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Paradigmas da relação cérebro/mente

RESUMO

A Filosofia da Mente (FM) oferece substrato inestimável e imprescindível à  psicoclínica e é apresentada como um novo e bem delimitado campo da Filosofia Geral. Pontuam-se suas principais questões de estudo. O problema cérebro/mente (C/M) é trazido como tema central  da área e ocupa a quase totalidade deste artigo. Passando por  uma breve e focalizada revisão histórica, chega-se ao advento atual da Ciência Computacional  e da Biologia Evolucionária. Postula-se a relação existente entre o uso de um determinado paradigma de FM e as escolhas psicoclínicas. Questiona-se a possibilidade do profissional manter-se nos limites de sua escolha paradigmática.

DESCRITORES: Psicoclínica; Filosofia; Mente-Corpo; Ciência Cognitiva; Inteligência Artificial; Neurociências; Biologia.

 

SOME CHOICES IN BRAIN/MIND PARADIGMS

SUMMARY

The Philosophy of Mind (PM) is an essential also trustworthy basis for Psychoclinical which  might  be presented as a brand new well-delimited field of knowledge in General Philosophy. In this article we may point out the most remarkable features of the PM. The brain/mind (B/M) question is brought up as a main theme in this field, it occupies practically the entire article. After a brief historical review, we reach the moment of the out coming of the computational science associated with the PM and the Evolutionary  Biology. The very existence of a relationship between the usage of a certain PM paradigm and the psy choices. The possibility of a psychoclinic keeping himself within the limits of his paradigmatic choice.

Uniterms:   Psychoclinic; Philosophy; Mind-Body; Cognitive Science; Artificial Intelligence; Neurosciences; Biology.

Seria impossível prescindirmos de algum dos paradigmas que nascem da questão cérebro/mente (C/M). Tendo consciência ou não, desde o instante zero do encontro com seu paciente, o psicoclínico irá adotar, implicitamente, uma postura pessoal nesta  questão.

Utilizamos o conceito de paradigma tal como o elaborou o filósofo da ciência T.S. Kuhn: "Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas, que durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência"(1) .

Iniciando pela anamnese a caminho de um diagnóstico, ainda que apenas sindrômico, até o prognóstico final, o raciocínio clínico, em um exercício de abstração, irá partir de um pólo extremo, digamos, o cérebro, até chegar ao pólo oposto, a mente. Varrerá, assim, uma área que vai desde uma psicoclínica neuriatricizada, até uma abordagem plena e exclusivamente psicodinâmica. C. Monedero(2) em seu Psicopatologia General, situa  este  tema,  usando  a palavra  preferentemente: somático ou psíquico ou constitucional. Daí a minha sugestão de que haja um continuum entre os pólos extremos considerados.    

Como a Filosofia da Mente  dará conta deste desafios  metafísicos?

Oferecendo opções.

Cada um de nós fará a sua escolha. Quer dizer, o psicoclínico fará o seu diagnóstico, a sua conduta psico ou farmacoterapêutica e o seu prognóstico.  Esses passos da clínica só serão coincidentes entre colegas que adotarem as mesmas premissas da FM.

Consultando J. Leme Lopes(3) lembramos da importância da pluridimensionalidade do diagnóstico. Envolvendo genética, biotipologia, idade, sexo, raça, credo, condição sócio-econômica, dinâmicas familiar e coletiva, grau de instrução etc. Estaremos sempre transitando naquele continuum entre cérebro e mente.

Consultando K. Birnbaum e o seu apregoado diagnóstico estrutural, as dimensões (Leme Lopes),  os preferentementes (Monedero) aparecem simultaneamente  como camadas sobrepostas concentricamente. Desde a mais interna, o patogênico (cérebro), presumida causa correlata da doença, o patoplástico (mente), dando a roupagem clínica advinda da personalidade pré-mórbida,  e o psicoplástico, introduzido por JH van den Berg(4), trazendo o elemento vivencial último, como provável desencadeante do quadro clínico atual.

Qual a ligação última entre a neurolues e o quadro mental apresentado?  Ou com as vivências do usuário e as drogas, lícitas ou ilícitas?  E, as relações entre a serotonina e as variações de humor?  Este último elo nos escapará eternamente? Ou nos atolaremos nos domínios da fé e dos dogmas, religiosos ou científicos? Novos e ousados paradigmas têm surgido. Chamam-lhes de new age  chegando-se ao esoterismo.

Nossa principal preocupação é com o risco que corremos em usar paradigmas conflitantes entre si. Isto se torna visível quando, por exemplo, pacientes com hipótese diagnóstica fundamentalmente órgano-cerebral são tratados exclusivamente por alguma corrente psicoterápica. Pensamos que a psicoterapia lato sensu sempre exista, desde que se promova uma humana e acolhedora relação clínico-paciente a qual já terá por si só valor curativo. No exemplo citado acima ela seria, evidentemente, apenas uma coadjuvante embora sempre indispensável.

Quem utilizar os diagnósticos operacionais oferecidos pela Organização Mundial de Saúde ou pela American Psychiatric Association submete-se à ideologia ali imposta. As doenças são sistematizadas por uma somatória "quantitativa" de sinais e sintomas. Entretanto, o doente apresenta uma "qualidade" de sofrimento da qual só nos aproximamos pela exaustiva pesquisa daquela vida que, enquanto ser humano, é sempre pessoal, circunstancial, intransferível e responsável, no dizer de J. Ortega y Gasset(5), qualidade esta que não se submete à linguagem fria e binária computacional pretendida por aquelas classificações. Tampouco se submetem a intuição clínica e a capacidade de empatia do psicoclínico, o qual, se usar o método fenomenológico-compreensivo, terá oportunidade de aproximar-se da subjetividade do Outro.

                                                      *  *  *

A Filosofia da Mente é fruto suculento de meados do século XX. Os principais temas clássicos sobre a questão C/M atravessaram o pensamento da Antigüidade à Pós-Modernidade, sendo retomados hoje com grande vitalidade.

Neste artigo consideraremos indistintamente os termos cérebro, corpo, matéria, físico e somático, bem como os termos psique, mente, alma e espírito, como sinônimos. O mental sendo sempre o conjunto das três dimensões: intelectivas, afetivas e volitivo-ativas do  ser humano.

Os resultados das recentes pesquisas sobre o cérebro humano não poderiam ser ignorados. Suas relações causais passam a ser centrais na FM, acrescentadas, porém, de outras tantas questões:- O que é exatamente a consciência? Como os fenômenos conscientes e inconscientes se relacionam? Como funcionam as características especiais do mental, como a intencionalidade, a subjetividade, a identidade e a causação mental?  Como falar em causas sem cair nas malhas do epifenômeno? São a mente e o cérebro duas entidades, ou substâncias, independentes? No caso afirmativo, como se manteriam unidas no mesmo organismo? Como fizeram contato ao princípio, como se separarão ao final, e o que acontece com a mente após a decomposição do cérebro?

A lista de perguntas neste tema é interminável, e perguntar é a grande missão do filósofo, mais do que do cientista, como nos lembra DC Dennett(6). A FM contemporânea nasce em 1949 com G. Ryle (1900-1976)(7). Ele dizia que a questão C/M não deveria ser considerada um autêntico problema, mas sim, uma grande confusão teórica com origem no emprego falacioso de nossa linguagem. A evolução de nossa cultura teria originado dois vocabulários estanques e distantes: o do físico e o do mental. O assunto de ambos, embora sendo exatamente o mesmo, resultaria em um grande equívoco, levando-nos a crer tratarem os vocabulários de substâncias distintas. Exemplos dessa confusão cotidiana: "minha mente está cansada", "estas idéias me dão dor de cabeça" etc. Através da análise lingüística a FM teria de eliminar esta ilusão. O entusiasmo a esta teoria durou pouco. Seu grande mérito foi, sobretudo, reacender o interesse do espírito investigador humano nesta direção.

