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Winnicott e o Futuro da Humanidade

Amigos: Este não é um texto sobre psicanálise. Primeiro, é sobre a dificuldade que temos de tomar consciência de certas coisas. Não por repressão, negação ou alienação. Por pura tacanhez mesmo. Segundo, é sobre o que poderá acontecer quando certas coisas se tornarem conscientes para um número grande de pessoas, transformando-se em ‘verdades óbvias’, como hoje é o fato de que a Terra é que gira em torno do Sol, e não ao contrário.

Perdoem-me a longa ausência. O fato é que tive tempos simultaneamente difíceis e sobrecarregados de outras tarefas.
Mas agora voltei pra valer.

Só peço uma coisa aos que me leem: Comecem a enviar comentários. Falar com mil pessoas e ninguém responder nada é muito chato. Por favor, digam de vez em quando o que pensam do que escrevi.
Obrigado.
Davy.
Há alguns dias atrás dei uma aula sobre Winnicott para os professores de uma escola infantil em Alphaville, onde moro. A fim de introduzir o assunto, a importância da contribuição de Winnicott em relação ao que dizia a psicanálise chamada ‘clássica’, resolvi de improviso iniciar minha apresentação com o grande feito de René Spitz que, em 1945, logo após o término da guerra, foi chamado à Europa destruída para encontrar a causa da mortalidade de proporções epidêmicas nos orfanatos europeus, que recolheram ao final da guerra um número enorme de bebês e crianças pequenas órfãs. Fui contando a história de como Spitz comparou o desenvolvimento dos bebês de certo orfanato com os internos numa creche que ficava num presídio feminino, chegando à conclusão de que, pelo fato de as presas que tinham filhos pequenos terem o direito de brincar com os mesmos durante uma hora por dia, os pequenos apresentavam um desenvolvimento perto do considerado normal, enquanto aqueles que viviam no orfanato, bem melhor equipado que a creche da prisão, definhavam a olhos vistos e acabavam muitas vezes morrendo de uma doença até então desconhecida – que Spitz chamou de ‘hospitalismo’. O hospitalismo ocorria quando bebês eram internados em hospitais ou orfanatos e, apesar de receberem o melhor tratamento médico, a melhor alimentação, os melhores cuidados higiênicos possíveis naquela época, NÃO RECEBIAM QUALQUER TIPO DE AFEIÇÃO.

(Poderíamos chamar essa afeição de ‘investimento narcísico’, mas a linguagem teórica nos afasta das emoções e dos sentimentos, e meu objetivo aqui não é o de fazer uma análise teórica de algum fato, mas o de chamar a atenção da dificuldade para que as pessoas tomem consciência de certas coisas.)

A descoberta de Spitz, de que na ausência de um relacionamento específico com algum adulto, ao qual Bowlby chamaria, algum tempo depois, de ‘figura de apego’, os bebês simplesmente morriam, levou à rápida reorganização dos orfanatos, creches e outras instituições (inclusive maternidades e hospitais pediátricos), salvando assim um número incalculável de vidas humanas.
Até aqui, assim creio, nada do que eu disse representa algum tipo de novidade. Os que nunca ouviram falar de tais histórias devem correr e comprar o quanto antes o livro que Spitz publicou mais tarde, ‘O Primeiro Ano de Vida do Bebê’, de 1963 (vinte anos depois).

O que eu gostaria de contar como novidade retumbante, estrondosa, ao menos para mim, é o fato de que ATÉ ENTÃO, ATÉ O ANO DE 1946, SETE ANOS APÓS A MORTE DE FREUD, HÁ POUCO MENOS DE SESSENTA ANOS ATRÁS, NINGUÉM, NO PLANETA TERRA, SABIA DISSO.

Esta é a grande novidade que pretendo apresentar. Ninguém, nenhum ser humano, jamais havia notado que bebês apenas alimentados morriam por falta de amor. (Permito-me aqui utilizar essa palavra, famosa nos Estados Unidos como uma ‘palavra de quatro letras’ – a maioria absoluta dos palavrões americanos têm quatro letras – porque ela resume bastante bem todos os fenômenos relativos a ‘essa coisa que não existe’, segundo Winnicott – o bebê.)

No momento em que eu contava a história da descoberta de Spitz aos professores ocorreu-me essa percepção como um insight – e a mim ele atingiu como um raio em céu azul, como se diz. Então quer dizer que ninguém, ninguém na face desta Terra, tinha até então se dado conta de que o bebê não é apenas um organismo biológico – como uma planta ou um animal – ao qual basta alimentar ou regar para que a vida se encarregue de fazê-lo crescer e desenvolver-se! Ele NÃO SE DESENVOLVE se for apenas mantido vivo!

