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Anotações sobre a ansiedade pânica – parte II

(continuação)

Quando se trata de ansiedade, os clínicos aceitam o conceito de uma síndrome comportamental complexa que tem raízes em uma simples disfunção emocional.

O fato de que o mesmo não acontecesse em relação à sensibilidade à rejeição e sua evolução em uma personalidade histérica talvez se deva, como tudo o mais, à ausência da droga certa para agir como um popularizador, do modo como o Frontal popularizou a síndrome do pânico. Enquanto os IMAO permanecessem a droga escolhida para "lançar um chão" sob os pacientes sensíveis à rejeição, era improvável que o conceito de disforia histeróide fosse assimilado.

Pacientes que comem ou bebem os alimentos errados podem ter derrames ou morrer com os IMAO. Poucos médicos esta­riam dispostos a colocar uma mulher espalhafatosa, centrada em si mesma, propensa a breves depressões catastróficas, sob um remédio que lhe permitiria cometer suicídio com um ou dois copos de vinho Chianti ou um pedaço de queijo curado. Uma linha de pensamento semelhante inibiu o difundido uso de medicação em pacientes "histeróides" menos perturbados. Além disso, os pacientes histriô­nicos mais saudáveis eram considerados os mais receptivos à psico­terapia. Durante quarenta anos, a formulação de Klein de disforia histeróide permaneceu um estimulante conceito sem aplicação ampla.

Os Inibidores Seletivos da Recaptura de Serotonina, os ISRS (Prozac, Aropax, Zoloft, Cipramil, Lexapro etc.) mudaram todo o cenário. Com relação à disforia histeróide, eles podem estar para os IMAO o que, no caso da síndrome do pânico, o Frontal foi para a imipramina.

Essa afirmação pode parecer estranha. Os IMAO afetam muitos sistemas transmissores, ao passo que os ISRS afetam principalmente sistemas neurais que usam serotonina. Entretanto, evidências convergentes de diferentes espécies sugerem que os ISRS têm muito em comum com os IMAO.

Uma experiência, realizada por um grupo em Vale, é tão simples e elegante que surpreende não ter sido feita há muito tempo com os primeiros antidepressivos. Baseia-se em uma antiga tecnologia usada pelos cientistas que estudavam as necessidades dietéticas humanas: Além das vitaminas, precisamos de aminoácidos – "os tijolos que constroem as proteínas" – em nossa dieta. Alguns aminoácidos o corpo pode fabricar, mas outros são "essenciais", isto é, precisamos comer alimentos que já os contenham. O L-triptofano é um aminoácido essencial e é a substância da qual o corpo fabrica a serotonina.

Ao testar a necessidade de aminoácidos em soldados do exército, os pesquisadores desenvolveram uma dieta pobre em triptofano, onde as proteínas eram fornecidas por alimentos como a gelatina, que não contém L-triptofano. Os pesquisadores deram como nutriente aos soldados uma bebida feita de aminoácidos, mas omitindo o L-triptofano. O súbito fornecimento de aminoácidos induz o corpo a fabricar proteínas, assim privando-o do pouco de triptofano existente. Esta bebida de aminoácidos isenta de triptofano resulta, porém em rápida depleção de serotonina no cérebro. Em pessoas normais, os resultados desta estafa dietética não são dramáticos, embora algumas pessoas possam se sentir cansadas, irritáveis ou melancólicas.

Os pesquisadores da Yale University aplicaram a velha tecnologia a pacientes que estiveram deprimidos, recuperaram-se recentemente com antidepressivos e ainda estavam tomando a medicação. Os resultados foram surpreendentes. Pacientes que haviam se recuperado com um ISRS, tornaram-se deprimidos poucas horas após tomar a bebida de aminoácidos, e exatamente do modo em que se encontravam antes de tomar o ISRS, com precisamente o mesmo conjunto de sintomas surgindo na mesma ordem. Com a volta a uma dieta normal, a depressão mais uma vez regrediu, no prazo de um dia. Este resultado faz sentido. Se o ISRS funciona mantendo níveis eficazes de serotonina, a sua depleção deveria resultar no retomo da depressão e a reintrodução deveria permitir que a droga mais uma vez surtisse efeito.

