Média. Ela estabelece que uma doença é fatal e isto, faz com que as pessoas acreditem e se aterrorizem. Essa crença, condicionada pelo medo, torna impossível qualquer crença na cura. A sentença inexorável da morte elimina a possibilidade da esperança.

Lembro-me de um rapaz cujo apelido era Cadu. Era portador de HIV numa época em que nem se sonhava com o coquetel de drogas atual. Esse homem, de forma surpreendente conseguiu viver dois anos com o sistema imunológico completamente destruído, sem, no entanto apresentar nenhuma doença oportunista. A contagem de suas células de defesa era 12 quando o normal é 800/1200. Cadu foi tratado da depressão e estimulado a criar objetivos futuros. É evidente que mantínhamos um controle rígido sobre suas dificuldades emocionais e stress. Mas a dispensa do trabalho por questões de preconceito seguido de uma desilusão amorosa foi mais forte que nossos esforços.

Mas isto nos dá uma idéia do poder que o medo tem na vida do homem. No que diz respeito à morte, não podemos esquecer que o homem sente uma grande fome de imortalidade. É impossível fugir da morte e também é impossível suporta-la porque é a passagem do ser para o não ser, o nada. Note-se que isso é tão insuportável que as pessoas, quando se sentem desvalorizadas procuram ser algo que não são, mas nunca optam por não ser. Para ser exato, o estado de não ser é uma impossibilidade porque sequer podemos imaginar como é. Entretanto, quando o indivíduo busca o suicídio, ele faz a opção pelo não ser. Ligado ao medo da morte está o medo das doenças. Aqui o homem tem um perigo que pode aproxima-lo da morte ou deixar-lo inválido e ainda, aproxima-lo da dor, outra fonte perene de medo.

A morte nem sempre causou tanto horror aos homens. Mas de alguma forma eles tentavam lidar com ela através de rituais. O morto fazia parte da vida. Na Grécia antiga, os fantasmas dos recém mortos, tinham direito a três dias de presença na cidade. Se o morto era suicida, cortava-lhe a mão direita. O suicídio era considerado uma manifestação de ódio em relação à vida e aos vivos. Na África mutilavam-se os cadáveres dos mortos para que eles não mais voltassem. Na Nova Guiné os viúvos não saiam de casa sem um cassetete para defender-se do fantasma da falecida. Na Renascença, quando o morto era suicida, faziam-no sair pela janela, com a face contra a terra, como um animal. É curioso que nos tempos da Roma antiga, os mortos eram temidos e daí se realizarem sacrifícios para impedir que retornassem à vida. No século V os mortos passaram a ser enterrados em volta das igrejas. O cemitério era um centro de vida social, era uma espécie de praça pública onde aconteciam encontros amorosos, enforcamentos e feiras.

É a partir do século XV que se faz uma grande revolução nos costumes humanos. Surge a espinha dorsal do que vai ser mais tarde o capitalismo. Na idade média o homem conheceu dificuldades e privações, mas isso era atenuado e compensado pelas relações de fraternidade e solidariedade.Era costume nas sociedades medievais que as pessoas dormissem em grande número no mesmo leito e mesmo para sair, raramente o faziam sozinhos. A pouca riqueza que havia era redistribuída. Na Renascença isso muda completamente. Demoliu-se a estrutura social medieval e aparece o indivíduo na acepção que se tem hoje. Na Renascença surge o individualismo e por coincidência, surge também a noção de individualidade da alma, ou seja, a alma e o corpo são separados. A alma começa a ser preparada para seu instante culminante – a morte. É nesse período que o homem começa a distanciar-se da morte. Dessa forma, os fantasmas e os espíritos, me parecem, são uma forma de evitar o corte nítido entre a vida e a morte. Já no século XVIII a morte e os mortos passam a ser vistos com indiferença e começam a ser enterrados fora da cidade. Observe-se que o progresso e a morte têm algumas incompatibilidades. No século XVI o medo de ser enterrado vivo ganhou proporções incríveis. Surge uma nova forma de lidar com a morte: o medo. Digo que surge uma nova forma porque, antes desse período, a morte fazia parte do cotidiano do homem e não era tão temida. Há um grande medo na morte que só fará aumentar com o passar dos anos.