Essa não!!! Lembro-me do espanto que senti ao me dar conta desse fato: de que, até um momento de desenvolvimento bastante considerável de todas as ciências, momento em que a humanidade já estava em estágio bastante avançado em todos os campos, jamais alguém se deu conta, ou seja, percebeu claramente, que os bebês cuja psique não é ‘alimentada’ tanto quanto seu corpo simplesmente definham e morrem. Ninguém sabia disso até 60 anos atrás, me lembro de dizer aos professores.

O meu espanto com esse insight foi muito grande. E tornou-se ainda maior quando, logo em seguida, tive a impressão de que, aparentemente, NINGUÉM ATÉ HOJE ESPANTOU-SE COM ESSE FATO – o de que até então ninguém sabia disso. A descoberta de Spitz veio a público e, ao que tudo indica, foi saudada apenas como uma grande descoberta – talvez nas mesmas proporções da descoberta da penicilina, naquela mesma época. Acredito, inclusive, que a explosão das duas bombas atômicas sobre o Japão, ocorridas pouco antes, tenha provocado um alvoroço bem maior que a descoberta de René Spitz.

A mim, essa minha descoberta pareceu extremamente significativa. É verdade que, poucos anos antes, em 1941, numa reunião científica da British Psychoanalytical Association, os que estavam presentes ouviram a famosa exclamação de Winnicott – ‘There’s no such a thing like a baby’ – ‘Isso que chamam de bebê não existe’, segundo a minha tradução da frase. Winnicott referia-se, é claro, ao fato de que, como ele explicou depois, quem vê um bebê nunca vê apenas um bebê, vê também, inevitavelmente, alguém mais, um adulto ou mesmo uma criança maior com os olhos grudados no bebê, esteja este no berço, no carrinho ou no chão. Daria para dizer, inclusive, que com essa exclamação Winnicott teria sido o primeiro a anunciar o fato de que NÃO EXISTE ‘BEBÊ’ EM SI, como diria Kant. O bebê é parte de uma dupla, e sem essa outra parte ele não pode existir. Mas Winnicott não chegou a afirmar, como fez Spitz, que sem o relacionamento com quem dele cuida o bebê está destinado à extinção – física ou psicológica.

Não sei se o que a mim tanto espantou espanta da mesma forma a vocês que me ouvem ou lêem. Venho tentando, tanto quanto posso, divulgar as proposições de Winnicott nos últimos 15 anos, desde que me convenci de sua tremenda utilidade e fertilidade no entendimento desse complexo fenômeno que é a vida humana. Tenho escrito sobre essas proposições, apresento-as em aulas e palestras, e nunca me canso de repetir o quanto elas são mais proveitosas que as velhas formulações da psicanálise ‘clássica’ – Freud, Klein e inclusive Lacan (que, ultimamente, vem sendo re-estudado a partir de seu ‘último ensino’, mas com isto não estou muito familiarizado ainda).

No momento, porém, em que me dei conta do verdadeiro escândalo representado pelo fato de, até o ano de 1945 da contagem ocidental, ou civil, ou gregoriana, ou cristã, que se iniciou no mínimo 3000 anos após o estabelecimento da civilização humana tal como a conhecemos, ou seja, ao longo de, digamos, QUATRO MIL NOVECENTOS E CINQUENTA ANOS, ninguém na face da Terra, tendo sido observado o movimento dos astros e descoberto que alguns deles eram planetas, e não estrelas, e criado cálculos de enorme precisão para conhecer as órbitas desses planetas, primeiro em volta da Terra, e depois, percebido o engano, em volta do Sol, tendo sido percebido que casamentos consangüíneos tinham tanta probabilidade de gerar descendentes deformados ou mortos, que antes mesmo de existirem sociedades politicamente organizadas os relacionamentos incestuosos foram declarados ‘proibidos’, tendo aprendido a melhorar a linhagem de animais e plantas as mais diversas, tendo sido domado o metal, o vento, o calor, tendo sido aprendidas técnicas surpreendentes e maravilhosas de trabalhar a pedra para fins de construção, tendo sido aprendido a navegar barcos cada vez maiores em águas cada vez mais profundas e revoltas, tendo inclusive o homem aprendido a guiar-se com grande precisão pela posição das estrelas no céu noturno, e pela posição do Sol durante o dia, tendo dominado a arte da tecelagem de modo surpreendentemente sofisticado, e tendo, no final desse período, criado esse método maravilhoso que é o método científico, que lhe permitiu descobrir e depois inventar maravilhas sobre maravilhas, até desembocar na mais espantosa dessas maravilhas, a bomba atômica, mesmo assim ninguém jamais teria observado bebês e crianças muito pequenas com a pachorra suficiente para se dar conta do estrago monumental que acontece quando os mesmos são privados de um relacionamento estreito com um indivíduo mais velho específico.