A mesma dieta foi aplicada a pacientes que haviam se recuperado de depressão com a desipramina (1º metabólito da imipramina), um antidepressivo tricíclico que afeta os caminhos da norepinefrina = noradrenalina (mas não da serotonina).

Na mesma situação de teste, os pacientes que haviam respondido a IMAO tiveram uma recaída dentro de algumas horas, exatamente como os pacientes tratados com ISRS, assumin­do todos os aspectos da síndrome depressiva da qual haviam se recuperado recentemente. Assim, embora os IMAO se­jam conhecidos por agirem em vários caminhos de neurotransmisso­res, parece que seu efeito em pacientes deprimidos depende da sero­tonina.

As pesquisas ao nível da célula apóiam esta conclusão. A maneira como as células serotoninérgicas responde a IMAO assemelha-se à resposta da depressão ao medicamento; células que usam a norepinefrina também respondem, mas as mudanças nos níveis de norepinefrina não parecem ocorrer ao mesmo tempo que as mu­danças de humor.

Ao nível da anatomia, os efeitos dos ISRS e dos IMAO também se assemelham. Os medicamentos psicoterapêuticos tendem a ser anatomicamente seletivos – afetam circuitos somente em algumas partes do cérebro, enquanto os medicamentos como a desipramina apresentam um padrão de ação local muito diferente.

A pesquisa celular, os estudos anatômicos das funções do cérebro e as experiências com a dieta, todos sugerem que os ISRS e os IMAO compartilham locais e mecanismos comuns de ação sobre a depressão. Existe também um trabalho indicando que os ISRS e os IMAO são eficazes em subgrupos similares de pacientes deprimidos. Pequenos estudos, primeiro na Inglaterra e mais recentemente na Universidade de Michigan, demonstram que os ISRS, como os IMAO, pode ser particularmente eficaz na depressão atípica, o tipo caracterizado pelo aumento de peso e sono excessivo.

Tais dados preliminares, assim como a experiência com os pacien­tes, levaram os médicos a suspeitar que os ISRS acabaram-se tornando uma alternativa clinicamente aceitável ao IMAO. Esta especulação se estende além da depressão típica até a questão de sensibilidade à rejeição e perda. O perfil de efeitos secundários rela­tivamente benignos dos ISRS é especialmente importante aqui se você pode "lançar um chão" sob pacientes emocionalmente instáveis – consistentemente poupar-lhes o terrível sofrimento e a perturbação que se seguem a uma perda – sem colocar sua saúde e segurança em risco, o conceito de sensibilidade à rejeição torna-se útil em termos práticos. Por causa da experiência com a síndrome do pânico, os psiquiatras sentem-se à vontade com a idéia de usar a medicação para afastar crises afetivas, na esperança de domar um problema mais complexo de comportamento e de auto-imagem. Assim, dentro da psiquiatria, a disponibilidade dos ISRS reacendeu o interesse em disforia histeróide.

Se toda a questão se resumisse à disforia histeróide, a especificidade e a potência dos ISRS teriam interesse restrito: afinal, a quantos indivíduos a descrição de Klein se aplica?

Da minha parte, não vejo muitos disfóricos histeróides. Nem, creio eu, os outros psiquiatras. Em parte, isto se deve a uma mudança de visão. Por causa das implicações pejorativas da histeria, preferimos ver os problemas dos pacientes em outros termos – depressão, ansiedade, síndromes de estresse pós-traumáti­co, personalidade múltipla, transtorno de personalidade fronteiriço. O diagnóstico que se seguiu à histeria, "transtorno de personalidade histriônica" raramente é usado.

Mas vejo pessoas que são altamente sensíveis à perda ou rejeição. Algumas possuem um estilo exuberante; muitos outros são controla­dos, discretos, sensatos, responsáveis.

Para compreender como a categoria ampla de sensibilidade à rejeição veio a ser representada por disforia histeróide, devemos retornar ao trabalho inicial de Donald Klein. Klein não estava meramente disse­cando diagnósticos, mas também querendo mostrar a origem biológica e não psicodinâmica, que reinava na época, deste quadro clínico. Como Klein curava com drogas em vez de interpretações, era mais difícil discernir que ele, como Freud, estava tão envolvido em teoria quanto em resultados clínicos. A imipramina (Tofranil) para o pânico e os IMAO (Parnate, Nardil, Niamid, Aurorix) para a disforia eram principal­mente casos experimentais para as descrições de causas psíquicas inerentes aos conceitos psicanalíticos de ansiedade e histeria. Esta focalização na teoria ajuda a explicar porque, entre todas as possíveis formas de sensibilidade à rejeição, Klein concentrou-se em disforia histeróide.