O MEDO DO OUTRO

Outro grande risco é o medo imaginário que cria a supertição. Curiosamente, esse tipo de medo, não é privativo de pessoas menos privilegiadas intelectual e culturalmente. É o tipo de medo contagioso, pois a reação fobígena se produz pela simples percepção da conclusão medrosa do outro ou de uma autoridade. Tais medos conduziram os homens a comportamentos aberrantes, suicidas ou genocidas.

Durante a idade média, milhares de pessoas morreram por causa do medo que existe por trás das supertições. Qualquer pessoa que dominasse o poder de lidar com ervas e cura, também estava sujeita a ser considerada como detendo o poder de destruir. Esses eram os escolhidos para ocupar o lugar nas fogueiras que reduziam à cinza os "bruxos". Quando as pestes assolavam as cidades e destruíam milhares de vidas, as pessoas e autoridades tentavam reconduzir o inexplicável. A epidemia era um castigo e então, era necessário encontrar os culpados. Os culpados eram sempre os diferentes, os estrangeiros. Na verdade alguém ou algum grupo que fosse acusado inconscientemente dos pecados da comunidade. Assim, em 1348 e 1350, numa cidade da França, os leprosos foram os culpados de terem espalhado a Peste Negra. Foram mortos e expulsos das cidades. Os judeus, em vários lugares da Europa, foram perseguidos e mortos ao serem responsabilizados pelo surgimento da peste.Esse tipo de ataque aos judeus, repetiu-se inúmeras vezes no decorrer da Idade Média Eles eram acusados de terem envenenado os poços e nascentes dos rios. Eram também acusados de terem pacto com satã e de feitiçaria. Mas os judeus, apesar de serem os mais freqüentes bodes expiatórios, não eram os únicos. Os culpados eram, de preferência, estrangeiros. Na Rússia, culpavam-se os Tártaros. Os ingleses acusavam os Holandeses. Os turcos cristãos de Chipre massacravam os muçulmanos.

Numa escala menor temos o medo imaginário atuando de outra forma. Um fato curioso e que mostra a intensidade do medo dos homens na idade média é o que se chamava de "nó de agulheta". Esse era o nome dado a algum tipo de feitiçaria que se fazia para que um casal ficasse impossibilitado de ter vida sexual pela impotência do homem. O feiticeiro ou feiticeira poderiam tornar os noivos estéreis. Isso ocorria dando-se um nó num cordão durante a cerimônia de casamento e pronunciando-se algumas fórmulas mágicas e às vezes, lançando-se uma moeda atrás do ombro. Dessa forma acreditava-se que os feiticeiros poderiam impedir a "ereção do membro e o fluxo das essências vitais" para a procriação. A coisa chegava a tal ponto que muitos casais procuravam aldeias vizinhas para se casarem. Outros se casavam às escondidas na calada da noite para evitarem as pragas dos feiticeiros. O que ninguém pensava é que, a igreja, com a repressão à sexualidade, colocava tanta culpa nas pessoas que estas ficavam cheias de medo ao praticarem o ato sexual. Era inevitável, diante disso, que a incidência de impotência fosse maior.

Para se ter uma idéia do que se pensava sobre a sexualidade, a igreja dizia que Deus permitia essas pragas contra o ato sexual justamente porque este era o pecado que gerava homens com o pecado original. Durma-se com um barulho destes.

Outra curiosidade que enlouquecia o homem da idade média era sua relação com os Santos. Descontentar o diabo causava tantos problemas quanto descontentar santos. Então um homem que descontentasse Santo Antônio, por exemplo, poderia sofrer queimaduras graves já que este era o santo do fogo. Havia um santo que era responsável pelas hemorróidas. Era um tal de Sant Fiacre. Conta-se que o rei Henrique V da Inglaterra, após ter devastado o mosteiro desse santo, foi atingido pelo mal de Saint Fiacre, descrito como um "violento fluxo de ventre, com hemorróidas". Segundo historiadores, Henrique V, morreu desse mal após cruéis sofrimentos.