Três posturas básicas podemos ter em relação à questão C/M, a partir dos roteiros de R. Jolivet(8) e M. Bunge(9) (nasc. 1919):

1a. Não passa de um pseudo-problema:- foi adotada pelo condutismo, pela reflexologia e pelo positivismo lógico, baseando-se na afirmação de  que somente se pode estudar, cientificamente, a conduta manifesta; não sendo aceita a introspecção como um instrumento da Ciência;

2a. É um autêntico problema, ainda que insolúvel:- foi adotada por D. Hume (1711-1776), popularizada pelo filósofo e sociólogo H. Spencer (1820-1903) e pelo  fisiologista E. Reymond (1818-1896); afirma ceticamente que não sabemos nem nunca saberemos como surgem fenômenos mentais a partir de atividades cerebrais;

Kant(10) (1724-1804) julgava ter demonstrado cabal e definitivamente, e com maior vigor incisivo que Hume, que jamais seríamos capazes de chegar a uma solução para o problema das relações C/M nem, tampouco, a uma conclusão final acerca da natureza do pensamento.  Estas questões seriam incognoscíveis à razão humana, em consonância com seu sistema filosófico que postula a incognoscibilidade acerca da: 1. existência de Deus; 2. imortalidade da alma; 3. liberdade. Para Kant, podemos pensar sobre tudo isto, porém, jamais conhecer a isto tudo.

3a. É um autêntico problema que tem solução:- aqui começa um caminho fecundo. Há três tipos de sistemas que tentam buscar soluções ao problema C/M. O dualismo e o monismo psicofísicos, como concepções rivais, e a visão mais recente, o monismo materialista, porém sob a óptica da ciência computacional.

                                              *      *      *

Como toda e qualquer classificação esta também será passível de criar polêmica. Tentamos ser abrangentes fugindo, o mais possível, de artificialismos. Contudo, temos plena consciência que este elenco de opções dos paradigmas C/M será sempre insuficiente para abarcar a criatividade dos especialistas desta matéria.

I.  DUALISMO  DE  SUBSTÂNCIAS   (Dsub )   

Dsub1. psique afeta, causa , anima ou controla o cérebro

Dsub2. psique e cérebro atuam lado a lado: paralelismo psicofísico e harmonia

pré-estabelecida

Dsub3. psique e cérebro influenciam-se mutuamente: interacionismo psicofísico

Dsub4. cérebro causa ou "secreta" a psique: epifenomenalismo

II. DUALISMO  DE  PROPRIEDADES    (Dpr)

Dpr1. psique é "causada  por" e "realizada no" cérebro:  naturalismo biológico

Dpr2. psique é "campo" criado por microssítios cerebrais: campo probabilístico e

teoria  quântica

Dpr3. psique é causada pelo sistema cérebro/cultura

III. MONISMO  PSÍQUICO,   FÍSICO  ou   NEUTRO  (Mpsi,   Mfis  ou   Mn)

            

Mpsi 1. só existe psique: idealismo, panpsiquismo e fenomenalismo

Mn  2. psique e cérebro como manifestações de uma substância independente:

monismo neutro

Mfis 3. psique é cérebro: fisicalismo

Mfis 4. psique provém de bioatividades emergentes: materialismo emergentista

Mfis 5. psique inexiste: reflexologia, condutismo e positivismo lógico

Mfis 6. psique  substituída por teorias cerebrais:  materialismo eliminativo

Mfis 7. estados psíquicos são estados cerebrais: teorias da identidade

IV. MONISMO  MATERIALISTA  ASSOCIADO  À   INTELIGENCIA ARTIFICIAL

Mm 1. psique e cérebro como sistema dinâmico: teoria do caos e fractal

Mm 2. psique como funções entre input e output de um sistema: funcionalismo

Mm 3. psique como informação processada por redes computacionais:

conexionismo

Mm 4: psique é o todo presente em cada parte: paradigma holográfico

                                                    *      *      *

        

As correntes serão mencionadas de modo heterogêneo, em extensão e profundidade, de acordo com um critério de valoração subjetivo que credito  a cada uma delas. São dualistas os que afirmam a existência de duas substâncias, a material e a espiritual, em oposição aos monistas que só admitem uma única substância. J. Ferrater Mora(11) (1912-1991) nos afirma que foi C. Wolff (1679-1754) quem batizou as  expressões dualismo/monismo.

   I. DUALISMO   DE   SUBSTÂNCIAS   (Dsub)

Dsub1: a psique afeta, causa, anima  ou controla o cérebro.

De modo bastante simplificado podemos afirmar que o primeiro dualismo psicofísico que se tem conhecimento é o pré-animismo, uma concepção primitiva de mundo  onde  uma mesma  força impessoal  e universal é difundida por toda a natureza em  cada um de seus entes vivos ou brutos. Ainda hoje em certas tribos se acredita em tal força: Mana, entre os melanésios; Oranda, entre os índios; Manitu, entre os algonquinos; Boylya, entre os australianos.

Lembramos, como ilustração deste caso, do  chefe Seatle  de  uma tribo indígena da América do Norte, em 1854, recebendo proposta de vender suas  terras em troca de uma reserva, assim respondendo ao Presidente da República: "(…) Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos no campo, o calor do corpo do potro, o homem – todos pertencem à mesma terra. Esta terra é sagrada para nós.

Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais. (…)"(12).        

Com a evolução cultural esta força  impessoal  teria se transformado em forças individualizadas que animam  somente os seres vivos. Neste caso, temos o dualismo psicofísico animista, ou simplesmente animismo.

 E. Durkheim (1858-1917) acreditou descobrir que originalmente a alma (mente=psique) não era outra coisa senão esse princípio universal  encarnado em cada indivíduo. É a própria concepção do totemismo: o sopro ou ar sutil e invisível não se confunde com o corpo, podendo mesmo abandoná-lo, mas estando intimamente a ele ligado por intermédio de certos órgãos, como, por exemplo,  o coração  ou  o fígado.

Segundo E. B. Tylor (1832-1917) a  idéia da alma procede da observação de certos fenômenos biológicos: sono, vigília, doença, morte, sonhos e visões. Por exemplo, o primitivo considera que em seu sono pode transportar-se para longe do local onde repousa seu corpo, imediatamente conclui pela realidade de um duplo mais sutil e leve que o corpo. Esse duplo, a alma, independente do corpo, seria capaz de sobreviver a este.

Quem primeiro criou uma sistematização racional para o dualismo psicofísico foi Platão (427-347 a.C.), apresentando um sistema filosófico coerente não-animista.  Foi o mais vigoroso oponente do monismo e, em geral, da antiga concepção materialista e atomista pré-socrática do mundo. Pela voz de Platão,  seu  mestre Sócrates (470-399 a.C.) expõe, nos diálogos Crátilo e Fédon, uma versão refinada contra o  obscurantismo ritualista mitológico de então. Mostra, assim, que a alma: a) mais o corpo compõe o homem; b) é imaterial e eterna; c) anima ou vivifica o corpo; d) é superior ao  corpo; e) encontra-se prisioneira do corpo e se livra dele com a morte; f) pode saber a verdade e desfrutar da beleza, ambas absolutas somente depois de conseguir livrar-se do corpo.