A pergunta é se o conceito precisa ser tão restrito? Por que deveriam todos os indivíduos emocionalmente vulneráveis se tornar disfórico-histeróides?

Klein tentou explicar porque as pessoas sensíveis à rejeição tornam-se "histeróides". Ele acredita, como muitos teóricos, que o apetite por aprovação social é um reforçador direto, ou um impulso inato, primordial, para os seres humanos. Para satisfazer tal impulso, tanto meninos quanto meninas aprendem cedo na vida a usar habili­dades interpessoais valorizadas por suas famílias e pela sociedade em geral. Como a caracterização dos sexos começa cedo, e porque certas formas de sedução são valorizadas quer no sexo feminino, quer no masculino, os/as meninos/as podem ser atraídos para táticas sociais exibicionistas e sedutoras para merecer aprovação e admiração. A maioria aprende a usar habilidades sociais com eficácia e discrição. Mas um jovem com um leque maior de estados de espírito – satisfação ou sofrimento mais acentuados em resposta à atenção ou indiferença de outras pessoas ­pode se tornar demasiado treinado, um "viciado em aplausos". Este padrão será particularmente marcante no filho de pais narcisistas que negligenciam a criança, a menos que ela demonstre o tipo de desem­penho que exigem para seu próprio estímulo e gratificação.

A explicação de Klein pode ser vista como uma versão behavio­rista biológica do complexo de Édipo. A grande diferença é que na versão psicanalítica o trauma familiar é primordial – a competição pelo pai/mãe produz a instabilidade emocional, e, portanto, o mero trata­mento do humor não atingirá o alvo -, ao passo que na explicação de Klein "as táticas (…) e relacionamentos interpessoais são repercussões secundárias da dificuldade afetiva básica."

Trabalhando a partir de casos de patologias persistentes, Klein explicou plausivelmente como a histeria pode estar assentada em um distúrbio de humor. Mas a histeria seria o único resultado possível de sensibilidade à rejeição?

A metapsicologia de Klein mostra como a sensibilidade à rejeição pode causar histeria, mas não explica por que a histeria deveria ser a única conseqüência da instabilidade de humor. Certamente para cada pessoa sensível à rejeição que se transforma em uma caricatura de ser humano deve haver uma dúzia que se adapta e lida com o problema de outras formas.

Quando nos concentramos em sensibilidade à rejeição indepen­dente da histeria, vêm à mente todos os tipos de pessoas a quem o rótulo pode se aplicar. Há pessoas que alimentam seu vício de apro­vação através da competição no trabalho, e pessoas que reagem a necessidades não-satisfeitas com recolhimento, autocomiseração e excessiva cautela. Klein, em seus escritos acadêmicos, nunca foi além da batalha inicial com a psicanálise. Mas, a respeito de seu próprio desconforto com o difundido mau emprego de "histeria", Klein por duas vezes rebatizou sua síndrome, primeiro como "disforia exagera­da crônica" e depois como "disforia sensível à rejeição". Implicita­mente, estes novos rótulos diminuíam a ênfase nos traços histéricos e concentravam-se no estado interior subjacente – o regulador afetivo defeituoso. Na verdade, Klein escreveu que sua principal contri­buição nesta área não foi a identificação de um grupo de histéricos que respondem à medicação, mas ao contrário, o fato de chamar atenção para a resposta à perda como um fator crítico na formação da perso­nalidade, da auto-imagem, dos comportamentos habituais e comple­xos sintomáticos.

A sensibilidade à rejeição é um conceito complexo. Lembrando de nossos pacientes, podemos ver a característica de vidas extre­mamente controladas devido em parte à apreensão de que uma peque­na falha possa trazer sensações catastróficas de perda e de inadequação. Talvez a sensibilidade de uns à rejeição pareça mais diferente naqueles que evitam o risco, do que naqueles que buscam o estímulo, como os disfórico-histeróides de Donald Klein.