MEDO E PECADO:
A FORÇA DE SATÃ

A igreja Católica descobriu o Superego muito antes de Freud e, através dele, firmou seu poder sobre os homens. São Jerônimo, no século IV, disse: "que tomasse uma esposa todo homem que não consegue dormir sozinho porque sente medo à noite". Naquele período os padres, por serem os únicos que escreviam e liam e, portanto detinham o monopólio do conhecimento, chegaram ao cúmulo de questionar a palavra divina alegando que Deus deveria ter inventado um modo melhor de resolver o problema da procriação (?). Segundo a reconstrução de Agostinho, o homem e a mulher feitos por Deus eram criaturas mentais a principio, com absoluto controle de seus corpos. Este estudioso acreditava ainda que a culpa da transgressão original, transmitida pela herdada concupiscência de Adão e Eva, persistia ainda na humanidade, tornando o homem dependente dos órgãos sexuais, a natureza intratável do ato sexual e a vergonha suscitada pelo ato do coito. Todo o ato de coito executado pela humanidade subseqüente à queda de Adão e Eva era necessariamente mau e assim, toda criança nascia em pecado.

Vejamos que o pecado era inerente ao homem e, dessa forma, Satã acabava por fazer parte do ser. Então o homem , como temia o fogo do inferno, tinha que usar a vida para expiar seu pecado. A partir daí só podia mesmo ter a esperança de vive-la num paraíso criado pela igreja já que aqui, em sua passagem pela terra, isso seria impossível. A sexualidade é inerente ao homem e à vida. Aldous Huxley disse no início desse século: "Não seria a terra o inferno de algum outro planeta?".

Curiosamente, apesar de muito se falar em demônios e diabos, é na Renascença que o medo em relação ao príncipe das trevas aumenta de forma assustadora. Temos que considerar que na Renascença o monopólio do conhecimento já não é mais dos padres e bispos. Dessa forma, algumas coisas mudam. A Renascença herdou as idéias e imagens demoníacas da Idade Média, mas deu-lhes coerência, relevo e difusão jamais atingidos anteriormente. O anjo decaído com unhas recurvas, olhos vermelhos, cabelos e asas de fogo, induz o homem a pecar. Essa passagem é marcada pela Divina Comédia, cujo autor, Dante, morreu em 1321. Trata-se de uma obsessão da qual a iconografia que chega até nós, demonstra um alucinante conjunto de imagens infernais e um sem número de relatos sobre as armadilhas e tentações que o demônio inventa para tornar perdida a alma humana. Hieronymus Bosch demonstra em suas telas os pesadelos infernais em sua maior violência.

"O jardim das delícias", desse pintor retrata um paraíso terrestre. Na fonte da juventude brincam belas mulheres entre flores, frutas e cores. Sob uma esfera de cristal dois apaixonados se acariciam. À direita um homem nu mergulha no abismo. O motivo é claro, não pode ser outro, a ilusão de satã. Jardim das Delícias (detalhe) - H. BoschO que me parece é que, antes do cristianismo, ou mais exatamente, antes da igreja católica, a sexualidade era encarada de forma relativamente normal. Todas as formas de sexualidade eram inclusas no repertório sexual dos grupos sociais ocidentais. Entretanto, com o estabelecimento da igreja, muda o panorama. É necessário controlar os homens. Não existe outro meio de faze-lo. A sexualidade é a única forma de faze-lo e, portanto, é por esse caminho que vão os padres. Dessa forma a mulher passa a ser vista como um ser integralmente impuro. O homem é puro da cintura para cima e impuro da cintura para baixo. Ambos são criação de Satanás. Para se ter uma idéia da dimensão desse problema da igreja com a sexualidade, o casamento como o sacramento, só foi oferecido pela igreja, a partir do século XI ou XIII. Antes disso era visto como um "mal necessário". Em geral a igreja via o casamento como uma série de concessões à fraqueza humana – necessidade de companheirismo, sexo e filhos – mas fazia o possível para sabotar os três. A discussão sobre o casamento e sua utilidade, durou do século VII ao século XII e culminou com o consentimento do casamento e não do coito. O casamento conferia a indulgência do intercurso sexual (não o dever), um direito que só existia dentro do casamento.