As espantosas descobertas de Freud sobre a psique humana fizeram um tremendo estardalhaço, cinquenta anos antes. A fantástica e sofisticadíssima teoria da Relatividade, de Einstein, idem, praticamente na mesma época. A divisão do indivisível átomo já tinha ocorrido. As ciências da natureza já estavam, então, num estágio de enorme produtividade e sofisticação. (Tanto que, já em 1894, se não me engano, um certo intelectual inglês de cujo nome não me recordo saiu-se com o que se tornou, não muito tempo depois, A MAIOR BESTEIRA DE TODOS OS TEMPOS. ‘Cheguei à conclusão, disse ele, muito convicto, de que alcançamos um estágio de desenvolvimento em que NÃO FALTA INVENTAR MAIS NADA.’)

Tudo isso vem a propósito de algo que, mesmo antes de ter tido esse insight estrondoso da semana passada, eu já vinha pensando há algum tempo: A Humanidade só começou a conhecer a si mesma há tão pouco tempo, que de certo modo podemos dizer que estamos apenas iniciando o trabalho de sabermos quem somos e como somos. Por esse motivo, quero chamar a atenção de vocês para duas formulações de Winnicott que ainda não ‘entraram na cabeça’ do grande público, e são reconhecidas em sua importância apenas por muito poucas pessoas, aí incluídas as que fizeram do estudo de Winnicott um tema central em sua vida cotidiana.

Refiro-me, primeiro, à idéia de que nunca houve isso que chamam de ‘pecado original’. Ou seja, à percepção de que a ‘maldade inata’ do ser humano nunca existiu, e portanto não passa de uma grande e trágica falácia. Uma ‘teoria’ sobre a alma humana inteiramente equivocada, tal como revelou-se a teoria astronômica de que todos os corpos celestes giravam ao redor da Terra, estando esta no centro mesmo do Universo. A idéia de que o homem não nasce ‘mau’, e de que é o ambiente que produz nele, ao impedi-lo de se desenvolver tanto quanto poderia, distorções capazes de fazê-lo comportar-se como se o fosse, é de uma importância que eu, sem hesitar, chamaria de transcendental. Não tenho dúvidas de que, e só não aposto nisso porque não poderei receber o prêmio caso eu esteja certo, três gerações depois que tal proposição de Winnicott se tornar de domínio público, a humanidade será inteiramente diferente da que conhecemos hoje. Toda a educação será reformulada, toda a política será outra, toda a economia funcionará de maneira diferente, enfim, as sociedades humanas, qualquer uma delas, verão suas respectivas culturas e sua vida social se modificarem muitíssimo quando essa verdade sobre o ser humano se tornar universal. Em relação especificamente à educação, já estou trabalhando para levar essa idéia aos professores – como fiz naquela escola de educação infantil que mencionei no início.

Aponto aqui, além do mais, ainda neste primeiro ponto, o fenômeno que Winnicott tornou conhecido como a ‘tendência anti-social’. Contrariando radicalmente as formulações de Melanie Klein, sua supervisora por muitos anos, sua mestra e sua líder – até que ele rompeu com a escola por ela criada, em meados da década de 50, por perder a esperança em ser reconhecido como um ‘kleiniano legítimo’, Winnicott teve a audácia de chamar o comportamento destrutivo dos anti-sociais recém formados (quanto aos veteranos, ele próprio reconheceu que se constituíam numa outra categoria) de ‘um sinal de esperança’ – a esperança de reencontrar o objeto de amor (a figura de apego) perdida, motivo da deflagração de tal comportamento. Se imaginarmos um código penal e um sistema judiciário em algum país que entendam e aceitem as proposições de Winnicott a esse respeito, podemos imaginar também a verdadeira revolução nos usos e costumes das sociedades quanto aos assim chamados ‘criminosos’, ou ‘delinquentes’, ou ‘infratores’. As consequências sociais de tal mudança são de uma importância dificilmente exagerável, como dizem os ingleses.