Como o pânico, a sensibilidade se tornará concre­ta, acredito eu, de modo que quando dissermos que uma pessoa é "sen­sível", estaremos dizendo que a pessoa que estamos discutindo sofre de um leve distúrbio biológico, que deve ser levado em conta na avaliação de seu comportamento e de suas opiniões. A capacidade dos fármacos de diminuir a sensibilidade à rejeição sugere que o modo como as pessoas reagem à perda é uma função do estado dos seus neurônios serotoninérgicos.

Quando pensarmos nisso – e acredito que um dos efeitos do medicamento é nos fazer pensar sobre ele -, encontraremos razões para que o ponto de estabilização para a sensibilidade seja regulado biologicamente. Somos uma espécie gregária. A idéia de que a depressão serve para manter a estabilidade social é antiga: a ameaça de depressão mantém os primatas unidos. Mas depressão aguda é um evento pouco freqüente. Parece muito mais provável que a união em pares seja mantida através de pequenas experiências de perda – ou seja, através da sensibilidade à rejeição.

O psiquiatra Ronald Winchel sugeriu até mesmo que as necessi­dades sociais dos primatas são constantemente estimuladas pelo que chama de "afeto de solidão", um sentimento disfórico que está presente, a menos que inibido pela associação a outros da espécie. Winchel sugere que as pessoas diferem na sensibilidade deste sistema à união bem-sucedida. Em algumas pessoas, a união é suficiente para eliminar o sentimento da solidão; outros continuam sempre famintos por mais afiliação e passam por muitos companheiros, tentando saciar uma fome insaciável. Winchel sugere que o neurotransmissor relevan­te neste sistema é a serotonina.

Por enquanto, basta dizer que um dos benefícios não-esperados do poder e da especificidade dos ISRS é sua capacidade de agir como um substituto aceitável dos IMAO. Esta função torna a disforia histeróide um diagnóstico viável e, mais amplamente, torna a sensibi­lidade à rejeição um fenômeno distinto que vale a pena procurar. A eficácia da medicação para a sensibilidade à rejeição torna interessante todo um corpo de literatura especulativa que enfatiza os suportes fisiológicos da natureza humana. O remédio igualmente afasta a aten­ção das causas da sensibilidade – quer inato ou adquirido, presume-se que o nível de sensibilidade de uma pessoa esteja codificado como um determinado estado neural – e a concentra nos efeitos do que hoje presume-se seja um traço funcionalmente autônomo.

A sensibilidade à rejeição não é um diagnóstico – nem uma doença, nem um transtorno de personalidade. É um traço de personalidade que desempenha papéis distintos mesmo nos poucos pacientes que conhe­cemos. Às vezes, ele parece ser o resultado de um trauma; outras vezes, a causa não é clara. A sensibilidade à rejeição é tanto uma manifestação de dificuldades quanto um agente patogênico, causando outras dificuldades próprias.

A sensibilidade à rejeição é o tipo de categoria que esperaríamos ver surgir em uma discussão de psicoterapia, como "narcisismo" ou "baixa auto-valorização". E este é exatamente o ponto: agora é possí­vel às vezes usar medicação para conseguir o que antes somente a psicoterapia conseguiria – alcançar o interior de uma pessoa e alterar um determinado elemento de personalidade. Ao decidir fazê-Io, o psicofarmacólogo deve confiar em habilidades que normalmente as­sociamos à psicoterapia.

O tratamento da sensibilidade à rejeição revela uma nova ruga na "psicofarmacologia cosmética". Uma coisa é um médico poder trans­formar um paciente com medicação, outra inteiramente distinta é o médico poder esculpir a personalidade do paciente traço a traço.

Lucy, uma estudante universitária com sua loucura por rapazes e que em criança descobrira o assassinato da mãe, continuava a sofrer de transtornos emocionais, apesar da psicoterapia. Durante uma época de transtornos particularmente desorientadores para Lucy, Klein começou a administrar-lhe um ISRS. Lucy nunca atendeu aos critérios de Klein para disforia histeróide: não era egocêntrica, narcisista, exibicionista, vaidosa nem obsedada por roupas, nem era sedutora, manipuladora, exploradora, sexualmente provocante ou histriônica e espalhafatosa. Era, ao contrário, tranqüila, cautelosa, auto-protetora e modesta. Mas ainda assim achou que era sensível à rejeição.