Esta doutrina foi adotada, de maneira notavelmente obscurecida, pelos neoplatônicos, em especial por Plotino (205-270) seguido de Agostinho (354-430), e a tornaram oficial os primeiros cristãos após a sistematização feita por Paulo de Tarso     (10- 67)

Aristóteles (384-322 a.C.) foi um pensador independente do sistema platônico neste tema. Considerava que o homem era um animal, e que a alma colada ao corpo era a "forma" do organismo. Portanto, uma só substância – monismo. Contudo, seu pensamento foi cristianizado por Tomás de Aquino (1225-1274) que o transformou em dualista,  passando a sustentar a origem divina, a imaterialidade e a imortalidade da alma humana individual.

Dsub2: cérebro e psique são paralelos ou sincrônicos.

É no paralelismo psicofísico onde encontramos o caso exemplar da harmonia pré-estabelecida temos o pensador G. Leibniz (1646-1716)(13). Almejando, nos últimos anos de sua vida, abarcar, em um amplo sistema metafísico, a totalidade do mundo material e da realidade cósmica, por extensão a questão C/M, apela para o que ele denominou monadologia – as mônadas, unidades imateriais, indivisíveis, inextensas, incorpóreas, reunidas e coordenadas por uma harmonia pré-estabelecida.

Dsub3: dualismo interacionista.

Aqui está R. Descartes(14) (1596-1650), que defende sua posição na Metafísica do Racionalismo, levando à afirmação de que só o homem, ser pensante por excelência, seria dotado de alma, ao passo que os animais  não passariam de simples autômatos. Nele encontramos: "[…]  e reparando que esta verdade, ´penso, logo existo`, era tão certa e tão segura que nem sequer as suposições mais extravagantes dos céticos a conseguiam abalar, cheguei à conclusão de que a receberia sem hesitação alguma como o primeiro princípio da filosofia  que procurava. […] Por isso eu soube que era uma substância cuja essência integral é pensar, que não havia necessidade de um lugar para a existência dessa substância e que ela não depende de algo material; então, esse ´eu`, quer dizer, a alma por meio da qual sou o que sou, distingue-se completamente do corpo e é ainda mais fácil de conhecer do que esse último; e, ainda que não houvesse corpo, a alma não deixaria de ser o que é."

Alma e corpo aqui representam duas espécies de substâncias totalmente distintas, autônomas, independentes e ininfluenciáveis. Atributo da alma é o pensamento (res cogitans); o do corpo é a extensão (res extensa). A sede da alma é a glândula pineal, ou seja, a epífise, que se projeta para cima do epitálamo.

L. Eisenberg(15), na atualidade, construiu um interessante instrumento que batizou com o nome Pineal-PetR. Marcando com radioisótopo uma substância do metabolismo da epífise pode comprovar deslocamentos desta substância, acompanhados de correntes ventriculares, correlacionando estes fenômenos físicos com as flutuações no estado de alma (ânimo=humor) do examinando, como pensava Descartes.                                                                                                           

Descartes, embora separando corpo e mente, contraditoriamente  considerava as relações entre um e outro como mostra sua correspondência com um de seus discípulos, a princesa Elizabeth, da Boêmia. Quando ela adoecia fisicamente, Descartes não  hesitava em diagnosticar que seu mal era devido à tensão emocional. Receitava-lhe relaxamento e meditação, além de tratamentos físicos para influir na res cogitans (em, F. Capra)(16). Admite-se a possibilidade de ação recíproca e de influência mútua entre as duas instâncias C/M. Herbart foi um vigoroso representante desta posição entre os séculos XVIII e XIX. Foi herdeiro direto do intelectualismo hegeliano, embora confessando-se em completo desacordo com o idealismo especulativo, empenhou-se na construção de uma psicologia de base empírico-realista, entretanto,  se mantinha fiel à crença na imaterialidade e imortalidade da alma.

W. Penfield(17) relata-nos um caso clínico, que passa a ter um valor histórico importante para a FM  pela envergadura do seu expositor. No ano de 1962 assistiu a um paciente que sofrera grave acidente automobilístico, estando absolutamente imóvel no leito. Demonstrava, no entanto, sua consciência, apenas, através de leve movimentação dos globos oculares e, digamos assim, pelo "olhar" dirigido à sua esposa.

Tendo percebido este ínfimo, mas fundamental sinal, Penfield estabeleceu, a partir daí, sua conduta terapêutica,  podendo ser acompanhada a luta interativa entre uma mente preservada e um cérebro que perdera temporariamente sua capacidade de controle motor sobre o organismo.

Os maiores sistematizadores do Interacionismo foram K.  Popper (1902-1994 )  e J. Eccles ( nasc.1903 )(18).  Vale a pena lembrar a questão dos três Mundos do Popper :

 Mundo  l: o universo das entidades físicas;

 Mundo 2: os estados mentais, de consciência e inconsciência, das disposições   

psicológicas, e                  

 Mundo 3: o universo dos conteúdos do pensamento e dos produtos da mente humana.

Vejamos, numa linguagem metafórica, uma interação destes 3 Mundos, neste mito : – Pigmalião, como   achasse todas as mulheres pecaminosas e censuráveis (Mundo 2), optou pelo celibato (Mundo 3). Entretanto, para não ficar completamente só, decidiu fazer  uma estátua de jovem mulher, em marfim, a quem chamou Galatéia (Mundos 1 e 3). A estátua era tão perfeita que Pigmalião acabou apaixonando-se por ela (Mundo 2). Vestiu-a ricamente, adornou-a com jóias e flores, ofereceu-lhe presentes (Mundo 1). Tomado pela paixão (Mundo 2), durante uma festa de Vênus (Afrodite), pediu à deusa que lhe concedesse uma mulher semelhante  à estátua (Mundo 1). Vênus, apiedando-se de Pigmalião, deu vida à própria virgem de marfim (Mundo 1). O escultor  uniu-se à jovem  tendo  com ela um filho, Pafo, o mais contundente argumento da interação dos 3 Mundos que neste mito são citados.

Saindo da metáfora mitológica para o campo da pesquisa científica, inserimos neste ponto o original  trabalho do psiquiatra brasileiro O. R. Lima(19) ( nasc.1922 ) o qual nos mostra a importância do centro hipotalâmico (Mundo 1) da fome (Mundo 2), agindo como polo aglutinador das limalhas constitutivas de nossa personalidade. Há  três décadas atrás ensinava  de como a inconsciência faminta do coma terapêutico insulínico levaria à coesão dos fragmentos da mente esquizofrênica desagregada (Mundo 3), numa confirmação de  sua  tese.

Dsub4: o cérebro afeta ou causa a psique

É o epifenomenalismo. Este caminho nos conduz à mais pura tradição fisiológica e fisiopatológica.  O zoólogo K. Vogt em um escrito de 1854, "A Fé do Carvoeiro e a Ciência" parafraseando JO La Mettrie (1709- 1751), afirmava que "o pensamento está para o cérebro na mesma relação em que a bile está para o fígado ou a urina para os rins" . Esta metáfora também foi usada pelo psiquiatra alemão W. Griesinger (1817-1868), tendo se notabilizado com ela. No dizer de T. H. Huxley (1825-1895), a consciência é o epifenômeno dos processos nervosos, no mesmo sentido que uma sombra, o epifenômeno, nunca reage sobre o objeto que a produz, ou seja, a relação causal tem mão única no sentido da matéria para a mente. Aqui estão também  C. Broad (1887-1971) e  A.  Ayer (1910-1989).

