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O Fundo e a Figura

"Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se levantará e experimentará o verdadeiro significado de sua crença: ‘Acreditamos que essas verdades são evidentes, que todos os homens são criados iguais’".  

Martin Luther King Jr.

Eu tenho um sonho! Não foi por acaso que essas palavras, repetidas como um mantra, marcaram o histórico discurso que Martin Luther King pronunciou em Washington, no dia 23 de agosto de 1963. Tanto quanto revindicar direitos civis, ele afirmava para si e para os negros americanos o direito de sonhar, algo fundamental para a constituição da pessoa: quem não é não sonha, quem não sonha, não é. Não ser implica não ter passado nem futuro, ser visto como parte de um fundo indiferenciado, jamais como figura. Muitos são os exemplos desse processo de despersonalização: os trens de subúrbio das grandes cidades, apinhados de gente sem nome e sem história; os corredores e salas de espera de hospitais, lotados de pacientes igualmente anônimos; escolas, geralmente públicas, repletas de jovens incapazes de encontrar possibilidades para a própria vida.

    A despersonalização nos libera da empatia para com aqueles que não vemos como semelhantes, sequer como pessoas, e torna possíveis barbaridades como manicômios e campos de concentração. De outro lado, libera também de limites quem se vê sem rosto e sem nome. Quem não é não deve satisfação a ninguém, nem a si próprio, a seu passado ou futuro. O jovem que ameaça o professor com uma arma é a vítima-algoz dessa liberdade torta e sem esperança. E não faz sentido atribuir isso a um governo, regime político ou sistema econômico específicos: todos, de uma forma ou de outra, têm se beneficiado da massificação. Trata-se, antes, de um processo mais profundo, a que Heidegger se referiu como entificação dos seres. Quando o índio diz que aquela montanha é valiosa por guardar o espírito dos seus antepassados, a montanha é um ser. Quando o geólogo diz que aquela montanha é valiosa por guardar uma fortuna em minérios, a montanha é um ente.

    Na realidade, a entificação da vida não poupa ninguém (exceto, talvez, certas celebridades). “Exclusivo”, “Personalizado”, “Diferenciado” são os mantras da propaganda: o consumo é a forma socialmente valorizada e economicamente útil de afirmarmos nossa identidade, de nos destacarmos do fundo e nos constituirmos como figura. “Sonho de consumo” é uma expressão plena de significado. Mas é na escola que ela adquire sua forma mais paradoxal: espaço por excelência de afirmação de identidade e abertura de possibilidades, vai se tornando aos poucos um não lugar onde se reúnem não pessoas, sem perspectivas individuais ou compartilhadas. Contribui para isso a própria arquitetura de muitas escolas públicas, cubos de concreto sem qualquer graça ou cor.

Há que se reconhecer o valor de alguns educadores, que quase sempre a custa de empenho pessoal conseguem dar vida e luz a essas estruturas cinzentas: nesse contexto de desolação, eles são o sal da terra. Transformar a escola em lugar e o aluno em pessoa é o primeiro passo de qualquer educador. Só a partir daí ele conseguirá recuperar sua própria identidade e o sentido da sua missão.

KING, M. L. Um apelo à consciência: os melhores discursos de Martin Luther King. Seleção e organização de Clayborne Carson e Kris Shepard. Tradução de Sérgio Lopes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006

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