A resposta inicial de Lucy ao fármaco foi promissora. O medica­mento interrompeu sua espiral descendente. Relatou uma recém-des­coberta habilidade de "recuar" em seu relacionamento com o namo­rado. A medicação pode ter lhe permitido permanecer na faculdade e preservar o namoro. Tais efeitos tinham sua importância; eles estabi­lizaram sua vida. A resposta rápida, forte, de Lucy permi­tiu considerar-se a possibilidade de que grande parte de seu compor­tamento, apesar das raízes óbvias em sua reação ao assassinato da mãe, agora fundamentava-se em uma sensibilidade emocional funcional­mente autônoma cuja codificação biológica tinha algo a ver com neurônios serotoninérgicos.

Não era possível manter Lucy com o fármaco. Ela relatou um aumento em seu senso de urgência não-direcionada. Dominada por anseios, não sabia por que ansiava. Precisava fazer alguma coisa, no entanto não sabia o quê. Haviam surgido relatos de casos de ISRS fazer com que pacientes experimentassem pensamentos suicidas, e Klein achou que a agitação de Lucy lembrava alguns aspectos de incidentes retratados nestes relatórios. Reduziu a dosagem do medicamento, mas Lucy teve mais um episódio de agitação, de modo que suspendeu o remédio. Eu poderia ter tentado medicá-Ia com outro antidepressivo, se seu senso de desolação tivesse piorado. Mas, sem nenhuma medicação, Lucy começou gra­dualmente a se sentir melhor.

Um fator foi, acredito eu, uma consciência maior de sua reação a pequenas desconsiderações. O breve período, sob medicação, de relativa invulnerabilidade à perda permitira a Lucy compreender seu comportamento social como proveniente de uma apreensão exagera­da. (Podemos dizer que o medicamento agiu como uma interpretação na psicoterapia: deu a Lucy uma nova perspectiva.) Ou, talvez o próprio fato de se ter prescrito um medicamento tenha dado a Lucy uma espécie de visão dupla – uma capacidade de ver como seu compor­tamento parecia, digamos, ao seu namorado. Tornou-se mais disposta a examinar suas reações à rejeição. Quando se via muito submissa em seu relacionamento, era capaz de perguntar a si mesma se não estava com medo de uma catastrófica reação emocional. O simples fato de rotular o problema permitiu a Lucy agir com mais segurança. Sentia-se mais no controle e sua confiança evocava um comportamento mais atencioso de seu namorado.

Houve uma mudança na psicoterapia, também. Klein continuou interessado nas lembranças de Lucy de sua infância. Mas a ânsia de Lucy por atenção e seu sofrimento em reação à rejeição também estavam na linha de frente de seu pensamento, e esta consciência permanente, de ambas as partes, de seu comportamento social pareceu acelerar sua recuperação. Ou talvez um efeito biológico do fármaco ­o apaziguamento de um sistema excessivamente excitado – tivesse algo a ver com a capacidade de Lucy de mudar.

A neta de Sigmund Freud, a assistente social Sophie Lowenstein Freud, fez um comentário interessante em um congresso acadêmico onde Klein apresentou o caso de Lucy. Sophie Freud sugeriu que todas as pessoas são sensíveis à rejeição, no sentido de que esta rejeição as magoa, mas que Lucy podia ser mais hábil do que a maioria em perceber a rejeição. Ou seja, seu namorado realmente a estava provocando (talvez até um pouco conscientemente, sadicamente) e Lucy difere das outras pessoas somente em perceber esta verdade. Segue-se que uma terapia ba­seada no tratamento de sensibilidade à rejeição está pedindo a Lucy para diminuir sua precisa acuidade perceptiva. A meta seria cegá-Ia parcialmente.