Convém lembrar que a igreja, apesar de não aprovar o casamento, não vacilava em enviar damas cristãs de bom nascimento a outros países para que se casassem com líderes estrangeiros e os convertessem. Isso ocorria já no século VI. Era curioso que outras sociedades aventuravam-se a sugerir freqüências convenientes para o intercurso conjugal. Todas essas sociedades, não cristãs, sugeriram números coerentes, mas a igreja católica dizia: Nunca, a menos que se desejasse ter um filho. Como controlar o incontrolável?

A meu ver, essa repressão total da sexualidade fez criar nas pessoas uma sensação de que alguma coisa muito ruim, uma espécie de demônio, habitava seu corpo. Isso é claro na medida em que, nenhum de nós, está livre do desejo sexual. A natureza é prodigiosa e não deu ao homem nenhuma opção. Não escolhemos ter filhos, a natureza faz com que macho e fêmea se unam e copulem para que isso ocorra. O desejo sexual tam essa função. Como o homem não conseguia livrar-se do desejo sexual, ficava "com o demônio no couro", como se costuma dizer em linguagem popular. Hoje sabemos que muitas pessoas têm medo de seus impulsos sexuais. Há medo de toda a espécie de impulsos.

AS VÁRIAS FACES DO MEDO:
MEDO DO DESEJO E MEDO DA VIDA

A emergência da modernidade na Europa Ocidental com os progressos e mudança de hábitos e controle já bem estabelecido da igreja, só tende a acentuar esse demônio dentro do homem. Então é nessa época que há também um recrudescimento da sexualidade, talvez um pouco menos oprimida que na idade média. Assim, os sábios religiosos discutem o mundo em seu ocaso e o seu declínio por causa da malícia dos homens. Aumentado o desejo (e atividade) sexual é evidente, aumenta a virulência de Satã e leva o mundo à catástrofe final. É nesse período que surge Martinho Lutero. É para lutar com Satã que Luttero funda a sua igreja que faz frente à igreja católica.

Luttero dizia: "Somos prisioneiros do Diabo". "Somos corpos sujeitos ao diabo, estrangeiros, hóspedes, no mundo no qual o diabo é o príncipe e o Deus. O pão que comemos, a bebida que bebemos, as roupas que usamos, ainda mais o ar que respiramos e tudo o que pertence à nossa vida da carne é, portanto seu império". Não é necessário esclarecer que se fala de "boa sexualidade".

A bem da verdade, o homem sempre teve seu comportamento condicionado pelo medo. O medo mais forte, entretanto é o medo do que não se vê. Contra esse medo não há argumentos e nem atitude lógica possível. Quando nos dizem: "Olha, alguém fez um trabalho para fechar seus caminhos", podemos dizer que não acreditamos nisso na hora. Mas logo que algo de ruim acontece conosco, ficamos temerosos de que aquilo seja verdade. Há muitas coisas que se teme e isso, leva nossa imaginação a criar centenas de outros medos.

Teme-se o futuro, teme-se o olhar maldoso e invejoso, teme-se as pragas que podem nos rogar, teme-se os fantasmas, o julgamento do juízo final etc. Há muitas coisas que nos causam medos. Vejamos alguns dos agentes do medo: A dor é sempre relacionada ao sofrimento. É um dos grandes temores humanos. Ainda nessa área temos o sofrimento moral, também causador de grande pavor no homem. Muitas pessoas evitam envolver-se porque temem a dor moral, o sofrimento do amor. A isto cabe apenas dizer: Quem renuncia a amar por temer o sofrimento que isso possa lhe causar, não é apenas um covarde: é um automutilador mental.

Tememos a morte e também, tememos a vida. Quando recorremos a adivinhos, estamos falando do quanto tememos a vida, o quanto estamos inseguros com relação ao que virá no amanhã. Mas como precisamos nos apropriar do futuro, procuramos adivinhos para nos garantir que ele será bom. Outro grande temor do homem é a solidão. Aquelas pessoas rígidas e sistemáticas, que anulam sua espontaneidade e sua impreditibilidade, são do tipo que temem a vida. Tememos nossos sentimentos e emoções, tememos a solidão, as guerras, a instabilidade do tempo etc.