          II.    DUALISMO  DE  PROPRIEDADES   ( Dpr )

Optou-se pela escolha desta denominação, dualismo de propriedades, pelo fato dos autores aqui mencionados não negarem a existência, em separado, das realidades do mental e do físico. Não apelam, no entanto, para a ocorrência de duas substâncias distintas, uma para cada fenômeno observado. Tampouco, se enquadram no monismo clássico que será visto. Assim, o que há é a constatação de níveis ou abordagens diferentes de descrição para um mesmo sistema ou conjunto de sistemas.

Dpr1: psique é causada por e realizada no cérebro

                               

O criador desta teoria é J. R. Searle(20) (nasc.1932). Ele nos propõe esta nova  abordagem da questão C/M – os estados mentais são, ao mesmo tempo, causados pelas operações do cérebro e  realizados na estrutura cerebral. Searle chamou a esta concepção de naturalismo biológico, onde a descreve como totalmente realista. Sua teoria não é nem reducionismo e nem materialismo eliminativo, como veremos, pois os fenômenos mentais intrínsecos não podem ser reduzidos a outra visão ou eliminados por algum tipo de redefinição.

Para Searle, assim como não podemos dizer que a atividade elementar neuronal tenha cognição, emoção ou volição, também não dizemos que a molécula H20 isolada seja gelada, úmida ou vaporosa. No entanto, se observarmos o comportamento destes mesmos substratos materiais, em níveis distintos de descrição dos fenômenos, encontraremos nexos causais e de realização, que em si e por si, geram novos fenômenos reais e bem delimitados: na comparação, os estados mentais e os estados da matéria água  (gelada, líquida ou gasosa).

Assim foi driblada a desafiadora questão da causação mental, de como poderia um fenômeno mental causar efeitos em fenômenos físicos: o cérebro causa as manifestações da mente, as quais são realizadas neste mesmo cérebro.

Dpr2:  campo  e  teoria  quântica

Uma causação mental que acabamos de citar sobre estruturas materiais é considerada incompatível com as Leis da Conservação de Energia na física, em particular com a Primeira Lei da Termodinâmica. O físico quântico H. Margenau, em 1984, dá-nos uma contribuição fundamental: a hipótese é a da interação C/M ser análoga a um campo probabilístico da Mecânica Quântica, campo este sem  massa  nem  energia, podendo contudo, provocar ação efetiva em microssítios de operação.

Que estruturas neuronais poderiam ser recipientes apropriados de acontecimentos mentais?  

R. Penrose, em seu livro Shadows of the Mind, nos diz que ao nível dos microtúbulos cerebrais, descobertos pelo anestesiologista SR Hameroff, da Universidade do Arizona, ocorrem fenômenos quânticos que seriam responsáveis por estados mentais conscientes. Outra resposta estaria nas descobertas sobre a natureza do mecanismo sináptico. 

Valemo-nos da obra Física Quântica de Eisberg & Resnick(21) para situarmos as questões que se  seguem:

A massa da vesícula sináptica estaria dentro dos limites de tamanho que a situasse no âmbito do Princípio de Incerteza de Heisenberg?

Veja que para se instituir uma exocitose – esvaziamento extra-celular da vesícula – é apenas necessário deslocar-se uma pequena área de membrana celular dupla lipo-protêica, que pode chegar a uma espessura não superior a 10 nm, e se tiver  uma área de 10 nm por 10 nm, seria uma partícula com massa de apenas 10-18  g, o que a traz para o âmbito de medidas da física quântica e do princípio de  Heisenberg.

Efetivamente, biofísicos que trabalhavam com a retina humana descobriram que suas células são suficientemente sensíveis para registrar a absorção de um único fóton. Isto aconteceu há quase cinqüenta anos atrás!  Ali, já  estava  sendo aberto um canal de comunicação entre o mundo elementar da física e nossa percepção da realidade cotidiana.

N. Marshall, num  trabalho sobre memória, em 1960, elaborou pela primeira vez com detalhes, a necessidade de uma abordagem mecânico-quântica da consciência. Dizia ele que as leis da física clássica não davam lugar ao livre jogo dos processos de pensamento, liberdade de escolhas e intenções, enfim ao "livre arbítrio" – considerado característica da consciência humana.

Recentemente, o físico russo Y. Orlov elaborou argumento semelhante: em qualquer tipo de resolução de problema ou pensamento criativo, a indeterminação quântica e os estados de probabilidades sobrepostos (estados virtuais) devem desempenhar papel fundamental, no cérebro, a todas as potencialidades latentes na consciência.

Se como sugerem Penrose, Marshall e Orlov, a base física da consciência for  um fenômeno mecânico-quântico: – Como seria este processo e que propriedades deveria  encontrar no cérebro?

Primeiramente um Estado Imutável – na linguagem da física – agindo como pano de fundo de toda  a unidade contínua da consciência, mantendo-a coesa e uniformemente fixa no espaço e persistente no tempo, qualidades necessárias para o bom desempenho de seus processos dinâmicos.

Esta uniformidade pode ocorrer em materiais que existem em fase condensada. A fase de condensação refere-se à quantidade de ordem existente num dado sistema, a entropia.  Voltemos, por exemplo, nas fases da água, do estado de vapor,  passando pelo líquido e, atingindo o de gelo, vai havendo uma ordenação cada vez maior de suas moléculas. Assim, a fase sólida, o cristal de gelo, é um exemplo de uma fase condensada, embora imprecisamente estruturada, como também acontece com os cristais de sal ou de açúcar.

Outros exemplos: os imãs comuns, os superfluidos, os supercondutores, a luz laser, as correntes elétricas nos metais e as ondas sonoras nos cristais. Todos têm em comum certo grau de coerência que faz seus átomos ou moléculas comportarem-se como uma unidade.

Já se sugeriu que a consciência dependa do fato de o cérebro assumir as características de um superfluido ou um supercondutor. Entretanto, esta sugestão esbarrava numa grave questão básica: esses estados somente existem em temperaturas extremamente baixas e, evidentemente, seria impossível em nosso cérebro, que está na temperatura corporal própria.

Aqui foi lembrada a descoberta, de cerca de vinte anos antes, do professor H. Fröhlich, da Liverpool University, na Inglaterra: o seu sistema bombado – sabidamente encontrado em tecidos biológicos – descrito como sendo constituído por moléculas eletricamente carregadas:  os  dipolos,  positivos numa extremidade e negativos na outra.  Estes dipolos  localizados nas membranas celulares emitem vibrações eletromagnéticas (fótons virtuais). O físico alemão F. Popp descobriu a leve fosforescência por eles emitida, aos quais chamou de biofótons coerentes, de importância vital na ordenação celular.

Fröhlich demonstrou que além de certo limite, qualquer energia introduzida a mais no sistema bombado referido, faz  com  que as moléculas dipolares vibrem em uníssono. No limite máximo de ordenação possível este sistema entra em fase condensada  –  um Condensado de Bose- Einstein (BEC)(22).

O BEC tem como característica fundamentalmente singular tornar as inúmeras partes constituintes de um sistema ordenado não só se comportarem como um todo, mas também se  tornar um todo. Suas identidades se fundem ou se sobrepõem de tal forma que perdem a própria individualidade. Esta seria a forma mais coerente possível de ordem existente na natureza, a ordem de uma inteireza não-dividida. Este pode ser o mecanismo que permite à vida violar a Segunda Lei da Termodinâmica, promovendo assim uma entropia negativa.  Aliás, este fato é ratificado na obra de I. Prigogine sobre sistemas abertos ou dissipativos. Aí se enquadram os sistemas vivos. A criatividade destes – ao menos aquela cujas raízes estão em sua coerência quântica – surge de sua habilidade em criar sua própria lei, o tipo de ordem que dá origem a inteireza relacional, isto é,  criar  um novo sistema total que é maior que a  simples soma de suas partes constituintes, e fazê-lo espontaneamente cada vez que um nível crítico de complexidade é alcançado. A isso Prigogine chamou de  sistemas auto-organizados.