A observação procede. Reconhece dois fatores, a onipresença da sensibilidade à rejeição e a percepção ampliada daqueles que tiveram de lidar com certas circunstâncias especiais na infância. Mas o comentário de Sophie Freud vai mais além. Baseia-se na crença de que todas as pessoas – se percebem que são rejeitadas – sentem a mesma dor internamente. Diferem apenas segundo o tamanho da pista que necessitam para reconhecer a rejeição. Esta leitura da sensibilidade está muito mais na linha da crença psicanalítica tradicional de que as pessoas diferem principalmente no modo como sua história moldou os processos cognitivos pelos quais integram, interpretam, distorcem e se resguardam da experiência atual. Se todas as pessoas se assemelham no modo como traduzem a perda em sofrimento, então o instrumento que estamos ajustando não é o ampli­ficador interno, mas o receptor externo – estamos pedindo à pessoa para criar um déficit de atenção artificial, para ignorar a perda. Sophie Freud, em seu breve comentário, disse ainda que "em algumas terapias realmente temos de ensinar as pessoas a ser menos sensíveis – menos perceptivas".

A visão alternativa – que parece mais viável – é a de que as pessoas sensíveis, quando percebem a rejeição, a sentem mais inten­samente. Creio ter sido esta a posição de Donald Klein. O déficit básico é a ampliação aumentada, mas uma pessoa que seja vulnerável à dor intensa se tornará, em conseqüência, hipervigilante e, portanto, mais cônscia de indícios de rejeição. Um remédio capaz de tratar a depres­são aguda provavelmente está, mesmo no âmbito da depressão sim­ples, alterando um mecanismo interno relacionado à estabilização do humor e elasticidade na reação ao estresse.

Na maior parte, não acredito que nem a medicina nem a psicote­rapia tornem a pessoa menos perceptiva. Mas as pessoas vêm como um todo. Não se pode remendar uma parte e esperar que as outras permaneçam inalteradas. Quando se reduz a ampliação, pequenas desfeitas, ainda que brevemente percebidas, podem passar à memória sem serem registradas. Se não são lembradas, é como se jamais tivessem ocorrido. Neste sentido, um efeito secundário da ampliação reduzida é a percepção reduzida. Se o sofrimento persistente pode ser calado, uma pessoa sensível deve se tornar menos apreensiva, e talvez também menos perceptiva. Ela pode continuar e, com o tempo, ignorar pequenas pistas que anunciam uma rejeição menor. A ligeira impassi­vidade aparente em alguns pacientes antes sensíveis, alegres, pode refletir esta perda de sutileza.

Lucy não se tomou impassível. Mas acredito que seja verdade que tenha passado a ser de confusamente perceptiva – capaz de ver as pessoas tratarem-na de uma maneira que nem mesmo elas haviam pretendido – à percepção de uma forma que lhe permitia uma interação menos dolorosa com amigos e estranhos.

Sem o remédio, Lucy estacionou em um determinado nível ­melhor, mas não tão bem. Klein tinha consciência de uma ironia em seu tratamento. Embora Lucy não tivesse tolerado o fármaco, o conceito de sensibilidade à rejeição continuou a dominar a psicoterapia. Ela e Klein agora viam a sensibilidade à rejeição como um problema central para ela, embora o fármaco tivesse falhado em sua cura. A insistência de Klein concentrar-se na sensibilidade à rejeição, na ausência de uma resposta ao medicamento que a tivesse justificado, sublinhou para ele o extraordinário imperialismo do aspecto bio­lógico.

Ao pensar em medicação para Lucy, Klein começara com a evidência de que um distúrbio bem definido, disforia histeróide, responde a um dado tipo de medicamento, o IMAO. A partir daí, por uma série de saltos, delineou a hipótese não-testada de sensibilidade à rejeição em pessoas que não são de modo algum histéricas. Uma outra linha de raciocínio justificou o uso de um tipo de medicação inteira­mente diferente, que bloqueia seletivamente a recaptação da serotonina. Em seguida, aplicou este modelo fracamente sustentado a um caso particular, o de Lucy, em que as causas psicológicas de desconforto social eram nitidamente visíveis. A medicação pouco fez por Lucy. E ainda assim a medicação teve o poder de moldar a compreensão de como Lucy atuava.

Mas Lucy realmente tinha algo tratável definido, vulnerabilidade à perda. Sempre surpreendia a Klein ao olhar para uma mulher com uma história tão particular – uma causa psicológica tão clara para o sofrimento e um comportamento social auto-prejudicial – e ainda assim, durante algum tempo, ver uma quase-identidade quase-biológica: a "sensibilidade".