O segundo ponto que gostaria de mencionar como tendo uma importância que chamei de transcendental é a já bem mais conhecida e aceita noção do falso self. Se um indivíduo não é ele mesmo, quem será ele? Se ele não sabe que ele não é ele mesmo, de que modo devemos tratá-lo, estudá-lo, entendê-lo? De que vale, afinal, uma filosofia, uma sociologia, e mesmo uma psicologia que estudam falsos seres humanos? Vou mencionar apenas um único exemplo. No Domingo dia 11 de Outubro próximo passado, Renato Mezzan publicou no caderno Mais! da Folha de São Paulo um trabalho intitulado ‘Dos Perigos da Obediência’. Nele, analisou o famoso experimento em psicologia social em que voluntários ‘ingênuos’ (que de nada sabiam) eram instruídos a aplicar castigos físicos (choques elétricos) em atores que simulavam sentir muita dor sempre que castigados quando erravam as respostas às perguntas dos voluntários. O experimento demonstrou que, em 66% dos casos, diz Mezzan, ‘o ser humano é capaz de, obedecendo instruções de alguém considerado ‘responsável’, aplicar a outros castigos extremamente cruéis, como se não tivessem qualquer noção pessoal de respeito ou consideração pelos castigados’. Conclusão do experimento: a maioria esmagadora das pessoas é capaz de uma crueldade insana sempre que se encontre em situações onde alguém mais ‘assume’ a responsabilidade pelas consequências. O Ser Humano, então, em sua maioria NÃO É um ser moralmente responsável. (A relevância desse experimento é dada pelo fato de, como sabemos, os nazistas feitos prisioneiros após o fim da guerra justificavam seu comportamento monstruoso alegando que estavam ‘apenas obedecendo ordens’.)

Se pensarmos agora no outro lado dessa moeda – por que os outros 33% NÃO obedeceram às instruções dos ‘superiores’ e NÃO ACEITARAM APLICAR O CASTIGO PROPOSTO –, teremos que chegar à conclusão de que aí há algo mais em funcionamento que a mera estatística. E só as noções de falso e verdadeiro selves podem nos ajudar a encontrar uma outra explicação para o modo como os voluntários se comportaram naquele experimento. Nada a ver, então, com uma ‘natureza humana’ horrorosa e má, e sim com pessoas que, não sendo elas mesmas, facilmente se deixam levar por outros, já que elas próprias são ‘outras’ dentro de si mesmas. Quando o outro, como no jogo de pôquer, é convincente o bastante, a maioria se deixará levar. ‘A obediência consiste em que a pessoa passa a se ver como instrumento para realizar os desejos de outra…’, define o autor do experimento, citado por Mezzan. O que é isso senão a famosa submissão, contra a qual Winnicott tanto brigou ao longo da vida? Haveria melhor caracterização para o que chamamos de ‘self falso’? Já Machado de Assis escreveu vastamente sobre esse fenômeno, e esse é outro dos meus projetos para o futuro não muito longínquo. E tudo isso aponta para a inadequação universal (até aqui) dos modos de criar filhos – principalmente no primeiro ano de suas vidas. Poderíamos, então, começar a imaginar as transformações nas sociedades humanas quando a maioria das pessoas se convencer dessas afirmações tão subversivas (em relação ao estado atual das coisas) de Winnicott?

Enfim, a Humanidade está apenas em seu início. Apenas começando a conhecer a si mesma (Sócrates, enfim, 2500 anos depois…) A revolução coperniciana foi brincadeira de criança perto da revolução winnicottiana que vem aí. A descoberta de Spitz, para a qual a teoria da gênese do humano serve como uma luva, implica não apenas que o homem é constituído pelo outro. Implica que o homem NÃO EXISTE SEM O OUTRO.

E Winnicott promete – em companhia de Kohut e Bowlby, e talvez do ‘último Lacan’ – ser um excelente guia de excursão nessa caminhada que nos espera.
Ah, sim:

Um sinal de esperança eu vejo nos movimentos contemporâneos cujo lema é: ‘Morte ao Falso Self’. Refiro-me às questões de gênero, à substituição do Bem pelo Mal em tantos adolescentes, à busca desenfreada do prazer – que talvez seja um ‘ajuste de contas’ contra pais reprimidos, ao desaparecimento dos jovens ‘bem educados’, e assim por diante. Se Winnicott disse que a submissão é a marca registrada do falso self, benditos os neo-trogloditas que, para chegarem ao concern, devem passar primeiro por uma temporada de ruthlessness. E Deus que nos proteja até lá. Talvez seja verdade que estamos às vésperas do fim do mundo. Pelo menos, do mundo como o conhecemos.

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