Dpr3:  psique causada por cérebro/cultura

C. Sonenreich em artigo de 1982(23), e em 1984(24), assim resume sua proposta: "O cérebro exerce funções que o tornam incomparável com qualquer outro órgão. É mais conveniente concebê-lo como um processo, uma atividade, do que como uma massa material. Porém, é difícil pensar a mente como um produto do cérebro e muitos autores adotam posições dualistas. Achamos que cérebro e cultura podem ser incluídos em uma única estrutura, em um só sistema, hierarquicamente superior a esses dois elementos isolados, e que nos permite conceber uma nova manifestação: o psiquismo humano. Trata-se de uma maneira de formular os problemas, de um modo de abordagem". Portanto, não se refere a um dualismo de substância, mas dois aspectos, psique e cérebro/cultura, observados em níveis distintos de uma mesma realidade.

Ao nosso entendimento, ratificando e complementando a equação CM/Cultura de C. Sonenreich, vem a proposta do biólogo R. Dawkins(25) de dar ao fenômeno cultural um caráter tecnicamente evolucionista. Tal qual é o gene para os seres vivos, era preciso, também, encontrar uma partícula de transmissão, igualmente replicante, que levasse informações culturais por entre as gerações sucessivas. Assim como o DNA surgiu num caldo primordial, o caldo da cultura humana estaria gerando a sua forma de sobrevivência através de entidades replicadoras. Seria uma unidade de imitação.  Dawkins criou o termo, de raiz grega, meme. Exemplos de memes são melodias, idéias, "slogans", modas de vestuário, maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma forma como os genes se propagam num "pool"  pulando de corpo para corpo através de espermatozóides e óvulos, os memes, também, pulam de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado de imitação. Quando você planta um meme fértil em minha mente, este literalmente parasita meu cérebro, transformando-o num veículo para a propagação do meme, exatamente como um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira. Isto não é apenas uma maneira de falar, o meme, por exemplo, para "crença numa vida após a morte" é, de fato, transmitido milhões de vezes, como uma estrutura do sistema nervoso, de homem para homem, individualmente por todo o planeta. E a idéia de Deus? Não sabemos como ela se originou no "pool" de memes. De qualquer forma  é tão antiga quanto a humanidade. Como se replica?  Pela palavra escrita e falada, auxiliada por música e arte estupendas. Como a idéia de um Deus tem tamanha estabilidade e penetração no ambiente cultural? O valor de sobrevivência do meme para Deus resulta de sua grande atração psicológica. Ele fornece uma resposta superficialmente plausível para questões profundas e perturbadoras a respeito da existência. Ele sugere que as injustiças neste mundo talvez possam ser corrigidas no próximo. Os "braços eternos" oferecem uma proteção contra nossas próprias deficiências, a qual, como um placebo, não é menos eficiente por ser imaginária. Essas são algumas das razões pelas quais, a idéia de Deus é copiada tão facilmente por gerações sucessivas de cérebros individuais. Deus persiste com alto valor de sobrevivência ou de poder infectante no ambiente fornecido pela cultura humana.

 III.     MONISMO  PSÍQUICO ,   FÍSICO   ou   NEUTRO  ( Mpsi,   Mfis  ou  Mn )

Monismo é reducionismo, e este surge quando um conceito passa a  ser definido em termos de outro conceito. Uma proposição está reduzida a outra quando a primeira está explicada com a ajuda da segunda. Um exemplo: a Psicobiologia reduz as proposições e os predicados psicológicos a  proposições  e  predicados   biológicos.

Mpsi 1: psique como única entidade que existe.

                             

Representado pelas três correntes: o idealismo, o panpsiquismo e o fenomenalismo. Encontramos aqui G. Berkeley (1685-1753), JG Fichte (1762-1814), GF Hegel (1770-1831),  GT Fechner (1801-1887) , E. Mach (1838-1916), W. James (1842-1910), AN Whitehead (1861-1947).

A. L. Nobre de Melo(26), escreve: "Parte-se aqui da noção de que o essencial para o conhecimento do mundo é a experiência interna imediata, a que tudo, em princípio, se reduziria. Ora, a única experiência de que temos conhecimento direto e imediato é positivamente a do nosso eu. Ambas essas proposições, cuja validade parecia implicitamente assegurada no cogito cartesiano, não tardaram então a ser levadas às últimas conseqüências, a princípio, e até certo ponto, por Berkeley, mas ulteriormente, e, sobretudo, por Fichte, dando isso origem a um idealismo subjetivista extremo, que leva ao solipsismo, ou seja, à negação do mundo exterior".

Mn 2: cérebro e psique como aspectos ou manifestações de uma única entidade neutra e desconhecida

É o monismo neutro. Encontramos aí  B. Spinoza (1632-1677) , R. Carnap (1891-1970), M. Schlicke (1882-1936), H. Feigl (1902-1988). Nesta concepção esperava-se clareza e concordância com as ciências naturais. Não se conseguiu livrá-la da suspeita de que fosse uma forma de obscurantismo porque recorria a uma substância neutra que nos seria desconhecida, exceto por suas manifestações materiais e mentais.

Mfis 3 :  psique  é  cérebro

É o monismo materialista redutivo ou fisicalista, cujo grande precursor foi o filósofo francês La Mettrie(27),  o qual em seu livro L' Homme Machine, já fazia referência à possibilidade de aparecer alguém que um dia construísse um homem mecânico que pudesse falar. La Mettrie dizia que os animais não podiam falar por causa de sua anatomia, e não, como Descartes, que apelava para a falta de alma.

Na filosofia contemporânea destacamos B. Russel(28) (1872-1970) quando, já longevo, registrava: "Acredito que quando morrer, eu me putrefarei e nada em mim sobreviverá. Não sou jovem , e amo a vida. Mas desdenharei os calafrios de terror ao pensamento da aniquilação total. A felicidade não é, absolutamente, menor e menos verdadeira apenas porque deve, necessariamente, chegar a um fim, e tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor por não serem eternos".

 Podemos distinguir quatro  formas básicas de materialismo (MAT):

1. MAT metafísico ou cosmológico que se identifica com o atomismo filosófico, ou seja, com a presença na matéria e, portanto, nos átomos, de uma força capaz de fazê-los se moverem e combinarem de modo a dar origem às coisas. Demócrito  (460-370 aC), admitia que os átomos se movem por sua conta desde a eternidade. E. H. Haeckel (1834-1919) admitia que os átomos, além de movimento, fossem dotados de vida e de sensibilidade.

2. MAT metodológico segundo o qual a única explicação possível dos fenômenos é aquela que recorre aos corpos e aos seus movimentos; seu precursor é T. Hobbes (1588-1679) com seu tratado De Corpore, de 1655 .                                             

3. MAT prático ou moral, para indicar a tendência humana a uma ética que adote o prazer como único guia do comportamento: é o hedonismo. Aí está  Epicuro (341-271 aC).