Ainda que o medicamento fracasse, tanto o paciente quanto o terapeuta podem achar não que o modelo esteja errado, mas que, ao contrário, o problema biológico persiste, sem tratamento. No caso de Lucy, Klein voltou-se para a medicação pela segunda vez quando, ao fim de um semestre, ela se tornou irritável com suas colegas de quarto. Sentia-se constantemente magoada por elas e desesperada com o auto-isolamento que criara com suas exigências de atenção. Começou a se queixar de sensações de pânico bem como de falta de interesse em seu trabalho, e temia que seu estado de espírito prejudicasse o relacionamento com o namorado.

Nessa época, havia um novo antidepressivo ISRS. Lucy começou a tomar o novo fármaco, e, depois de quatro semanas, relatou uma mudança surpreendente. Já não se preocupava mais se seu namorado chegava na hora:

– "Já não entro em parafuso."

Com o passar das semanas, essa mudança apenas se intensificou.

Lucy começou a preferir espaço e hora para trabalhar sozinha. Recon­ciliou-se com as colegas de quarto e expandiu seu círculo de amigos, não mais se isolando com o namorado. Resolveu assumir responsabi­lidades iniciais de ensino no seu departamento na faculdade e viu que era capaz de planejar com antecedência. No todo, disse, sentia-se menos temerosa, mais capaz de contar consigo mesma, mais aberta à opinião dos outros e, ao mesmo tempo, mais confiante em suas próprias atitudes. E na terapia Lucy viu-se – isto após dois anos de sessões pelo menos uma vez por semana – capaz de discutir aspectos de sentimentos privados, em relação tanto a seu passado como ao presente. Estava menos frágil e mais disponível. Tais mudanças eram do tipo produzido pela psicoterapia, mas, com a medicação, houve a sensação de um salto à frente, de comunicação com aspectos do eu que ficaram bloqueados da vida jovem de Lucy.

Após algumas semanas, Lucy experimentou uma intensificação de seus anseios inexplicáveis. Estes anseios terminaram de um modo interessante. Lucy teve a oportunidade de visitar a mãe de seu namorado, uma mulher que até então parecera fria e crítica. Este fim de semana foi muito melhor e Lucy viu seus anseios desaparecerem. Era, segundo ela, uma forma de ansiar por sua própria mãe, um sentimento que Lucy acreditava que a dominava de vez em quando e que sempre lhe parecera forte demais para ela enfrentar. Concluiu em retrospecto que o senso de urgência não fora um efeito colateral da medicação, mas, ao contrário, parte de sua função restauradora: sob medicação, suas emoções e recordações ficavam mais disponíveis. A medicação pare­cia ter enfraquecido barreiras inibidoras de um desejo visceral origi­nado na perda de sua mãe. Era impossível saber se a explicação de Lucy para o fenômeno era correta. Mas se fosse, como psicoterapeuta Klein havia mais uma vez sido confundido pela atenção ao biológico. Sua concentração nos efeitos colaterais da medicação o cegara ao óbvio significado psicológico da sensação de urgente intencionalidade daquela jovem mulher.

Klein não crê que Lucy tivesse se saído tão bem quanto o fez sem o auxílio da psicoterapia. Ao mesmo tempo, a resposta de Lucy ao ISRS foi decisiva e convincente.

– "Tenho a sensação de que, se eu cair, não vou me estilhaçar­", disse.

– "Agora nada mais pode me fazer parar."

E essas declarações foram feitas somente algumas semanas depois de um período de acentuada fragilidade.

Lucy havia guardado um núcleo de vulnerabilidade que a psico­terapia não atingiu. Era como se o trauma psicológico – a morte da mãe e depois os anos de dificuldade para Lucy e seu pai – houvesse provocado conseqüências psicológicas para as quais o remédio mais direto era uma intervenção fisiológica. Mas como o trauma psíquico se traduz em um traço de personalidade biologicamente codificado, funcionalmente autônomo? Como a morte de uma mãe pode tornar-se uma mudança em caminhos serotoninérgicos? A resposta de Lucy à medicação levanta estas questões. Estamos em um terreno especulativo, mas há respostas a serem obtidas.

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