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A substituição do consumo da droga, pelo consumo da “pessoa-droga” (Parte-I)

Não se faz necessário dizer, da importância cada vez maior que a temática das drogas vem assumindo na contemporaneidade. A mídia tem se ocupado cada vez mais do tema, os políticos tentam votar e legislar a respeito, a direção das escolas, extremamente preocupadas com o assunto, chegam a oferecer aos seus alunos, palestras com policiais militares, no sentido de prestar um esclarecimento e poder advertir os alunos sobre os malefícios desta prática.

Vários debates contando com profissionais das mais diversas áreas são promovidos no sentido de se tentar chegar à descoberta de mecanismos que possam, senão debelar, pelo menos conter o crescente avanço dessa prática que acaba dizimando muitos jovens e também não jovens pelo mundo afora.

Existe a proposta da liberação, no sentido de se coibir a ação dos traficantes, proposta essa que embora muito discutida, parece que não consegue se viabilizar. Por que será?

Muito bem, debates já existem muitos a esse respeito, sendo que o objetivo desse texto é trabalhar os aspectos individuais e não coletivos que, muitas vezes, se devidamente equacionados, talvez tornassem grande parte dos debates inoperantes e estéreis em algo produtivo.

Sou psicanalista em São Paulo, há vinte e cinco anos, trabalhando com psicanálise, individual de adolescentes e adultos. Nesse período, tive o privilégio de atender vários casos de dependência química, não só das drogas, consideradas ilícitas, bem como de alcoolismo.

Quero ressaltar que, a meu ver, torna-se condição imprescindível para que o nosso trabalho ocorra dentro de limites de segurança, que possamos contar sempre com uma retaguarda psiquiátrica, no caso de se fazer necessário uma internação, ou mesmo de nos depararmos com a possibilidade, aliás, bastante grande de uma overdose, para a qual seremos chamados pelos parentes do paciente, tornando-se necessário, então a participação do médico psiquiatra para as devidas providências.

Bem, ao me propor a escrever sobre esse tema, fui tomado pela lembrança de uma paciente que atendi há muitos anos. Era uma moça de uns trinta e poucos anos que ao adentrar no meu consultório, tive a nítida sensação de estar diante de um robô, sobretudo pela mímica gestual com que se apresentava.

Fora-me indicada por um psiquiatra, o qual optou por não atendê-la, uma vez que já atendia um parente da paciente. Senta-se frente a frente comigo e vai logo me dizendo que eu sou sua última esperança, uma vez que já tinha passado por neurologistas, psiquiatras, psicoterapeutas e, segundo ela, continuava a se sentir muito mal.

Quando lhe pergunto se tomava alguma medicação, o que para mim parecia óbvio, me responde que estava tomando de seis a sete medicações diferentes. Entre elas, pude identificar: antidepressivo, ansiolítico, neuroléptico, estabilizador de humor, etc.

Era notório que estava sob efeito de um grau muito elevado de impregnação medicamentosa. Quem havia lhe receitado o tal mix medicamentoso, foi um psiquiatra, o qual logo após lhe encaminhou para que ela fosse atendida, em psicoterapia, pelo seu filho que era psicólogo na mesma clínica.

Quando me procurou, fazia alguns dias que havia encerrado o processo terapêutico, bem como o acompanhamento medicamentoso. Na ocasião, minha primeira preocupação era a de que fosse revista a sua medicação, a qual me parecia exagerada e com alto nível de impregnação. Recorri ao psiquiatra que a havia me indicado, o qual aceitou vê-la a meu pedido. Resultado: das sete medicações, foram retiradas cinco, ficando a paciente com o antidepressivo e o ansiolítico.

Depois de alguns dias, o nível de impregnação já havia diminuído consideravelmente, o que tornava a nossa comunicação mais factível. Felizmente aceitou vir duas vezes por semana, o que, pela gravidade do caso, era o mínimo possível.

Era bancária e trabalhava num andar bastante elevado de um prédio, o que para ela era um grande sofrimento, uma vez que ao ver as janelas abertas, tinha a sensação de que ora ou outra pularia de lá.

Não atravessava pontes e nem viadutos pela mesma razão, ou seja, tinha a nítida sensação de que pularia de lá. Contou também que não fazia muito tempo, tinha passado pelo término de um noivado que contava seis anos.Tinha sido uma relação muito tumultuada, na qual ela sofrera por várias vezes, agressões físicas, além de ser ameaçada de morte a cada vez que mencionava a possibilidade de romper o noivado.

Depois de certo tempo transcorrido de sua análise, conta que seu ex-noivo era drogado e muito violento, mas que ela achou que poderia tirá-lo das drogas, estando em sua companhia. Nesta sessão e, nesse momento, me lembro de ter lhe dito, que sua auto-estima era tão baixa, que ela tinha uma visão tão empobrecida de si mesma que achou, em sua fantasia, que o ex-noivo poderia substituir a droga, por ela, porém na posição de "outra droga".

Essa interpretação parece ter surtido o efeito esperado por mim, uma vez que a partir daí, parece ter-se aberto "a porta" por onde pudéssemos entrar e resgatar, desde a infância, a sucessão de situações, nas quais tinha se sentido como uma "droga", inclusive perante a avaliação da própria mãe que não perdia uma oportunidade sequer de desvalorizá-la.

Morava com a mãe, uma tia solteira e a avó bastante idosa. Parecia que essas pessoas que a cercavam, funcionavam como um pólo de atração para puxá-la para que vivesse uma vida de uma velha entre outras velhas.

Quando teve que interromper seu processo de análise comigo, por conta de uma transferência de endereço de trabalho, já tinha comprado um carro e saía aos finais de semana, passando tranqüilamente por pontes e viadutos. As janelas, de onde freqüentemente achava que pularia, já não lhe incomodavam mais.

Enfim, o que quero ressaltar é que aqui, embora não fosse minha paciente a drogada, se via colocada de uma forma bastante cristalizada na posição da droga.

Para mantermos um rigor técnico, diríamos mais propriamente, que se colocava como que fazendo parte de uma equação simbólica, onde ela e a droga encontravam-se no mesmo patamar de importância ou melhor, de falta de importância. Aqui temos um terreno bastante fértil, a meu ver, para que, como uma outra alternativa possível, a paciente pudesse se envolver com o consumo de drogas ela mesma e, só não o fez, por já considerar-se uma droga mais do que suficiente para ser consumida.

Esses são os aspectos que estão, a meu ver, aquém das discussões acadêmicas, políticas e sociais sobre a temática das drogas.


Bibliografia
 

Gurfinkel, Décio A Pulsão e seu objeto-droga.

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