Por fim vamos ver rapidamente algumas das camuflagens do medo. O medo tem múltiplos disfarces e assim, apresenta-se dissimulado. Uma delas é a timidez, já discutida no inicio desse texto. Outra é a escrupulosidade. O indivíduo escrupuloso não só é medroso como, também agressivo. Tem uma grande ânsia por perfeição, mas nunca consegue realiza-la na prática. A seguir temos o pessimista que é um covarde que procura justificar-se com supostas razões. É um indivíduo que exibe seu medo camuflado, pois, busca a alegria, mas falta-lhe coragem para conquista-la. O cético é um intimo parente do medo. É o tipo que se vangloria por estar sempre avisado. Estão desenganados com tudo e por tudo. O cético é na verdade um paranóico. Esse tipo, costuma dizer: Eu estou sempre esperando pelo pior. Se algo de bom acontece, então é lucro". O entediado é um medroso que sente a invasão paralisante do medo e, para defender-se dela, recorre a mil estratagemas: corre de um lado para o outro, fuma, assovia, fala em voz alta. A vaidade é outra máscara do medo. Este sempre está a firmar que tem coisas melhores ou vale mais que os outros. No fundo, sabemos, se tem necessidade de afirmar com tanta freqüência, é porque não acredita nisso. Uma outra máscara do medo é a hipocrisia. O hipócrita tem uma linha de raciocínio curiosa: usa a hipocrisia como conduta para ganhar a confiança daqueles que o cercam e a quem temem. Acontece que odeiam aqueles a quem temem. Ocorre que por usarem este tipo de artifício, um remédio pior que a própria doença, vivem em permanente angústia. A hipocrisia demonstra não só pobreza de espírito, mas um grande medo que mantém o hipócrita atado aos demais. A mentira é uma outra máscara do medo. Ela é antes, a arma predileta do hipócrita. Mas o mentiroso é alguém que sofre de medo constante, pois, não acredita que pode ser aceito pelo que é ou tem. Então mente para parecer melhor. É um onipotente porque julga quem deve receber verdades e quem não pode suporta-las.

Vimos que o medo é uma emoção que acompanhou sempre o homem e interferiu em sua conduta tanto no sentido bom quanto também nas inclinações ruins. O medo exagerado é uma doença e precisa ser tratado pois, o medroso, ou fobico, é uma pessoa em constante estado de stress e sofrimento. Seu julgamento da realidade está sempre prejudicado e sua evolução na vida está truncada.

Indicações Bibliográficas dos textos TIMIDEZ e MEDO

"A Negação da Morte", Ernest Becker, Nova Fronteira, 1976.
Neste livro, o autor escreve sobre a luta e o medo da Morte, condição intrínseca do humano. O tema é dissertado no combate a esse medo, centrando-se no Heroísmo como ato narcisico. Faz uma revisão critica de teorias psicológicas e psicanalítica e as interage utilizando dos teóricos Freud, Kierkegarrd e Otto Rank. Discute ainda a interligação da psicologia com o conhecimento mítico-religioso.

"Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos", Georges Duby, Editora Unesp, 1998.
O autor faz uma revisão histórico e social da Idade Média, em relação aos ao Medos contemporâneos. Feito em cinco capítulos onde fala da Miséria, Medo do Outro, das Epidemias, da Violência e do Além.

"O Medo à Liberdade", Erich Fromm, Zahar Editores, 1978.
O autor faz uma revisão critica do medo da liberdade traçando um painel do Capitalismo desde do Renascimento até a modernidade.

"Quatro Gigantes da Alma", Mira y Lopez, José Olímpio Editora, 1988.
O Prof. Mira y Lopes, numa análise corajosa e desassombrada. Nos fornece um livro essencialmente prático. Numa linguagem pitoresca nos fala dos quatros Gigantes da alma: O Medo; A Ira; O Amor; e O Dever.

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