4. MAT psicofísico que consiste em afirmar a estreita dependência causal da atividade psíquica à matéria. O psiquiatra francês P. Janet (1859 – 1947) dizia que nós pensamos com o corpo. Neste item, situamos, também, S. Freud com o seu Projeto para uma Psicologia Científica(29), de 1895. Freud era membro do grupo fisicista de neurologistas vienenses. K. Pribram(30) refere a importância deste seu renegado ensaio que contém formulações e definições de muitos conceitos centrais da Teoria Psicanalítica.

Freud continuou usando por toda a sua vida estes conceitos, os quais nunca mais foram enunciados  de um modo tão explícito e compreensivo como o fez em seu Projeto. Jamais sequer o citou. Freud pôs por escrito suas idéias e remeteu o manuscrito ao seu amigo W. Fliess,  circunstância essa a que ficamos devendo a sua preservação, já que só veio à luz em 1950,  a título póstumo.

Mfis 4: psique é um conjunto de funções cerebrais emergentes.

É o materialismo emergentista, que sustenta que o SNC não é uma entidade física – nem uma máquina – mas, um biossistema, isto é, algo complexo dotado de propriedades e leis peculiares dos seres vivos. As atividades mentais seriam então funções do SNC emergentes no sentido de nível físico, sendo o aparecimento de uma nova qualidade que brota, ou de algo que possui traços qualitativamente novos, como os já citados sistemas auto-organizados de Prigogine.  Estão aqui  D. Diderot (1713-1784), C. Darwin (1809-1882), e S. Ramón y Cajal (1852-1934).

Da leitura que fazemos de AR Damásio(31) em sua obra "O Erro de Descartes", compreendemos em colocar aqui seu pensamento.  Nele encontramos:

" […] antes do aparecimento da humanidade, os seres já eram seres. Num dado ponto da evolução, surgiu uma consciência elementar. Com essa consciência elementar apareceu uma mente simples; com uma maior complexidade da mente veio a possibilidade de pensar e, mais tarde ainda, de usar linguagens para comunicar e melhor organizar os pensamentos. Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos  na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser. "

Mfis 5: psique como entidade inexistente.

A reflexologia, o condutismo e o positivismo lógico, consideram a questão C/M um pseudo-problema.  Com efeito, é a diretriz da psicologia contemporânea que tende a restringi-la ao estudo da conduta, eliminando toda referência à consciência, ao que não pode ser observado e descrito em termos objetivos e verificáveis.  Entende-se por comportamento ou conduta  toda resposta de um organismo vivo a um estímulo, que seja: 1. Objetivamente observável por um  meio qualquer; 2. Que seja uniforme. I. P. Pavlov (1843-1936), em 1903, é o fundador desta diretriz, pois, foi quem pela primeira vez empreendeu pesquisas psicológicas que prescindiam de qualquer referência aos "estados subjetivos" ou "estados internos".  Foi, todavia, J.B. Watson (1878-1958), em 1914, quem primeiro enunciou claramente o programa do comportamentalismo, em seu livro chamado O comportamento – Introdução à Psicologia Comparada.

O comportamentalismo foi muitas vezes interpretado de um ponto de vista polêmico, como a negação da consciência e dos estados internos. Na realidade ele é simplesmente a negação da introspecção como legítimo instrumento de pesquisa, que, aliás, já fora feita por A. Comte (1798-1857) no seu positivismo. B. F. Skinner (1904- 1990) é o mais conhecido representante do condutismo. Nos primeiros tempos o condutismo permaneceu vinculado à diretriz mecanicista, pela qual o estímulo externo é a causa da conduta, no sentido de que o tornaria infalivelmente previsível. O próprio Pavlov destacava essa infalibilidade. Hoje em dia esse pressuposto de natureza ideológica já foi abandonado por este sistema.

Mfis 6.materialismo  eliminativo

Aqui se defende a questão de que  nossas interpretações  psicológicas comuns do dia-a-dia (folk psychology)  se utilizam de conceitos "caseiros" de intenções, crenças, desejos etc., que vão sendo progressiva e paulatinamente substituídos por uma teoria científica, principalmente com base nos progressos da neurobiologia. Este fato trará como conseqüência que o conhecimento popular laico irá sendo eliminado pelo saber acadêmico oficial das teorias científicas da mente. Levando, portanto, a um benéfico reducionismo onde o pensamento mágico dará lugar a uma integração da ciência ao senso comum. Este é o ponto de vista defendido por R. Rorty (nasc. 1931) e P. Feyerabend (1924-1994).

Mfis 7. teorias da identidade

Em 1956 o psicólogo UT Place, em um artigo sumamente influente sobre a consciência, passa a considerá-la como um estado cerebral. Imediatamente se tornou líder de um importante grupo de filósofos, entre os quais H. Feigl, em 1958, JJC Smart, em 1959 e D. Armstrong, em 1968, cada qual defendendo alguma versão da denominada "teoria  da identidade", que naquele momento era somente uma hipótese programática. Existia, entretanto, uma ampla diversidade de opiniões entre os teóricos da identidade. Enquanto Smart e Armstrong, com seus numerosos seguidores, eram materialistas convictos, Feigl hesitava entre a identidade estrita e o monismo neutro. Por cerca de duas décadas, as teorias da identidade foram objeto de ampla discussão filosófica entrando, em seguida, em progressivo esvaziamento.

        

IV. MONISMO MATERIALISTA ASSOCIADO À INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

                   

Retomamos a FM a partir da seguinte pergunta: "Pode uma máquina pensar?" . Ela foi feita, e respondida afirmativamente, por um matemático inglês, A. Turing(32) (1912-1954), em seu artigo de 1950, Computação e Inteligência.

Criando maior polêmica, em 1955, H. Simon e A. Newell comunicavam à comunidade científica: "Inventamos uma máquina pensante". Logo depois, o programa de computação chamado, Logical Theorist produzia pela primeira vez a demonstração automática  de um teorema.       

Estes eventos marcam a formação e a institucionalização de uma nova disciplina na década de 50: a Inteligência Artificial (IA), e logo depois, as chamadas Ciências Cognitivas.

A idéia de que processos mentais poderiam ser estudados à luz de um modelo computacional apresentava uma boa alternativa para os dilemas metodológicos de investigação na FM e na Psicologia.

O brasileiro JF Teixeira (nasc. 1955)(33), conceituado e fecundo filósofo da mente e pertencente à equipe de D.C. Dennett,  garimpou de Marvin Minsky,   autor  do clássico The Society of Mind, o aforismo : "Nenhum computador tem consciência do que faz.  Mas, na maior parte do tempo, nós também não."

Mm 1:  teoria do caos  e  fractal

A teoria do caos nasceu da meteorologia, com Lorenz em 1963, quando usava um modelo tridimensional de registro da evolução do tempo. Tornou-se importante instrumento matemático de análise e compreensão de sistemas dinâmicos (SD), ou seja, sistemas que evoluem no decorrer do tempo, como acontece na relação C/M. A  evolução pode ser contínua, ou linear, com mudanças quantitativas, ou então, descontínua, ou não linear, com mudanças qualitativas.

A evolução dos SD pode ser descrita por equações matemáticas e de modo gráfico. Os SD lineares usam equações diferenciais. Em biologia, como na questão C/M, os SD são descontínuos, e para serem representados graficamente precisaram de um novo conceito: o de atrator.

Atratores seriam para onde o SD se encaminha. Existem três formas de atratores simples: o ponto, o círculo e o torus. O atrator de ponto faz o SD caminhar para a estabilidade, por exemplo, o movimento de um pêndulo com atrito caminhando para a parada. O atrator de círculo que faz o SD caminhar para uma órbita simples e constante, por exemplo, um pêndulo sem atrito, que permanecerá com um movimento regular. O atrator de torus representa a trajetória de um SD que evolui de forma complexa, mas, previsível, por exemplo, o percurso do fio no enrolamento de um motor elétrico.

