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Metafísica e Psicologia Científica

Depois do positivismo lógico a relação entre metafísica e ciência tornou-se bastante controvertida. Na psicologia científica não foi diferente: sob a influência do positivismo lógico, o Behaviorismo do final da década de 1930 defendia explicitamente a impossibilidade de um estudo científico de eventos e processos mentais. Esses conceitos mentais deveriam ser considerados metafísicos, o que legitimava seu abandono por parte da psicologia científica.
É claro que o próprio Behaviorismo sofreu modificações, até que na sua versão radical (de B. F. Skinner) defendeu, finalmente, a possibilidade de um estudo científico de eventos privados. Mas discutir a história do Behaviorismo não é o objetivo deste texto. Quero propor, aqui, uma discussão mais ampla, sobre a relação entre metafísica e ciência psicológica. Em outras palavras, quero examinar a herança positivista lógica na psicologia, avaliando se toda e qualquer metafísica pode, e deve, ser abandonada para a construção de um conhecimento psicológico legitimamente científico.

Um primeiro esclarecimento que deve ser feito diz respeito ao próprio termo ‘metafísica'. Embora a história da filosofia situe a origem do termo ‘metafísica' na classificação das obras de Aristóteles, as filosofias moderna e contemporânea empregaram esse conceito de muitas outras maneiras.

Felizmente, o objetivo deste texto não exige uma análise de cada emprego do termo ‘metafísica' nas diferentes tradições filosóficas, o que, aliás, seria uma tarefa praticamente impossível. A proposta defendida, aqui, pauta-se em uma análise do positivismo lógico, mais especificamente de sua tese que sustenta um projeto de ciência antimetafísica. Portanto, perseguirei no decorrer deste texto o conceito de ‘metafísica' tal como é empregado pelo positivismo lógico.

Geralmente, os positivistas lógicos empregam o termo ‘metafísica' para classificar enunciados sobre fatos que não podem ser julgados do ponto de vista empírico. Em outras palavras, um enunciado deve ser considerado metafísico se através da observação não é possível decidir por sua verdade ou falsidade. Por conta dessa impossibilidade, os positivistas lógicos consideram que os enunciados metafísicos são ‘sem-sentido' (non-sense), o que legitimaria sua exclusão do campo científico.

Na psicologia científica o projeto antimetafísico aparece de um modo mais evidente em relação ao chamado ‘conteúdo mental'; ou seja, a tudo aquilo que só pode ser observado por introspecção. Como nesse caso, pelo menos uma única pessoa pode observar os fatos descritos pelo enunciado, é preciso um novo critério para excluí-lo do discurso científico. Esse critério, também prescrito pelo positivismo lógico, é a ‘verdade por consenso'. Dessa forma, para que um enunciado possa ser considerado verdadeiro, não basta que os fatos descritos por ele possam ser observados; é preciso que tais fatos possam ser observados por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Obviamente, o ‘conteúdo mental' não é capaz de satisfazer esse critério, devendo, portanto, ser abandonado pela psicologia científica.

O que merece ser ressaltado, aqui, é que o projeto de ciência positivista lógica está atrelado à crença de que a observação dos fatos objetivos não tem qualquer influência sobre eles. Em outras palavras, acredita-se que há um mundo externo imutável que pode ser objetivamente apreendido pela experiência. Nesse caso, a percepção (observação) é um processo passivo de modo que diante do mundo só é possível um tipo de opinião (a verdade). Isso conduz à defesa de que toda e qualquer teoria científica deve contemplar a observação (de mais de um observador ao mesmo tempo) como juiz para suas afirmações. Empregando termos mais técnicos, é possível dizer que o projeto de ciência antimetafísica do positivismo lógico tem em sua raiz o empirismo.

Nesse ponto, encontramos uma situação interessante. O empirismo, que está por detrás do projeto de ciência antimetafísica, pode ser classificado como um enunciado metafísico (no sentido defendido pelo próprio positivismo). Isso porque o valor de verdade do empirismo não pode ser decidido através da observação objetiva. Desse fato inusitado, podemos extrair a conclusão de que a defesa de um projeto antimetafísico (nos moldes do positivismo lógico), se levada às suas últimas conseqüências, exclui o próprio positivismo lógico. Logo, tal projeto é contraditório.

Abandonando a prescrição antimetafísica do positivismo lógico, podemos analisar a relação entre metafísica e ciência em termos de teoria e fato. Se defendermos que o fato é anterior à teoria, nos filiaremos ao realismo, e o fato tornar-se-á o árbitro para qualquer teoria (não existe teoria sem fato, mas pode existir fato sem teoria). Por outro lado, se defendermos que a teoria é anterior ao fato, nos filiaremos ao idealismo, e o fato passará a ser considerado como uma construção da teoria (não existe fato sem teoria, mas pode existir teoria sem fato). Por fim, pode haver uma última possibilidade (que particularmente considero como a mais adequada para a construção de uma ciência psicológica). Podemos partir da relação entre fato e teoria, nos filiando, assim, ao relacionismo: não existe fato sem teoria, assim como também não existe teoria sem fato. O que existe é uma relação.

Do ponto de vista do relacionismo, a metafísica (teoria) participa desde o início da construção do conhecimento científico. Assim, uma teoria psicológica é ao mesmo tempo construção e observação, de modo que não há uma observação pura de fatos, mas também não há uma teoria totalmente desvinculada do conteúdo factual.

Com isso, a correspondência com os fatos já não pode mais ser um critério para validação de uma teoria. No entanto, há outros critérios, que devem ser estabelecidos de antemão. Falar de cada um desses critérios é assunto para uma outra coluna, bastando para o presente propósito dizer que, na medida em que existem critérios para avaliação das teorias, o relacionismo não pode ser considerado como um relativismo.

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