O SD descontínuo tem uma evolução extremamente variável, e necessita de um novo modelo matemático, que surge a partir do conceito de atrator caótico, no qual a trajetória do sistema, embora situada dentro de um determinado parâmetro, não é previsível exatamente. Exemplos, uma pedra jogada do alto de uma montanha, o fluxo de água num rio caudaloso, o trajeto de uma bexiga de ar quando esvaziada. Nestes casos, uma pequena variação no início do trajeto, provoca enormes distorções depois de certo tempo. A teoria dos caos vem trazer modelos matemáticos mais adequados para esta compreensão. Em 1972, R. Thom desenvolve a teoria da catástrofe, a  qual se refere a  saltos (bifurcações) entre as várias formas de atratores em um mesmo SD.

Em 1975, Mandelbrot, a partir de trabalhos feitos em computação na IBM, criou o conceito de  fractal que é uma linguagem de geometria que pode ser expressa  por elementos gráficos primários. A geometria  euclidiana pode ser comparada ao alfabeto das línguas indo-européias, em que cada letra em si não tem significado, o qual só aparece quando as letras são unidas umas às outras. A geometria fractal seria comparada à linguagem chinesa em que cada ideograma é único e tem seu significado. Além disso, nesta linguagem, o número de elementos ou símbolos é arbitrariamente grande, podendo ser infinito. Na geometria fractal os elementos são definidos por algoritmos, que são conjuntos ordenados de operações elementares que permitem a solução de um problema.  Com os algoritmos, os fractais podem construir quantidades infinitas de elementos, cada qual completo e único.

Se juntarmos a estes novos conceitos de atrator caótico, catástrofe ( salto ou bifurcação) e fractal, os ensinamentos da teoria quântica, especialmente na área da imprevisão das medidas, surge o que de mais interessante tem acontecido na evolução das ciências destes tempos, com a queda do mito de que tudo em ciência é preciso, rigoroso e exato. Vale lembrar que atrator caótico não quer dizer ausência de atrator, evolução ao azar ou falta de lei.

W. Bassit,  G. Estevão e DP Bassit(34) nos mostram que uma mente normal funciona sob o controle de vários atratores caóticos, tornando o indivíduo de certo modo imprevisível nos seus pensamentos, sentimentos, conduta etc. À medida que o homem adoece mentalmente, passa a funcionar dentro de um ou vários atratores simples, periódicos, diminuindo, assim, sua liberdade  de escolha, criatividade, pelo menos em certas áreas da atividade psíquica. Os assim chamados doentes mentais são mais iguais entre si que os seres sadios, permitindo diagnósticos sistematizados.

Mm 2:  funcionalismo 

Afinal, a IA contribui para bem reavaliar-se  o problema C/M?

J. F.Teixeira nos diz que sendo a IA produzida  por dispositivos que não têm a mesma arquitetura, nem a mesma composição biológica e físico-química do cérebro, afinal estamos falando de ser vivo do mundo orgânico versus ser bruto do mundo mineral, levou à formulação de uma teoria específica das relações C/M: o funcionalismo.

Esta concepção sustenta que estados mentais são definidos e caracterizados pelo papel funcional que eles ocupam no caminho entre o input e o output  de um organismo ou sistema. Este misterioso labirinto interno nos lembra um software que estipula quais as instruções que um computador deve seguir para realizar uma determinada tarefa, qual um fio de Ariadne ligando os extremos input/output.

O funcionalismo não implica necessariamente uma postura monista materialista, pois também lhe é compatível o dualismo. Um aparelho de rádio (hardware) toca uma música (software).  A música e o aparelho de rádio são coisas distintas, irredutíveis uma à outra, embora sejam ambas necessárias para realizar o evento completo.

Mm 3:  conexionismo

Ainda nos anos 70 surgem o conexionismo e as redes neurais. Enquanto no funcionalismo a IA privilegiou o estudo da mente humana, no conexionismo o privilégio foi dado ao cérebro humano.

Para o conexionismo os processos mentais só podem ser estudados através dos conhecimentos do funcionamento cerebral e sobre computação. O cérebro humano é visto como um dispositivo computacional em paralelo, que opera milhões de unidades computacionais os neurônios (neuron-like units).

Computadores e cérebros são sistemas cuja função principal é processar informação. Assim, pode-se utilizar redes artificialmente construídas para simular esse processo. A rede funciona como um sistema dinâmico, ou seja, uma vez dado o input inicial, este espalha excitações e inibições entre as unidades computacionais.

Estamos lidando com um ramo do conhecimento humano bastante jovem, e por isso mesmo, muito polêmico. Os muitos autores desta área se digladiam apaixonadamente. O saldo na arena é, evidentemente, por demais positivo dada a quantidade e riqueza de idéias, refutações e contra-refutações, que têm surgido.

Neste clima busco novamente Searle. Ele chama de IA no sentido "fraco",  quando o principal valor do computador residir no fato de que este nos fornece uma ferramenta extremamente poderosa para o estudo da mente. Denomina de IA no sentido "forte", quando o computador não for meramente um instrumento para o estudo da mente, mas, muito mais do que isso, pretender ser, ele mesmo, uma mente, no sentido de que se lhe fornecerem os programas corretos ele passaria a "entender" o que sucede.  Searle se mostra  contra  esta última  proposta.

É possível que outros pensadores, desta ou de outras áreas de conhecimento, rejeitem a IA forte simplesmente por certo espírito reacionário-tecnofóbico, ainda que a rejeição seja apresentada com argumentação requintada e dentro de jargões técnicos.

Neste momento citamos o escritor de ficção científica, também ele um cientista, I. Asimov(35) (1920-1992). Especializou-se nos contos sobre robótica. Fala-nos de um medo irracional que o homem tem dos autômatos, máquinas com IA, ao que ele chama de "Complexo de Frankenstein". Ora, a experiência histórica demonstra à larga que a aceitação da novidade é tão lenta, que a tecnofobia limita-se a ser, apenas, uma espécie de extravagância que atrasa em muito o verdadeiro progresso.

A criação de um computador com IA, à semelhança de um COG – projeto ambicioso do MIT: um robô humanóide completo, que deverá simular não apenas os pensamentos, mas também os sentimentos humanos – poderia  fazer ver o homem como um candidato a Prometeu. Está claro que nas sociedades onde Deus é aceito como único criador – na civilização ocidental judaico-cristã, na oriental, islâmica – as pretensões da FM aliada à Ciência Computacional poderão ser consideradas sacrílegas. 

Nada mais espantoso que o adentrar ao "mundo da antecipação", ao qual a boa ficção científica nos arrasta. O pioneiro Turing há 50 anos atrás, já expunha a questão das máquinas pensantes. 

Mm 4: psique é o todo presente em cada parte: paradigma holográfico

O processo holográfico, em linhas gerais, oferece uma imagem tridimensional de um objeto que seria reproduzida por meio de padrões de onda de luz registrados em algum tipo de chapa.  Qualquer parte do holograma poderia ser usada para reproduzir a imagem inteira. Imaginemos, por exemplo, a imagem que retrata um cavalo, visto lateralmente.  Se cortarmos um canto da figura que contenha somente a cabeça do cavalo e  ampliarmos a imagem deste fragmento ao tamanho original, da figura inicial, o cavalo reaparecerá por inteiro. Os trabalhos de K. Pribram(36) (1971/75/76) e de D. Bohm (1971/73) geraram um grande interesse pela aplicação dos conceitos holográficos à nossa compreensão da consciência.

Ao modelo analítico baseado no computador digital, Pribram em 1975 acrescenta o modelo sintético do computador holográfico analógico mostrando o sentido complementar de ambos, e não competitivo. Isso fez supor que talvez  houvesse uma estrutura teórica mais abrangente capaz  de integrar  ambos os modelos. Essa estrutura  levou Pribram a examinar os pressupostos básicos que fundamentariam os dois modelos. Esse exame revelou que tanto um quanto outro se baseiam num conjunto de suposições holísticas,  levando à conclusão  que a "teoria da informação" seria uma estrutura teórica capaz de integrar ambos os modelos.

 As partes do cérebro seriam capazes de participar de todas as formas de representação. Hologramas poderiam ser "empilhados" uns sobre os outros numa chapa, sem que um interferisse com o outro. Teríamos, assim, a "representação distribuída" e sua teoria aqui se assemelharia a algo como a monadologia de Leibniz, já citada em Dsub2.  No início dos anos 90, Pribram evoluiu da hipótese holográfica para a holonômica. Haveria "holoscapes", isto é, organizações de microprocessamento dendrítico que estocariam informação, incluindo espaço, tempo, modalidade sensorial etc. Redes de holoscapes gerariam holografias que correspondessem a nossa percepção, pois, elas conteriam a informação necessária para projetar um holograma. Nesta época, Pribram se ocupava especialmente com a percepção visual. Acredito que a hipótese  holográfica vem sendo muito interessante para se explorar modelos de memória.

Existe um pequeno texto de Freud, de 1924, chamado "O Bloco Mágico"(37) que guarda grandes semelhanças com o que acaba de ser exposto.

                                                   *      *      *

Não há ciência completamente independente. Todas as ciências factuais, por exemplo, dependem da Lógica e da Matemática, e cada uma delas interage com as outras ciências e com a Filosofia.  A Psicologia, até fins do século passado, podia ser considerada como parte integrante da Filosofia.  A partir de então passou a ser considerada  uma ciência com relativa independência. A natureza da psique e suas relações com o corpo, tema central da metafísica tradicional, mantém a Psicologia particularmente próxima à Filosofia. A boa ou a má qualidade de uma doutrina filosófica promoverá ou retardará o avanço da investigação científica. Assim, destacamos a total interdependência das ciências básicas, formais e aplicadas entre si,  e cada qual com a Filosofia Geral.                                                                                                                                                                                                                                                 

Demonstração esquemática do enquadramento filosófico das várias psicologias, para melhor clarear as interdependências (em, M. Bunge(38) por nós modificado):

Escola psicológica                                               Divisa filosófica

Mentalismo  extremo……………………………………Penso, logo existo

Dualismo…………………………………………………..Penso  e  existo

Behaviorismo……………………………………………..Te  comportas

Monismo  psicofísico……………………………………..Existo, logo me comporto e penso                              

Materialismo emergente…. …………………………….Existo (e sinto), logo penso.                                               

                                                                                                              CONCLUSÃO –  INDAGAÇÕES   PROVISÓRIAS

                                                          
Quando lemos e interpretamos algo, como o poema acima, ou quando refletimos sobre algo, ou ainda no momento mesmo de uma ação, possuímos como estruturação   do   pensamento / ação  um     paradigma   específico   dentro   da pluridimensionalidade do ser humano: um paradigma que sustente nossa visão científico-profissional, outro, ou o mesmo, que ampare a nossa ética,  estética,  metafísica, política, enfim, a nossa visão-de-mundo –  Weltanschauung.

         Contrariamente a esse modo de ser, o filósofo E. Husserl (1859-1938) preconizava como início ideal  de qualquer tarefa do pensar a suspensão fenomenológica: o olhar ingênuo que suspendesse qualquer tentativa de interpretar o que estava sendo visto. O olhar asséptico, idealmente puro, a partir do qual todas as descobertas seriam rigorosamente científicas, pois, não haveria conceitos prévios à experiência, contaminando a experiência mesma. O objetivo último era o de que a teoria assim obtida com o método fenomenológico fosse a mais possívelmente fiel ao fenômeno que se dava ao observador. 

Logo, os epistemólogos e filósofos da ciência afirmaram ser essa tarefa dificílima , ou para alguns, impossível. Porque ao olharmos o paciente, este olhar nunca é  um gesto que se abra neutramente a qualquer manifestação do fenômeno que está diante de nós. O nosso olhar "olha" especificamente para dados não-verbais e perscruta se há determinados dados a serem vistos e analisados. Do mesmo modo, ao ouvirmos o paciente, este ouvir não abrange a totalidade do dito pelo paciente, mas, retém informações privilegiadas, e estas variarão segundo o paradigma que norteia, previamente, o nosso raciocínio clínico.

         Sem percebermos nossas premissas filosófico-científicas orientam diferentes buscas de dados do paciente. Na prática clínica, mostra-se  que este "olhar" e  "ouvir" não são teoricamente "puros" e isentos de paradigmas, porém,  culturalmente turvos, vale dizer, impregnados de um constructo teórico qualquer. Todo elemento teórico pertence visceralmente a um único paradigma definido, mesmo que não se tenha consciência  dele.

A conseqüência prática desses fatos, é que ao nos apoiarmos teoricamente em algum ponto no continuum entre os pólos opostos dos preferentementes da conceituação C/M,  nossa ação clínica mudará mensuravelmente.

O universo  teórico/prático  torna-se ainda mais complexo, quando se  revela  que as variações sutis dos  diferentes paradigmas, levam na esteira, modificações amplas no modo de conduzir a prática clínica do psiquiatra. Essa é a causa mais comum de que existam diagnósticos e prognósticos distintos, de um mesmo paciente, realizados por psicoclínicos diferentes.

Atraindo esse problema, a prática psicoclínica brasileira ainda necessita resolver um outro dilema com que nos defrontamos diariamente nos hospitais e nos consultórios. Será que o psiquiatra atual, desde o nascente até o poente de seu dia de trabalho, conduz  sua prática clínica dentro do mesmo modelo paradigmático? Como fica  o psiquiatra que atenda pela manhã, num ambulatório  lotado e premido pela urgência do tempo, prescrevendo principalmente  fármacos, e que à tarde , em seu consultório, chega a dispensar  esses mesmos fármacos? Ou seja, como qualificar e quantificar uma prática clínica onde o mesmo psiquiatra possa atender acolhendo dois paradigmas diferentes em momentos distintos?  Entramos num pluralismo paradigmático que admite o "faz-se-o-que-puder-ser-feito-naquele-momento"? Seremos suficientemente potentes para ter clareza no raciocínio clínico, diante desse universo de paradigmas que se impõem a nós? Construiremos um teratoma teórico-prático a partir da desagregação paradigmática? Como conciliar a concordância entre cérebro/mente versus prática/teoria na confluência da ação profissional? Há justificativa teórica para a prática realizada a partir de fragmentos paradigmáticos distintos? Paradigmas conflitantes conduziriam a uma prática patologicizante?

                                          

                                                   *      *      *                                  

Referências  bibliográficas  pela  ordem  do  texto:

                   

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(*) Psiquiatra e Neurobiólogo. Ph.D. em Filosofia da Mente. Ex-médico do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital do Servidor Público Estadual F.M.O. São Paulo-SP.  Attaché do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade  Federal de São Carlos, UFSCar-SP. 

                                                            e-mail: [email protected]

 

 

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